31 julho 2005

Droláticos e pilheriáticos




Most young women do not welcome promiscuous advances. (Either that, or my luck’s been terrible.)
Groucho Marx

De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fl. 45b.

A perdiçam de D. Leonor





«E vendo-se D. Leonor despida, lançou-se logo ao chão, e cobriu-se toda com seus cabelos, que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até a cintura, sem mais se erguer dali.»


Jerónimo Corte-Real, Naufragio e Lastimoso Sucesso da Perdiçam de Manuel de Sousa de Sepulveda, & Dona Leonor de Sá sua molher & filhos (1594)

Novo retorno on jokes, 5

— Já de volta, Groucho? Não chegou a ir jantar a casa da sua irmã?
— Fui, sim, mas regressei mais cedo. Aquela nossa conversa esta tarde deixou-me a pulga atrás da orelha...
— Refere-se a qual dos episódios?
— Ao último, senhor. Em particular àquela teoria da inferioridade como causa do riso.
— E então? De que vem discordar agora?
— Não propriamente discordar: nem todo o debate assenta em discordâncias, como bem sabe. Pergunto-me, ainda a respeito de belgas e alentejanos, se o efeito de superioridade não será secundário. Ou melhor, se não decorre de outro, mais importante...
— Que seria...
— O efeito de homogeneidade, e homogeneidade comunitária. Belgas e alentejanos nem serão o melhor exemplo, mas valem. Repare que quem conta uma dessas anedotas coloca-se fora do mundo que ridiculariza...
— ... e quem as ouve e delas se ri também. Sentem-se uns e outros superiores, porque acham graça, porque conseguem perceber a estupidez dos outros.
— Pois, mas isso une-os, senhor, numa comunidade de inteligentes, ou de não-estúpidos: como há comunidades de brancos, de heterossexuais, de pessoas que não são políticos nem advogados. A anedota sublinha um traço comum que une contador e auditores, e permite uma resposta a esse traço comum: pelo riso. É a alegria de ser assim ou assado, de não ser não-assim ou não-assado. Ora isso não será pior do que qualquer sentimento de superioridade?
— Admitindo que se distinguem, do que duvido, é seguramente pior, Groucho. Mas não se esqueça duma coisa, Groucho: há anedotas de alentejanos contadas por alentejanos, de advogados contadas por advogados, de judeus contadas por judeus, e por aí fora. Como explica isso?
— Ora, senhor, isso já estava explicado no ponto de partida: é a crença poética.

Dias de Anos




















De um dos episódios de Winnie-the-Pooh produzidos pela Disney («Tudo está bem quando se lhe deseja bem»).

O tigre lamenta-se de não poder acompanhar os seus amigos nos desejos que, em troca de uma moeda lançada ao poço, fazem a propósito do dia de anos de cada um (e que todos festejam naquele mesmo momento). O tigre, simplesmente, não tem dia de anos. Surpreendido, o coelho questiona-o:
«Todos têm um dia de anos. Até os tigres. Tu nasceste, ou não?»
Ao que o tigre responde:
«Não faço ideia. Acho que não estava cá nessa altura. E se eu nasci num dia que não era o meu dia de anos?»

Citações

Um pedinte aproxima-se dum homem à entrada dum teatro. O homem recusa a esmola, citando: «'Neither a borrower nor a lender be' — William Shakespeare.» E o pedinte, citando: «'Fuck you!' — David Mamet.»

Middle name



— What do Alexander the Great and Winnie the Pooh have in common?
— They have the same middle name.

Novo retorno on jokes, 4

— Acho que hoje não janta, Groucho. É melhor ir telefonando à sua irmã.
— Nem pensar. Nunca falto a um compromisso familiar. Prezo a família acima de tudo: e não tenho outra além da minha irmã.
— Fica-lhe bem cultivar esses laços. Mas tenho uma observação a fazer-lhe, e a resposta há-de vir já.
— Escuto, senhor.
— A sua ideia da estruturação étnica das anedotas, se bem entendi, é apenas variante de uma das teorias mais antigas do riso: a da inferioridade. Vem dos gregos, Groucho, a ideia de que nos rimos dos inferiores. Ou de que a inferioridade tem graça. O carteiro a cair, por exemplo. As quedas parece que fazem rir: quem cai fica logo inferior, literalmente e em todos os sentidos.
— Lastimável. Nunca me rio de quem cai.
— Pois, acredito. Mas há outras teorias. Pelo menos mais duas. Uma é a do alívio: quando nos rimos, aliviamos coisas malignas que cá temos dentro, percebe? Ou deixamos que coisas estranhas e desconhecidas se manifestem. Daí o riso nervoso, perante o desconhecido ou o ameaçador.
— O desconhecido é sempre ameaçador…
— Talvez. A terceira teoria é a da incongruência. Rimo-nos da incongruência ou quando percebemos uma incongruência. Segundo esta teoria, o riso suspende a relação familiar com o mundo, abre brechas, revela dimensões insuspeitadas.
— Agradeço a lição. Mas escapa-me a relação com o que lhe disse…
— Escapa-lhe, o diabo é que escapa! Não se faça de lorpa, Groucho. Isto é apenas para aplicar à sua teoria a teoria da incongruência, Groucho. Nem tudo o que faz rir é condenável: e as anedotas fazem rir revelando a incongruência, o absurdo, o inesperado, etc. Funcionam bem nessa operação. Nem tudo se reduz a inferioridade, Groucho.
— Pois eu reduzo, senhor. E aliás, reduzo-me. Se não se importa, tenho que ir arrumar as meias por ordem alfabética.

Novo retorno on jokes, 3

E sentou-se, determinado.
— Pois agora, meu caro senhor, ouça mesmo. Não me interrompa.
— Às ordens, Groucho. Como bem vê, estou apenas ocupado a fumar um cigarro, que nem sequer é pensativo como o…
— Basta. Ouça a explicação me pediu, com mil diabos. Perguntou-me como conciliar a ideia de que as anedotas divulgam irresponsavelmente ideias condenáveis com a ideia da crença poética . Certo?
— Certíssimo.
— É simples. Atente nessa piada parva do belga. Ninguém acredita que os belgas confundem o telefone com o ferro de engomar, muito menos que a confusão seria sinal de estupidez irremediável. Isto é a crença poética. Por outro lado, como o senhor mesmo disse, o belga pode ser e é frequentemente substituído por outra determinação étnica ou nacional. O belga não é belga senão secundariamente. Está a seguir-me?
— Perfeitamente. Era essa a minha questão.
— Pois, mas a ideia condenável não é que o belga é sempre estúpido. O curso livre das anedotas mostra o contrário. A ideia condenável é precisamente a que estrutura a crença poética, ou seja, a ideia de que a estupidez se torna cómica quando apresentada na figura da inferioridade de certas nações ou etnias. A determinação étnica da estupidez, em si mesma, é que é condenável.
— Mas que explicação mais rebuscada, Groucho…
— O senhor diz isso porque está sem resposta. Note o seguinte: a anedota ideal é que a será entendida por qualquer humano. Não existe, nenhum humano domina todo o conjunto de pressuposições indispensáveis à inteligibilidade de uma anedota, mas não deixa de funcionar como horizonte ideal. Logo, há lugares-comuns marcados em certas anedotas para que a referência se particulariza ao alcance do auditório particular. Em si mesmas, pouco ofendem, porque são marcas da impossibilidade da anedota universal. Mas esse mesmo ideal de universalidade é que transporta a noção de inferioridade como veículo de comédia. Percebeu agora?
— Acho que não passamos sem um quarto episódio, Groucho.

Incorrigível

Provavelmente, esperamos demasiado da vida. Nada nos contenta, mesmo quando já conhecemos o amor e tivemos o nosso generoso quinhão de felicidade. Deve ser essa a nossa ração de orgulho semidivino (aquilo a que os gregos chamavam hubris). Ou melhor, a receita infalível para o desastre. Esse desastre rigorosamente incorrigível a que chamamos «vida».

Novo retorno on jokes, 2

Insistente.
— Já acabou o jornal? Faz-se tarde, senhor.
— Ora, Groucho, deixe-se de dramatismos… Faz-se tarde para quê? Tem que ir a algum lado?
— Devo ir jantar a casa da minha irmã, senhor. Está a contar comigo. E não quero ir sem me explicar a respeito das anedotas.
— Vai lá jantar? Boa! sempre come melhorzinho. Ela também é vegetariana?
— Não, não é. Come de tudo, mas tem a amabilidade de confeccionar comida perfeitamente conforme à minha convicção quando lá vou…
— Pois, imagino, abóboras e courgettes, muita cenoura, tudo envolvido em arroz integral e…
— Por favor, senhor, tenha dó. Não caricaturize. Fique-se pela rabugice e ouça a minha explicação, ou esta conversa ainda vai ter terceiro episódio.
— Terceiro episódio é boa ideia, Groucho. A propósito, sabe qual é a melhor maneira de queimar um belga na cara?
— Não, senhor, não sei. Nem me inte…
— Telefona-se-lhe quando está a passar a ferro!

Novo retorno on jokes

Resignado.
— Bom, senhor, é domingo, não está cá mais ninguém, há pouco que fazer, e afinal até simpatizo consigo. Por isso…
— Simpatiza comigo?! Good Lord! Não vai pedir-me dinheiro emprestado, pois não?
— Credo, não! Para que preciso eu de dinheiro? Nem sequer vou de férias. Não, nada disso. Venho apenas dar-lhe uma explicação, a explicação que me pediu anteontem. Sobre as anedotas…
— Há, sim, essa explicação. O que o leva a supor que ainda me interessa? Na altura pôs-se a andar rapidamente… Não me diga que foi pensar…
— E se fosse, senhor, se fosse, havia mal nisso? Não é sempre melhor pensar antes de responder seja ao que for? Em todo o caso, releva pouco que lhe interesse ou não: eu é que fico melhor se explicar.
— Pois agora não posso eu. Lamento. Estou ler a página de opinião do Público. Quando acabar, eu chamo-o. Não vou perder essa explicação.
— Deus o abençoe.

Droláticos e pilheriáticos


EGYPTIAN LADY: I’ve been married for thirty-one years to the same man.
GROUCHO: If he’s been married for thirty-one years, he’s not the same man. How did you meet him?
EGYPTIAN LADY: I was on a subway in New York.
GROUCHO: I thought you said you came from Egypt.
EGYPTIAN LADY: I was visiting my sister in New York and we were talking on the subway and he was listening.
GROUCHO: He was eavesdropping?
EGYPTIAN LADY: Yes, I had a very broad accent at that time.
GROUCHO: You still do.
EGYPTIAN LADY: I used to say «bawthroom» and things like that.
GROUCHO: «Bawthroom», eh? No wonder he was intrigued. I guess he was wondering how you found a bawthroom on the subway. Say, why were you saying «bawthroom» to a strange man, anyway?
EGYPTIAN LADY: It wasn’t «bawthroom» that attracted him. It was my accent.
GROUCHO: Whenever you use your accent you say «bawthroom»?
EGYPTIAN LADY: No, no. When I got off, he got off and asked me, «Where are you from?»
GROUCHO: And you said, «The bawthroom».
EGYPTIAN LADY: No! He said he was fascinated. Back then, someone from Egypt was a rarity. Today there are millions of us.
GROUCHO: There’s too many of you to suit me.
EGYPTIAN LADY: So then he said, «May I walk you home?» I said, «Yes.» He was very gentlemanly.
GROUCHO: It wasn’t that. He was just looking for the bawthroom.

[do quiz show You Bet Your Life]

De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fl. 77c-b.

Meta-qualquer-coisa-mente, 3*


/…/ e assim compreenderão que me espante não ver explorada a analogia entre os blogues e o velho folhetim. Se é que alguém alguma vez a mencionou. A analogia vale para todo o tipo de blogues, dos políticos aos íntimos, no estrito plano da leitura: quem os lê, segue episódios, procura a continuidade, tenta discernir e conjugar os vários fios de intriga quotidianamente prolongados. Mas a analogia devia valer para a escrita. Os posts, ou postas, como já vi escrito, são realmente folhetins, pequenas folhas, pequenas parcelas, pequenas prosas, em todo o caso episódios de intriga mais ampla, as mais das vezes por definir. Isto é seguramente verdadeiro em princípio. Ora, pode ser verdadeiro na composição. Têm uma ideia (que vale pouco sempre se posta em confronto com a escrita): não a gastem logo. A ideia, afinal mero ponto de partida, ignição da escrita, pode dividir-se: em vez de logo lhe subordinar a escrita, trabalhem-na em vários momentos, quero dizer, vários posts — de preparação, de divagação, de consideração de aspecto lateral, de mero anúncio, ou de pura conversa. Não interessa muito a ideia, interessa o fio em que vai ganhando forma ao longo dos dias ou das semanas. Dir-me-ão que assim se pressupõe a leitura diuturna e o leitor fidelíssimo: e pode ser de outro modo? Além disso, os links facilitam porque tornam materialmente possível a leitura de todos os posts correlatos num único momento de acesso. Linkar é um capítulo decisivo da arte da composição do post. Eis, em suma, porque tenciono desenvolver uma Arte de composição para bloguistas.

A. Bispo Bártolo
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

Acessos difíceis


/…/ de modo que as provas de acesso, estas ou outras, pouca dificuldade me trazem. Lamento se pareço presunçoso: apenas tenho experiência. Supervisionei várias provas de acesso, incluindo para lugares de grande responsabilidade. Certa vez, coube-me superintender o recrutamento de um agente para os Serviços Secretos. Havia três candidatos, um agente do ATF, outro do FBI e um polícia de Chicago. Imaginei uma prova infalível. Dei uma pistola ao agente do FBI, disse-lhe que fosse ao quarto ao lado e matasse quem lá estivesse. Ele foi, mas regressou depressa e furioso: «Devem estar a brincar, é a minha mulher que lá está. Não vou dar-lhe um tiro!» Bom marido, pelos vistos, mas não servia para os Serviços Secretos. Ao agente do ATF dei as mesmas instruções, e o resultado foi também o mesmo: «Aquela é a mãe dos meus filhos, seus cabrões.» Bom marido, bom pai, mas não servia para os Serviços Secretos. O polícia de Chicago recebeu a mesma instrução, entrou no quarto, e demorou muito mais tempo. Foram dez longos minutos em que se ouviram sons de luta, gritos, barulho de móveis e louça a partir… o agente regressou, transpirando abundantemente, mas ainda articulado: «Quem foi o idiota que me deu uma pistola descarregada? Tive que a estrangular!»

G. H. Souza
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

Elogio da lentidão


/…/ condeno a pressa, execro os apressados. L’homme pressé… não sou eu! Onde leva a pressa senão ao desastre? Guio-me pela máxima chinesa: a urgência é inimiga da precipitação. Um dia, estava em casa tranquilo, desapressado, e ouço umas pancadinhas na porta. Abri, mas nada: ou ninguém. Olhei em volta: ninguém. Olhei para baixo: um pequeno caracol… Amigo dos animais, peguei-o com todo o cuidado, transportei-o na palma da mão até ao meio do jardim, e ali o deixei, na sombra duma acácia solitária. Um ano depois, continuava eu desapressado, ouço novas pancadinhas. Abro. Era um caracol, aliás o mesmo, e americano, e falante, porque me perguntou, zangadíssimo: — What the fuck was that all about?


Vicente G. J.
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

Droláticos e pilheriáticos



I worked my way up from nothing to a state of extreme poverty.

Groucho Marx

De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fl. 2a.

30 julho 2005

Versus in porta latrinae scribendi, 3

Era increíble cómo conseguía peinar las aristas de mi mundo fantasma.


[Biblioteca de Santa María de los Ángeles]

Versus in porta latrinae scribendi, 2

Be cool... fuck an iceberg!


[British Library]

Versus in porta latrinae scribendi, 1

Fuck a duck and learn to fly.


[British Library]

Versus in porta latrinae scribendi

[Isto sim é um prólogo]
Enceta-se dentro de momentos a publicação de um conjunto de enunciados recolhidos ao longo de vários anos em portas e paredes de latrinae de universidades, bibliotecas e instituições afins. Sobreleva-se, pois, o meio material que suporta dessas mensagens efémeras: não a página em branco, mas a pele da cultura objectivada em portas, estuques ou azulejos “brancos”. Colige-se, há que sublinhar, discurso que manifesta criatividade em diferentes graus – o material reunido, por conseguinte, non olet. Uma primeira e última constrição desta obra de recolheita: todas as inscrições são autênticas. O espaço das latrinae complica aquela máxima equívoca da suposta longevidade da escrita. Nesses lugares publicamente íntimos encontramos uma escrita votada indefectivelmente à rasura, não da borracha ou do delete, mas da palha de aço, do detergente e de outros venenos. Sendo assim, republicar aqui esses enunciados supõe uma violência absoluta: imortalizar o que nunca quis ter mais do que uma inespecífica mortalidade, modo banal de ser de todo e qualquer mortal. A geografia física das latrinae, como se poderá ir comprovando, é transnacional e transcontinental. Sob a égide do “anjo do excremento”, não há senão vozes anónimas, autorias e fontes esfaceladas, sem imaginação de comunidade e sem territorialidades fortes. Ainda assim, a transcrição respeita a língua original das inscrições, por comodidade do postador e porque, como se sabe, não é possível traduzir – por outras palavras: só é possível traduzir, como de resto ostenta novamente Leopoldo María Panero, para quem uma “mulher velha” no texto-fonte é uma “mulher nova” no texto-alvo, ou vice-versa (e, acrescento, ainda bem que assim é!). Enfim, não há uma moral nem um proveito na publicação e arquivo destas inscrições latrinadas ou postadas – quando muito manifestam aquela consabida verdade de que tudo no mundo acabará no “branco” de latrinae (o problema continua a ser o da liberdade, não é?, sendo pouco ou nada relevante que o seja em contexto letrado). As inscrições compartilham com as chamadas belles lettres um traço de somenos importância: as “verdades” que encontramos num discurso e noutro são “garden variety truths” (Stolnitz, e.g.). Outra coisa não se aprende em latrinae de universidades, bibliotecas e outras instituições afins, que têm aí o lugar de todas as epifanias. Para completar o círculo: é talvez por essa razão que podemos encontrar muitas e boas citações de beletristas em portas, estuques ou azulejos “brancos” de um mundo infinitamente escavacado. Eis, pois, alguns desses bocados retroactivos passados a limpo.

Humanísticas (XII)*

«Não te preocupes. Enganar é humano.»

(Conversa ouvida na rua.)
*Enciclopédia de Bolso do Groucho, bloco-notas A5, capa preta, fl.12a, bolso esquerdo da camisa azul em xadrez fino.

Contraparte de nada

A quem deixarás

as ossadas que sobraram?

Mal de pé, mal
coração em silêncio
último sopro
em desequilíbrio
(último sonho)

e resta assinar,
lobo,
a grande neve pisada
do segredo.

Droláticos e pilheriáticos




FENNEMAN: Groucho, we have a couple of special guests with us —
GROUCHO: Mr. Marx, if you please. Do I call you Groucho?


[do quiz show You Bet Your Life]


De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fl. 112c.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Ecstasy: 1. Atinge-se por via do álcool, do sexo ou da religião. 2. Há uma pastilha, com esse nome, que faz com que se chegue lá num ápice. 3. Com música techno cai melhor.

Édipo: 1. Arrancou os olhos quando se apercebeu de que tinha matado o pai para dormir com a mãe. 2. Na verdade, se não fosse tão cegueta ter-se-ia apercebido de que ela tinha idade para ser sua mãe. 3. Um tipo dado a gestos patéticos e demagógicos. 4. Freud (v.), um hermeneuta sempre excessivo, fez dele uma personagem dramática muito mais importante do que alguma vez pensou poder vir a ser. 5. Exemplo a não seguir, de todo.

Eduquês: 1. Quem sabe disso é Maria Filomena Mónica (v.). 2. Helena Matos (v.) e Maria de Fátima Bonifácio também sabem alguma coisa. 3. Os professores comem disso mas não sabem. 4. Quanto ao pessoal das Ciências da Educação (v.), «Perdoai-lhes, Senhor, que não sabem o mal que fazem».

E-learning: Aprender inglês pela net.

E-mail: 1. Segundo o Dicionário da Academia, deve antes dizer-se «correio electrónico». Por exemplo: «Recebeste o meu correio electrónico, doçura?». 2. Os brasileiros chamam-lhe imeio e os espanhóis Emílio. Os portugueses chamam-lhe imeile. 4. Serve para tudo (amor, negócios, circulares, etc.), economiza em papel e selo e ainda permite que se lhe pendurem anedotas visuais sobre Bush (v.), Bin Laden (v.) ou Durão Barroso (v.) e fotos de mulheres nuas. 5. O problema vai ser depois, quando se quiser editar a «Correspondência Completa» dos escritores de hoje. Sobre este dilema filológico, consultar Ivo Castro.

29 julho 2005

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 8

- Tenho aqui um.
- Um queh?
- Um diacrItico.
- Entan-u mostre lah!
- Primeiro, tem de fechar os olhos...
- Fechar os olhos?
- Nan-u me diga que nan-u gosta de surpresas?
- Apanhou-me bem disposto, E a sua sorte.
- Fechar os olhos e abrir as man-us...
- Homem, voceh nan-u faz nada por menos?
- O que E que quer dizer?
- O costume: que isto nan-u ata nem desata.
- Mas diga lah se nan-u foram uns dias bem passados?
- Que dias?
- Os dias crIticos.
- Voceh nan-u se consegue explicar, pois nan-u?
- Eu?, se E tudo claro como um fio de ahgua.
- Esta conversa E que estah por um fio.
- Nan-u me diga que se vai embora sem ver.
- Sem ver o queh?
- O que eu tenho aqui para lhe mostrar.
- Estah a ver qual E o problema? San-u estes cIrculos constantes.
- Que cIrculos?
- Os cIrculos viciantes!
- Viciantes?
- Sim, sim: resposta, pergunta. Pergunta, pergunta. Resposta, resposta. Pergunta, resposta. Perde-se o fio.
- O fio da conversa?
- Nan-u, o fio de ahgua!!!...
- Claro, claro. Agora entendo o que quis dizer.
- Mas eu nan-u quis dizer nada, caramba. Vah, mostre o que traz aI.
- Primeiro, tem de fechar os olhos e abrir as man-us.
- Que tal assim? (Espero que ninguenm esteja a ver)
- Vou deixah-lo cair para as suas man-us. Cuidado, que vai sentir o diacrItico.
- Nan-u sinto nada.
- E agora?
- Nada de nada. Soh este crIptico dia!

Desaforos


/…/ nenhum mal é tão grande que pior não pudesse ser. O desaforo vulnera. A insensibilidade pode ser pior do que a morte. Por exemplo. Manuel António chegou ao consultório ainda antes da hora marcada: ia saber o resultado de diversas análises, e estava naturalmente ansioso. Mas preparado para o pior. (O pior havia de vir, sim.) O médico anuncia-lhe então que sofre duma doença mortal e rara e que não tem mais do que um dia de vida. Manuel António chega a casa sereno. Conta à mulher, que se mantém serena (ou estupefacta, às vezes acontece). Vendo-a sem reacção, Manuel António pergunta-lhe: — Achas que hoje podíamos ir para a cama mais cedo e rebolar no palheiro como nos velhos tempos? A resposta foi a óbvia: — Claro, é a tua última noite. Assim se deu. Duas horas depois de se ter dado, Manuel António acorda a mulher: — Olha, mais uma vez…? E assim se deu. Duas horas depois, Manuel António acorda a mulher: — E outra…? Duas horas depois, nova solicitação, e a resposta da mulher: — Porra, Manel, vê-se mesmo que não tens que te levantar cedo amanhã!

F. A. Leite
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Ecologia: 1. Rima sempre com verde. 2. A última utopia global do nosso tempo. 3. Aplica-se a quase tudo (agricultura e pescas, energia, construção civil, sofás, roupa, alimentação, estilo de vida, etc.) e é uma reivindicação do exacto oposto daquilo que existe, quase sempre com prejuízo para o conforto dos cidadãos. 4. Exige muita paciência. 5. «Um dia, beberemos todos água da fonte, comeremos tremoços, andaremos em carros movidos a estrume, ofereceremos prendas não embrulhadas, leremos os jornais apenas na net e faremos sexo com preservativos reciclados». 5. Já chegou às Ciências Humanas, e não apenas: Ecologia Linguística, Ecologia Psicológica, Ecologia Literária, Arquitectura Ecológica, Ecologia Antropológica, etc. Nestes usos, significa em geral cuidados a ter no manuseamento do objecto (ou então higiene e políticas antipoluentes).

Ecumenismo: 1. Não tem a ver com comunismo (v.). 2. Diz respeito a uns encontros de prelados de todas as religiões em Assis, com apresentação do Papa (v.) e transmissão em directo na TV. 3. De acordo com ele, todas as versões de Deus (v.) – a dos católicos, a dos protestantes, a dos ortodoxos, a dos judeus (v.), a dos muçulmanos (v.), etc. – mantêm relações de parentesco, ainda que por vezes a sua árvore genealógica seja problemática.

Economia: 1. Vai mal, mas já esteve pior. 2. «O Estado não apoia as empresas como devia, esse é que é o problema».

Economia política: 1. Disciplina do tempo dos dinossauros, quando os debates políticos desprezavam gráficos, percentagens, índices e personagens como Campos e Cunha ou António Borges. 2. «Sem a devida consideração pelos fundamentos e avaliações da ciência económica, a política é apenas ideologia e irrealismo». 3. Não existe, pois há uma contradição entre os dois termos. Noutra versão, mais kantiana: Não deve existir!

Retorno on jokes

— Groucho, meu caro, muito bom dia.
— Ah, bem disposto. É a segunda vez em dois meses! Aposto que vai a caminho duma marca inultrapassável… Tem treinado, é?
— Não faça espírito. Venho contente porque o apanhei em flagrante… Agora vai ter que me dar uma explicaçãozinha bem convincente.
— Meu caro senhor, estou ao dispor. As explicações não são o meu forte, mas farei o que puder. Não quero estragar-lhe a boa disposição.
— Então, repare nisto. Ontem, veio com uma conversa estúpida sobre anedotas, que divulgam ideias abomináveis a coberto do anonimato, e sob pretexto da graça, e não sei que mais. Lembra-se?
— Foi ontem…
— Pois, foi ontem. Aquilo alertou-me logo, mas não percebi imediatamente porquê. Havia ali um sinal de discrepância… Já de madrugada percebi o que era. Fui rever a gravação da sua prestação televisiva…
— Oh não! Outra vez…?
— Lastimo, tem que ser. E há um momento em que o meu caro Groucho diz expressamente, a respeito das anedotas de alentejanos, que não é preciso acreditar que são estúpidos como as anedotas os dizem: mais especificamente, fala até em crença poética . Depreendo mal ou isso significa que a estupidez dos alentejanos é apenas, deve ser apenas, uma crença estipulada para efeitos de construção da anedota? E que a diferença relativamente aos verdadeiros alentejanos tem também que ser percebida? E que por isso essas anedotas existem por todo o lado, os alentejanos apenas um lugar vazio, que pode ser ocupado por belgas, canadianos, franceses, irlandeses, polacos, etc?
— Depreende bem, meu caro senhor. E daí?
— E daí? Daí que as anedotas não tenham esse papel que lhes imputou ontem de disseminar falsidades e noções condenáveis… pois se não é preciso acreditar… Venha lá a explicação.
— O senhor confunde as coisas. Está bem disposto, e ainda bem, mas confuso. Ora, eu não dou explicações a espíritos confundidos. É perda de tempo. Com licença.
— Venha cá, homem, não vá embora… Groucho…

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 7

- Quem estah aI?
- ...
- Voceh, Groucho?
- ...
- Jah chegou?
- ...
- Responda, Groucho!
- ...
- Nan-u se esconda.
- ...
- Soh pode ser voceh.
- ...
- Pensei que vinha mais logo ah tarde.
- ...
- Mas estava a ficar ansioso, sabe?
- ...
- Groucho, estah a ouvir?
- ...
- Responda, Groucho!
- ...
- Dizia-lhe que hoje veio mais cedo do que eu esperava.
- ...
- Olhe, mas ainda bem, pois eu estava a ficar ansioso.
- ...
- Nan-u responde, mas eu sei bem que estah aI.
- ...
- Jah arranjei um para lhe mostrar.
- ...
- Estah a ouvir?
- ...
- Estou a dizer que jah tenho um para lhe mostrar.
- ...
- Passahmos do diahlogo de surdos para o diahlogo de mudos.
- ...
- Que dia!
- ...

Droláticos e pilheriáticos



Marriage is a wonderful institution... but who wants to live in an institution?

Groucho Marx

De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fl. 58d.

28 julho 2005

Equivalente geral de troca*

«Duas velhas Americanas apoderam-se à força de um velho, alto e cego, e fazem-no atravessar a rua. Mas o que aquele Édipo teria preferido, seria dinheiro: dinheiro, dinheiro, e não auxílio.»

Roland Barthes, Incidentes (traduzidos por Tereza Coelho e Alexandre Melo)
*Enciclopédia de Bolso do Groucho, bloco-notas A5, capa vermelha, fl.18, algibeira de trás das calças de linho.

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 6

- Isto nan-u pode continuar.
- Isto?
- Sim, este dia.
- Porqueh?
- Ainda pergunta, Groucho?
- Estah a atingir um ponto crItico.
- Entan-u e o som que se ouvia?
- Esquessa isso.
- E o dia da marmota?
- Esquessa.
- E o sino que tocou?
- Esquessa, jah disse.
- Pronto, jah cah nan-u estah quem falou.
- A que E que se refere?
- Nan-u me refiro a nada.
- Como a nada?
- Era uma maneira de dizer.
- De dizer o queh?
- Olhe, que nan-u se pode falar consigo.
- E depois diz que sou eu...
- Concordo consigo.
- Concorda comigo?
- Sim, acho que isto nan-u pode continuar.
- Mas isto o queh?
- Voceh foi o primeiro a dizeh-lo.
- A dizer o queh?
- Que isto nan-u pode continuar.
- Ah, sim, pois, nan-u pode, nan-u.
- Sempre fui dessa opinian-u.
- Isto atingiu um ponto de nan-u retorno.
- Um ponto crItico.
- Cada dia que passa mais crItico...
- Mais dia crItico...
- Este dia a dia sem diacrItico.
- Que crIptico!
- Que dia!

Leis do cargo

- O senhor já sabe das eleições presidenciais na Guiné?
- Não, Groucho. Então quem ganhou?
- O Nino Vieira, imagine.
- Admirável povo, que assim acolhe quem antes expulsou. No hard feelings, pelos vistos.
- Nenhuns, mesmo. Mas sabe o que me ocorreu?
- Diga.
- É que até aqui todos os presidentes da Guiné acabaram depostos. Uma espécie de lei do cargo. E agora, pelos vistos, estamos a assistir ao oposto: os presidentes depostos acabam por ser reempossados.
- E acha o meu amigo que se gerará assim uma nova lei do cargo? Ainda poderemos ter de novo o homem do barrete vermelho, aquele Kim…
- Kumba Ialá, senhor. O do Livro de Pensamentos.
- Esse mesmo. Acha que ele ainda voltará a ser presidente?
- Quem sabe… Só que para que isso aconteça é preciso que a lei anterior prevaleça.
- Pois, percebo: para que o regresso de Nino ao poder se possa afirmar como lei geral (todos os presidentes depostos acabarão reempossados) é necessário que a lei anterior permaneça (todos os presidentes eleitos acabarão depostos).
- Exacto. Só assim se assegurará a rotação de lugares na versão guineense da democracia.
- Que tem algumas virtudes, não acha? Pense no Jardim, que já ameaçou voltar ao poder post mortem, numa próxima reencarnação…
- Nem mais. Bem vistas as coisas, nem sei o que será melhor: se o sistema madeirense, se o guineense.
- Pois eu cá não tenho dúvidas: antes a Guiné na Madeira. Ou o Jardim na Guiné.
- Era o ideal. Mas, sabe? Estou convencido de que se ele fosse eleito presidente da Guiné, as leis locais da rotação de cargos acabavam suspensas para sempre…
- Grrrr! Coitados dos guineenses. Já viu o pesadelo que os espera? Verdadeiramente neo-colonial, meu caro. Antes o Nino. Ou o Kumba.

Alba on jokes*

Em manifesta afobação:
— Que coisa, esses papeluchos que anda a colar pelas paredes… É mesmo preciso?
— Qual é o problema, Groucho?
— Desfeiam o ambiente, dão a isto um ar desarrumado…
— Sabe aquela história do homem que foi ao médico porque…
— Não, não sei. Nem quero, desculpe. O problema é justamente esse. Quero é saber se posso retirar os papeluchos.
— Essa agora! Deu-lhe a mania da arrumação, ou da limpeza? Para que raio quer as paredes limpas?
— Não tenho que querer nem deixar de querer, senhor. Prefiro-as limpas, visto que sou eu que tenho de tratar delas…
— … eu que ou eu quem?
— Por favor, senhor, por favor. Não é hora para isso. O que eu não quero mesmo é anedotas afixadas nas paredes. Acho impróprio.
— Depreendo mal ou não gosta de anedotas?
— Depreende muito bem. As anedotas são uma coisa abominável, a forma mais degradada de humor, se humor se pode chamar. Coisa de primitivo. Ou terá o senhor a audácia de me dizer que são uma forma de arte, ou de literatura…?
— Eu não digo nada, Groucho. Afixo-as pelas paredes em papeluchos. Quem não quiser não lê, quem não achar piada não acha… eu apenas as divulgo.
— Mas isso é o que há de terrível na anedota! Por isso as abomino tanto. Toda a gente as divulga como se não tivesse nada que ver com elas. Espalham noções repugnantes sob o pretexto de que têm graça. Mas ninguém é mero veículo. Essa ideia é muito irresponsabilizadora, se quer saber.
— Já ouvi dizer. Mas é o que aprecio nas anedotas: não têm autor e quem as conta não se constitui autor delas. Há muitas razões para valorizar esse apego ao anonimato.
— Literatura tradicional… é isso? Era só o que faltava!
— Não, Groucho. Por que diabo tem que catalogar, classificar, discriminar? Aprenda a ouvir anedotas, ou ouça-as sem aprender, e esqueça o resto. Ou então, se não consegue, contente-se com coisas vagas. Algumas engraçadas. Um linguista poderia dizer que a anedota é um comportamento verbal. Um filósofo americano, quem sabe, diria que é um dispositivo conversacional. Um antropólogo…
— E o inconsciente, senhor o inconsciente? Já pensou na relação das anedotas com o inconsciente?
— Não, Groucho, isso é que nunca.

*Aka Early fuckink blogs

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

DNA: 1. Suplemento ilustrado do Diário de Notícias muito elogiado por Eduardo Prado Coelho (v.). 2. Também é uma estrutura em hélice bem bonita, com umas bolinhas coloridas. 3. Está lá tudo, até mesmo a cor dos olhos dos filhos que um dia havemos de ter (ou não). 4. A última fronteira.

Doping: 1. Pratica-se, ao que parece, no ciclismo. 2. Citar Joaquim Agostinho: «Ninguém sobe os Alpes apenas a comer bifes». 3. Exagera-se muito o seu impacto no mundo do desporto.

Duchamp, Marcel: 1. Famoso designer de urinóis. 2. Também gostava de se vestir de mulher. 3. Passava a vida a jogar xadrez.

Durão Barroso: 1. Como toda a gente sabe, é muito dado às artes. 2. Gosta também muito de Maria Gabriela Llansol (v.) e de Alexandre O’Neill (v.). 3. Gosta de passar férias em boas companhias. 4. Foi, na juventude, o terror da Faculdade de Direito(a) de Lisboa. 5. Zangou-se com o grande timoneiro Arnaldo Matos por causa de uns móveis pilhados da mesma Faculdade, cuja posse reivindicou. 6. Após uma travessia do deserto, na Suíça, acolheu-se ao oásis cavaquista. 7. Deixou o governo de Portugal por sentido de missão e para impor ao mundo o nome do país. 8. Está a deixar a sua marca na Comissão Europeia e na UE (v.).

Minority report, primeira parte

O presidente do Consejo General del Poder Judicial (Estado Espanhol), Francisco José Hernando, fazia há dois dias na Universidad Rey Don Juan Carlos as seguintes declarações (eu traduzo): “Como tenho vindo a argumentar muitas vezes, estamos perante a Terceira Guerra Mundial, que é a guerra contra o terrorismo; ora, numa guerra há que criar situações extremas, estando eu contra a pena de morte como é natural. Mas quando o risco que se pretende evitar é maior ou pode produzir a morte de inocentes, evitar o risco [em espanhol: la evitación del riesgo] parece-me oportuno”. Hernando comentava, específica e explicitamente, a recente morte do jovem brasileiro em Londres e a “política” do mata-primeiro-e-pergunta-depois. Estas declarações provocaram uma imediata e visível rejeição, tanto por parte da classe política (não toda) como por parte do colectivo de juízes (concretamente, dos sectores progressistas). Ontem, como seria de esperar, o magistrado voltou a intervir na praça pública, argumentando não terem sido bem compreendidas as suas palavras. O jovem brasileiro tão-pouco “foi bem compreendido”, mas já não pode fazer valer o direito a ser bem compreendido. Interessar-me-ia infinitamente mais poder ouvir o jovem abatido no metro de Londres, interessa-me bem menos as declarações do Francisco José Hernando. Mas elas entram-me em casa, são agressivas – entre muitas outras razões – pelo banais que são, pelo demasiado bem que se compreendem. O que primeiro chama a atenção é a astúcia e a premeditação das primeiras declarações, que antecipavam já as declarações que vieram apelar a ser “bem compreendido”. Note-se que as primeiras declarações incluem a afirmação “estando eu contra a pena de morte como é natural”. Nas segundas declarações, nas declarações de ontem, Hernando sublinhará especialmente aquela afirmação categórica, o que – palavras suas que novamente traduzo – “torna óbvio que não é admissível que causar uma morte possa ser utilizado como instrumento policial na luta contra o terrorismo”. Naturalmente contra a pena de morte, obviamente contra uma “política” anti-terrorista baseada no “shoot to kill”. A questão é: por que razão coloca na sintaxe das primeiras declarações o tema da “pena de morte” se, como viria a dizer, essa figura nada tem a ver com a morte no metro do jovem brasileiro? Mas há mais, muito mais. Como dizia o espanhol Espinosa, um homem tem o direito de ouvir outro homem, registar o que diz, para lhe poder resistir.



* Traduzo as declarações do presidente do CGPJ a partir de notícias da Agencia EFE.

27 julho 2005

A arte de ler sinais, 2

/…/ de modo que são estas as dificuldades dos sinais de cima para baixo. Outra vez a contribuição judaica, imprescindível. Grandes chuvas durante semanas consecutivas. A povoação de K*.*, na margem do rio, está ameaçada de inundação e é evacuada. Saem todos, excepto o rabino K..*., que se recusa invocando que Deus o protegerá como sempre fez. Mas o nível das águas sobe: o rabino tem que subir ao primeiro andar. Chega um barco pneumático, os bombeiros que querem levá-lo: manda-os embora, firme, com a mesma razão, Deus o protegerá, sempre teve fé, etc. O nível das águas continua a subir. Outro barco, agora da polícia, também em vão: o rabino fica, mas vê-se obrigado a trepar ao telhado. Enfim, a casa praticamente submersa, barco potente da polícia marítima: quase o ameaçam com armas, mas o rabino fica. Acaba por ser levado pelas águas, bem turbulentas, e morre afogado. Chegado ao céu, vai logo protestar junto do trono do Senhor: — Como pudeste fazer-me isto, a mim, de fé inabalável toda a vida, porque não me protegeste quando estava em perigo? E a voz irada (atenção! é aqui que entra a arte de ler sinais):
— Meu grande idiota! Mandei três barcos!

J. Katz Ferreira
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

A arte de ler sinais, 1

/…/ de modo que a arte de ler sinais se divide em dois ramos: a de ler os sinais emitidos de cima para baixo e a de ler os sinais emitidos de baixo para cima. Consideremos a contribuição judaica, imprescindível. Sinais de baixo para cima, primeiro. Jacob era extremamente pobre. Nem tinha casa, vivia de ajudas esporádicas. Um dia, comprou um bilhete de lotaria e ganhou o primeiro prémio, uma fortuna enorme. Comprou logo casa em local central, um duplex mobilado, moderno. Pediu ajuda para se vestir com roupa elegantíssima. Um Mercedes, último modelo, foi a última aquisição. Tudo pronto, casa organizada e habitada, decidiu-se, enfim, a sair à rua. Quando pôs o pé no passeio, um autocarro desgovernado passou-lhe por cima. Morreu, claro. Mas pouco antes de expirar, olhou o céu, perguntando: — Senhor, agora que eu ia ser feliz, porquê eu? E uma voz faz-se ouvir, vinda de cima: — Ó homem, desculpa, não te reconheci.

J. Katz Ferreira
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 5

- Chiu!
- Nan-u disse nada.
- Estah a ouvir?
- O queh?
- O dia.
- O diacrItico?
- Nan-u, o dia.
- O dia?
- Estah a ouvir?
- Nan-u oisso nada.
- Mas ouve-se perfeitamente.
- O meu ouvido jah nan-u E o que era.
- Chiu!
- Ah! Agora estou a ouvir qualquer coisa.
- Fale mais baixo... fale mais baixo...
- Estou a ouvir um rumor... um som abafado, E este?
- Nan-u, nan-u E esse.
- Soh oisso esse. Nan-u consigo ouvir mais nada.
- Mas ouve-se tan-u bem, Groucho.
- Isso E o que o Sr. diz.
- Chiu! Estah a ficar mais forte agora.
- Agora estou a ouvir... um murmuhrio que se ouve lah ao fundo, E este?
- Nan-u, nan-u E nada disso. Voceh nan-u escuta com atensan-u
- Espere, espere... estou a ouvir outro som.
- Outro som? Como outro som?
- Parece um fiozinho de ahgua a correr numa caleira lah fora.
- Nan-u oisso nada.
- Quer dizer que deixou de ouvir aquele som?
- Qual som?
- O som que estava a ouvir.
- Nan-u, esse ouve-se lindamente.
- Que som E esse afinal?
- Cale-se, e escute.
- Se nan-u se ouve nada...
- Que dia!
- Que crIptico!

Uma ideia presidenciável

― Que lhe pareceu esta disponibilidade do Manuel Alegre para se candidatar à Presidência da República? Entusiasmou-se com a ideia de ter um poeta à frente dos destinos do país, Groucho?
― Eu, a bem dizer, não tenho país, sabe? Mas não foi por isso que me faltou o entusiasmo.
― Ah o senhor não se…?
― Não, não me…
― Pensei que…
― Pois, pensou mal. Poetas no poder parece-me… enfim…
― Estou a ver, estou a ver…
― Talvez se… bem… não quer dizer que… mas talvez se…
― Se fosse outro género de poeta, é isso que quer…
― De maneira nenhuma, não é isso que eu… Estava a pensar que… se calhar, o senhor não vai gostar que eu diga isto, não sei…
― Ora essa, Groucho, eu sou um homem de espírito aberto e…
― Sim, mas o problema não está no espírito, está nisso…
― Nisso o quê?
― Nisso de ser um homem… É que, precisamente, a minha ideia era que…
― …
― …que o ideal era que houvesse nestas eleições uma mulher a candidatar-se.
― Uma mulher?! Que raio de…
― Essa sua surpresa confirma o meu pensamento. Se avançasse uma mulher com capacidade real para disputar o lugar de Presidente da República, algo de verdadeiramente novo aconteceria em Portugal. Não seria apenas um acontecimento político da maior importância mas, mais do que isso, um acontecimento histórico e até creio que não exagero se disser que haveria aí uma mudança social, enfim, relevante. Sobretudo se essa senhora (e o problema é que não estou a ver quem poderá ser…) ganhasse de facto as eleições.
― Tem de concordar que é um critério muito discutível. A verdade…
― (em surdina) O problema é que não é só aí que faltam mulheres.
― O que é que está para aí a dizer, Groucho?
― Nada, nada. Como dizem os retroseiros, estava só a falar com os meus botões.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Direita: 1. Cavaco Silva (v.) não é disso. 2. Marcelo Rebelo de Sousa (v.) também não. 3. Marques Mendes também não. 4. Durão Barroso (v.) também não. 5. Santana Lopes (v.) também não. 6. Pacheco Pereira (v.) também não. 7. José Manuel Fernandes (v.) também não. 8. José Sócrates (v.) também não. 9. De Freitas do Amaral (v.) nem é bom falar. 9. Zita Seabra (v.) é, convictamente (o que não surpreende). 10. Paulo Portas (v.) já foi mais.

Direito de Ingerência: Os americanos invocam-no quando invadem mais um país.

Direito Internacional: Muito invocado pelo resto do mundo quando os americanos invadem mais um país.

Divórcio: 1. Primeiro, é preciso casar. 2. Depois, é esperar.

DJ: Nome recente para os apresentadores de programas de Discos Pedidos.

Humor ou falta dele

Certas coisas serão sempre tão tristes que para elas não haverá solvente universal.

Propostas reformadoras, 4

/.../ e daí o estado da saúde em Portugal. Aliás, ainda ontem soube do caso de quatro médicos que foram caçar patos. Sendo inteligentes e ordeiros, decidiram que iam disparar por ordem, em vez de todos ao mesmo tempo, quando surgissem patos na linha de fogo. Estipularam a ordem habitual: do mais generalista para o mais especializado. O primeiro seria o clínico geral, o segundo o internista, depois o cirurgião e, por fim, o patologista. Aparece o primeiro pato, e o clínico geral nem chega a fazer pontaria: — Não consegui perceber se era um pato ou não, justificou-se. Segundo pato, e o internista aponta, enquanto fala: — Voa como um pato, faz barulho como um pato, parece um pato, mas será um pato?... e o pato desaparece. Terceiro pato, e o cirurgião descarrega prontamente a espingarda, fazendo-o em pedaços. Depois olha para o patologista e diz: — Vai ver se era um pato.

Tiago F. P.
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

Propostas reformadoras, 3

/.../ e daí o estado da matemática em Portugal. Aliás, como se distingue um físico de um matemático, sabem? Faz-se um teste simples: mandá-los resolver certo problema no meio da serra de Monsanto. O problema: ferver um pouco de água numa cabana ali colocada para o efeito. Na cabana, haverá uma torneira com água corrente e uma pia, um púcaro de alumínio, um fogão a gás e fósforos. O físico chega, enche o púcaro, coloca-o no fogão, acende o lume e deixa que a água ferva. O matemático faz o mesmo. Até aqui, não se distinguem. Segunda fase: coloca-se o púcaro já com água no fogão. O físico chega, acende o lume e espera que a água ferva. O matemática chega, despeja o púcaro na pia e assim reduz o segundo problema ao primeiro, que já tinha sido resolvido.

Tiago F. P.
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

Propostas reformadoras, 2

/.../ daí o estado do ensino universitário em Portugal. Aliás, ocorre contar a experiência de certo país, que podia ser Portugal, mas não era. O ministro do ensino superior reuniu a sua equipa: o objectivo era reduzir drasticamente o ensino universitário público a um único curso, e que fosse muito barato. Nada de laboratórios sofisticados. O primeiro adjunto sugeriu direito, e o ministro recusou: já havia muitos juristas, seria irónico e até imoral multiplicá-los por medida de economia. Outro adjunto propôs matemática: só precisam de papel, lápis e um cesto de papéis. O terceiro adjunto teria vencido se se tivesse libertado duma alternativa: filosofia ou literatura, porque esses nem precisam de cesto de papéis.

Tiago F. P.
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

Propostas reformadoras, 1

/.../ daí o estado da engenharia portuguesa. Aliás, aconteceu certa vez que três catedráticos de engenharia saíram juntos da sua universidade para um encontro da ordem dos engenheiros. Iam no carro dum deles, a fim de poupar combustível. Mas o carro não pegava. O catedrático de electrotécnica diagnosticou logo: é o sistema eléctrico. O catedrático de mecânica contrapôs com firmeza: não, isto é avaria mecânica. O catedrático de informática venceu: e se nós saíssemos e voltássemos a entrar?

Tiago F. P.
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»

26 julho 2005

Escrutínio


Sorrateiro, dir-se-ia caviloso.
— Muito me admiro, senhor, muito me admiro. O dia todo agarrado a esses dossiers… ninguém lhe ouviu um pio!
— Pois, Groucho, eu próprio me admiro. Estou a ver os curricula dos candidatos…
— Eu sei, senhor, eu sei. Fui eu que os distribui, que diabo! O que me admira é que isso o retenha assim.
— É que estes dossiers têm material impressionante. Há aqui gente de muito valor. Que fez muita coisa, apesar de relativamente nova, e gente que, à falta de curriculum em quantidade, apresenta textos, monografias, pequenas teses. Olhe este aqui, que acabei de ler, de Jacinto H. Silva, uma pequena dissertação sobre «os hábitos gramaticais dos portugueses»…
— Que raio é isso?
— Só lendo. Muito inteligente. E este texto, assinado T. P. Jorge Ferreira — deve ser pseudónimo —, veemente manifesto contra «a mania da correcção». E até li hoje um artigo sobre hidráulica urbana, acredita?
— Acredito em tudo, senhor. Quer dizer que em breve vamos ter a casa cheia de gente nova?
— Isso é outra coisa, Groucho. São todos brilhantes, para dizer quase tudo. Mas falta-lhes… falta-lhes tédio, aborrecimento, certo enfado…
— Casmurrice? É casmurrice que lhes falta?
— Não sei... Nem devia falar disto consigo. Mas note. Há uns que se apressam a expor explicadamente todas as ideias que lhes acontecem; ainda sendo muitas e curiosas, enfada, tanta exposição. Outros prometem mudanças, propõem medidas, regras, regulamentos, como se precisássemos de novos membros para organizar uma coisa inorganizável. Querem mudar o mundo antes de almoço. O mais numeroso é o grupo dos solenes: escrevem uma facécia ligeira, e logo correm a esclarecer que brincavam, e desdobram-se em comentários destinados apenas a persuadir-nos de que são gente séria. Uma seca, Groucho. Aterroriza-os... receiam que imaginemos que só sabem contar anedotas, e insistem em comprovar que têm ideias sobre o mundo e o país, a política e a educação, o sexo e a arte, o diabo! Uma seca…
— Já estou a ver que, por si, ninguém entra.
— Não disse isso, Groucho. Alguns são susceptíveis de aperfeiçoamento, e afinal trata-se de um estágio sem compromisso. Mas ainda não lhe disse tudo, nem posso… sabe? há umas quantas surpresas…
— Deveras? Conte, vá, conte.
— Não posso, Groucho. Tenho que ouvir os meus colegas, a decisão é colectiva.
— Hum…

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 4

- Jah sei, Groucho...
- Jah sabe?!
- Como posso...
- Como pode?!
- Sair deste dia.
- Ah!
- Estah a ver?
- Se voceh o diz.
- Digo. Pois digo, digo, e o Sr. sai comigo.
- Saio?
- Sai.
- Sai.
- Saio. Devia ter dito saio.
- Mas o Sr. E que diz o que eu digo?!
- Calma, calma. Nan-u queremos outro dia crItico.
- Lah estah outra vez!
- Lah estou outra vez...
- Nan-u me repita, porra!
- Calma. Sangue frio, cabessa fria, pehs frios, tudo frio. Nan-u se irrite.
- Isto parece o dia da marmota.
- O dia da marmota?
- Se nan-u fossem estes ecos.
- Estes ecos?
- Nan-u ouve? O dia da marmota, o dia da marmota. Estes ecos, estes ecos.
- Agora E que nan-u estou a segui-lo.
- Olhe, sabe que horas san-u?
- Porque pergunta, Groucho?
- A sua resposta diz tudo.
- Mas eu nan-u respondi.
- Assim E que nan-u E possIvel. Tem de haver um common ground, ou nan-u?
- Common ground??
- Sim, um terreno comum. Uma base. Uma plataforma.
- Voceh deixa-me perplexo.
- Se E assim, cale-se. Nan-u diga mais nada.
- Que crIptico!
- Que dia!

Droláticos e pilheriáticos




WOMAN: Well, I know what I’d like to be.
GROUCHO: What would you like to be, honey?
WOMAN: A race car driver.
GROUCHO: A race car driver. There’s the way it goes — here’s a girl who’s perfect for parking, and all she wants to do is racing.


[do quiz show You Bet Your Life]

De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fl. 35d.

Morning glories

As ipomeias inglesas chamam-se morning glories.
Whitman fala-nos de uma ipomeia à sua janela no "Song of myself".

Eu não gosto de Whitman.

Mas gosto da palavra ipomeia
porque desconheço o seu referente.

A submissão ao tangível destrói
o sonho da linguagem.

[para F.]

O fantasma

— ... e a minha vida mudou, mas mudou para muito melhor, desde que me libertei do fantasma do sexo. O senhor já devia ter feito o mesmo, na sua idade.
— Eu?
— Sim, o senhor.
— Não vai ser fácil. Ainda vou na fase em que até os fantasmas têm sexo.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Diferença: 1. Os machistas, mesmo os anglófonos, gostam muito de dizer «Vive la différence!». 2. «De facto, seja qual for o ângulo pelo qual as consideremos, as mulheres são diferentes dos homens». 3. Por um lado, é fundamental enfatizar as diferenças; por outro, é fundamental recensear aquilo que nos torna iguais apesar das diferenças. 4. Depende muito do contexto. Exemplo 1: «A diferença entre Filipe Vieira e Dias da Cunha é que o primeiro enriqueceu a vender pneus e o segundo a vender carros». Exemplo 2: «Em termos de posição quanto a Pinto da Costa, a diferença entre Filipe Vieira e Dias da Cunha é escassa».

Différance: 1. Erro ortográfico muito frequente em Derrida. 2. Refere-se àquelas diferenças imperceptíveis que moem mas nada trazem de diferente. 3. É coisa que quase só existe em França.

Dinheiro: 1. Nunca é bastante, e Belmiro de Azevedo que o diga. 2. Os protestantes gostam mais dele do que os católicos. 3. Os judeus gostam ainda mais dele do que os protestantes. 4. O de plástico tem a vantagem de não se confinar ao montante da conta bancária.

Diplomacia: 1. Actividade fundamental para a prevenção de conflitos internacionais. 2. Consegue produzir belos acordos de paz antes e depois das guerras.

Diplomatas: Senhores engravatados e sempre sorridentes, mesmo que um esteja a dizer ao outro que o céu lhe vai cair em cima da cabeça.

25 julho 2005

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 3

- Groucho, sabe, por acaso, o que E um diacrItico?
- Nan-u acredito. Estou capaz de me suicidar.
- Nan-u me diga. O que E que se passa?
- Nan-u se passa nada.
- Mas entan-u, o suicIdio?
- Qual suicIdio?
- Qual hah-de ser? O seu, homem, o seu.
- Era uma forsa de expressan-u.
- Ah, bom! Estava a ficar preocupado.
- Com queh?
- Consigo, Groucho. Consigo.
- Consegue o queh?
- Lah estah voceh a confundir as coisas.
- O que hei-de fazer?!, se estamos sempre aqui parados...
- Aqui parados como? O que estah a insinuar?
- Nan-u estou a insinuar nada, caramba! Voceh E que nan-u se mexe!
- O senhor E que disse que se matava. Que culpa tenho eu?
- Jah lhe disse que era uma forsa de expressan-u. Avansamos?
- Mas para onde E que o Sr. quer ir?
- Nan-u acredito. Estou capaz de me suicidar.
- Outra vez! Mas que E que se passa? Nan-u tenha receio. Desembuche.
- Jah lhe disse, era uma forsa de expressan-u.
- Ah, bom! Estava a ficar preocupado.
- Com queh? Consigo, Groucho?
- Sim, tambenm, mas nan-u soh.
- Diga, diga o que tem a dizer. Nan-u seja crIptico.
- Era mesmo aI que eu queria chegar.
- Entan-u chegue. Que os leitores estan-u impacientes.
- Quais leitores?
- Deus me valha! Os leitores destes diahlogos.
- Pensei que a conversa era soh entre nohs os dois.
- E E.
- Groucho, entan-u jah nan-u percebo nada.
- Pois se E assim, homem, nan-u fale. Nan-u diga nada.
- Que dia!
- Que crIptico!

Droláticos e pilheriáticos



The secret of success is honesty and fair dealing. If you can fake those, you got it made.

Groucho Marx


De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fl. 212b.

TT

...we are
wise enough
to know that our brains
will become
downy pillows...


Tristan Tzara

Iminências e Eminências (II)

- Então Soares deixou de estar iminente?
- Eu peço desculpa, mas quem deixou de estar iminente foi Manuel Alegre.
- O meu amigo não há maneira de entender a semântica desta questão! É certo que Alegre perdeu, suponho que definitivamente, o estatuto de iminente. Mas Soares idem, por maioria de razões.
- Isto já é do território da logomaquia, desculpe.
- Não vejo porquê. Basta ler o comunicado de Soares – e a própria existência do dito – para perceber que a candidatura já não está iminente: é facto, assinado por baixo por Soares, em papel timbrado da sua Fundação.
- Ah bom, percebo. Então já mais ninguém está iminente, suponho?
- Erro. Soares liquidou a iminência de Alegre (que, desconfio, nunca mais lhe escreverá uma ode…) e autoliquidou a sua. Pelo que resta apenas a de Cavaco Silva.
- Humm... Mas, com franqueza, será que se pode falar da iminência de uma candidatura em banho-Maria há uns dois anos?
- Uma vez que o banho-Maria foi substituído pelo banho-Soares, que remédio tem agora Cavaco senão passar rapidamente a iminente. Porque cada dia em que Soares ocupa o palco sozinho, e Cavaco se nega à iminência, são uns votinhos mais que voam para dentro das bochechas do glutão-Soares.
- Tou a ver. Por outro lado, não acha que está iminente uma ruptura entre os dois grandes símbolos do PS: o ícone da democracia e da luta anticomunista versus o bardo da liberdade?
- É capaz, é capaz…
- Mas há-de convir que é triste, após um percurso comum de décadas.
- Permita-me que discorde. Não é triste, é política, fenómeno que ganha em ser apreciado em sentido rigorosamente extra-moral.
- Ou seja?
- Voltamos ao princípio desta conversa, e ao eterno retorno da eminência e da iminência. Há políticos cuja eminência provém de estarem sempre iminentes; e há depois outros políticos cuja eminência ganha em resguardar-se da iminência.
- Quer então dizer que Alegre devia contentar-se em ser o poeta-político que todos respeitam, ou por causa dos versos ou por causa do simbolismo?
- Nem mais. A melhor maneira de a eminência dele começar a ser posta em causa é entregar-se ao rancor por causa da sua perda de iminência.
- Não está a propor que, para fins de reconciliação, ele escreva uma ode ao «Soares-candidato-apesar-dos-80-anos-contra-ventos-e-marés», pois não?
- Nem tanto, meu caro. Bastará que escreva um novo romance à clef, nimbado de nostalgia evocativa, com o título, por exemplo, de Ilusões Perdidas. Estou certo que, lá do empírio onde repousa, Balzac perdoará o furto. Assim como estou certo de que, tal como sucedeu com o anterior, Soares aceitará falar do livro aquando do seu lançamento.
- Seria um acontecimento político-literário!
- Ou literário-político. Em todo o caso, um evento eminente.
- Não sei porquê mas desconfio um tanto da sua iminência...

Alvorada de leitor*


— Olá, Groucho, e adeus.
— Não fica cá hoje, senhor?
— Não, estou farto disto. Aliás, tenho que fazer noutro sítio.
— Lastimo, senhor, tinha esperança de que me aconselhasse algumas leituras de férias no âmbito desse programa antimoderno de que falámos ontem…
— Oh, isso não custa nada, Groucho: comece por ler um poema de Carlos Drummond de Andrade, que começa com o verso «E como ficou chato ser moderno». Está para aí algures, procure num livro chamado Fazendeiro do Ar. Depois de o ter lido e relido, meditado e remeditado, leia o Bartleby, de Melville. Pequeno. Pode levá-lo no bolso, e dá para o Verão todo. Mas, espere aí! você não vai ter férias! Vai ficar aqui, sempre. Lembre-se disso!
— Preferia não o fazer, senhor.

*Aka Early fucking blogs

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Deslocalização: 1. O F.C.Porto (v.) deslocalizou-se das Antas para o Dragão. 2. O Sporting (v.), do estádio de Alvalade para o Alvalade XXI. 3. O Benfica (v.), para deslocalizar o estádio para o mesmo sítio, teve previamente de o comprar de novo (v., a este propósito, o conceito derridiano de différance).

Deus: 1. Há o dos cristãos, o dos muçulmanos, o dos judeus, os dos hindus, os dos xintoístas, etc. 2. São todos iguais e todos diferentes. 3. Citar Popper, com ar superior: «A teologia (v.) é prova de falta de fé em Deus…». 4. A sua existência permanece controversa. 5. Os seus efeitos não.

Diálogo (Norte-Sul): Com Pinto da Costa (v.) tornou-se muito difícil.

Diáspora: 1. Aplica-se aos judeus (v.), aos portugueses e aos cabo-verdianos. 2. Antigamente, foi traumática (uma espécie de precedente histórico da «deslocalização»). 3. Hoje, é vista como uma espécie de vadiagem «bem».

Dicionário: 1. São pesados, sobretudo o da Academia. 2. São maçudos e não há pachorra para eles. 3. Os escritores que obrigam a consultar o dicionário fazem-no para disfarçar a sua natural falta de talento para contar uma história de forma escorreita.

Delírios pré-matinais (modernos ou antimodernos?)

- Oiça lá, Groucho, mas não se dorme neste clube? Reparo que anda por aí à conversa com os Srs. Serra, Rubim e Baptista a estas horas matutinas…
- São férias, senhor. O que, nos casos que refere, suponho significar que os vínculos familiares se aligeiram e os senhores podem, por alguns poucos dias, ler e escrever até de madrugada. Enfim, a emancipação da vida intelectual em relação aos constrangimentos familiares.
- Grande e intratável tema, de facto. Moderno, suponho, se não mesmo pós-moderno.
- Ah bom, sobre isso será melhor consultar o senhor Baptista. Segundo ele, para sermos modernos temos também de ser antimodernos (e anti-pós-modernos?...).
- Logo, se os modernos se deitam tarde, devemos, para sermos absolutamente antimodernos, deitar-nos cedo?
- Desconfio que falta aí algum elemento, pois se assim fosse não se entendia toda esta actividade auroral.
- «Actividade auroral»… Bonito, sim senhor. Mas tem razão. A não ser que a conjunção do tédio e descrença com a galhofa e desconchavo dos antimodernos, como dizia o meu amigo Baptista, implique uma reacção pluralista: os modernos deitam-se tarde (efeitos da luz eléctrica nos corpos: temos de propor este tema ao Sr. Serra), os antimodernos fazem o que lhes dá na real gana, sem prescrição prévia de «programas» ou «deveres» epocológicos.
- «Deveres epocológicos» também é bonito. Em todo o caso, melhor seria consultar o Sr. Baptista sobre tão ingente assunto. Mas amanhã, porque agora, moderno ou anti, vou fechar esta chafarica.
- Vernáculo antimoderno, meu caro! Porque não dizer que vai antes encerrar este Health Club?
- Deitar tarde não dá saúde nem faz crescer, senhor.
- Nenhum de nós pretende ainda crescer, Groucho. E quanto à saúde, desde que vá dando para o gasto…
- Expressão também muito pouco moderna, senhor. Uma vez que só já cá estamos nós, optimizemos os recursos, desactivemos o ser disto, e frequentemos o leito.
- Que frase mais antimoderna, moderna e pós-moderna, tudo ao mesmo tempo! E sem ordem cronológica na disposição dos seus segmentos, sequer. Mas tem razão. O Sr. Baptista que se avenha com o problema. Pratiquemos enfim a nossa desaparição elocutória.
- Isso, senhor, nadifiquemo-nos nos braços de Morfeu.

24 julho 2005

Dia santo, 2

/…/
— Sabe, Groucho, há duas necessidades imediatas nessa descrição, ao menos duas…
— Refere-se ao antimoderno…
— Sim, ao antimoderno, necessário, em primeiro lugar, para resistir a certa ideia persistente que pensa a literatura e a arte como corte absoluto entre uma definição homogénea e estável, que vigoraria até às vanguardas do começo do século XX, e a literatura decorrente dessas mesmas vanguardas…
— O efeito futurista, ou depreendo mal?
— Depreende bem: corte absoluto entre a tradição e o moderno. Predomínio do «agora é que é» ou «agora é que vai ser», repúdio do passado, suposto bloco granítico, monumento acabado e inútil, viva o absolutamente novo! etc. Na verdade, tudo redundando em possibilidades que se fecham, teleologia, marcha da história, progresso inexorável, e outras manifestações solidárias da guerra ou do elogio da guerra.
— Percebo. Rever a literatura oitocentista em nome do antimoderno…
— Um bom programa, Groucho. Conduzindo, de resto, à outra necessidade do antimoderno: dar conta dum lastro incómodo, mas que atravessa a melhor literatura, lastro de tédio e de melancolia, de pessimismo e desespero, de desconfiança do progresso e indiferença perante a inovação e a actualidade. E dar conta doutro lastro, dele solidário e não menos antimoderno, de humorismo, galhofa, paródia, desconchavo.
— Numa palavra, já que estamos condenados ao moderno, é preciso ser absolutamente antimoderno.
— Absolutamente.

Reforma educativa*

"Está absolutamente fora de dúvida que se deveria ser o mais ocioso possível durante a juventude."
R. L. Stevenson, An Apology for Idlers (Uma Apologia dos Ociosos, traduzida por Célia Henriques)
*Enciclopédia de Bolso do Groucho, bloco-notas A5, capa azul-bébé, fl.1, único bolso da camisa caqui de meia manga.

Corporis fabrica (V.3)



Imagem: game-pod doente, intervenção cirúrgica

Corporis fabrica (V.2)



Imagem: entrada do game-pod no corpo de Allegra Geller

Corporis fabrica (V.1)



Imagem: buraco na espinha dorsal de Pikul, bioport do jogo

Manchetes (novos dados)

Chega ao Casmurro a informação (provinda de fonte indisputável) sobre novas manchetes já engendradas pelo sistema criado ontem, 23 de Julho, no Público. Assim, prevêem-se para breve:
l) MANUEL ALEGRE DISPONÍVEL PARA SER CANDIDATO A PRESIDENTE DA REPÚBLICA
m) ANTÓNIO CAPUCHO SITUA DEFINITIVAMENTE A LOCALIDADE DA PAREDE ENTRE CARCAVELOS E S. PEDRO DO ESTORIL
n) MANUEL ALEGRE DEBATE COM ESTUDANTES DE COIMBRA A HIPÓTESE (PORTANTO, ACADÉMICA) DE NÃO VIR A SER CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
o) JORNALISTA SÃO JOSÉ ALMEIDA DISPONÍVEL PARA SE CHAMAR SÃO JOSÉ ALMEIDA "CASO NÃO SURJA ALTERNATIVA"
Ulteriores desenvolvimentos desta inovação (garante fonte seguríssima) permitirão, entretanto, alcançar um nível de complexidade muitíssimo superior, capaz de gerar manchetes totalmente invulneráveis ao desmentido, conhecendo-se apenas, para já, um exemplar experimental:
p) TODOS OS HOMENS SÃO MORTAIS. MANUEL ALEGRE É HOMEM (E CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA). LOGO, MANUEL ALEGRE NÃO É ASSIM TÃO DIFERENTE DE SÓCRATES E AFIGURA-SE MUITO PROVÁVEL QUE VENHAM, UM DIA, A DAR-SE BEM UM COM O OUTRO
Este modelo de origem europeia (asseveram fontes da mais alta fidedignidade) foi escolhido em detrimento de uma proposta oriunda de universidades norte-americanas que visava elaborar, quase instantaneamente, manchetes subordinadas à tipologia:
q) MANUEL ALEGRE É MANUEL ALEGRE É MANUEL ALEGRE É MANUEL ALEGRE É MANUEL ALEGRE É CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA É MANUEL ALEGRE É MANUEL ALEGRE É MANUEL ALEGRE,
etc., até ao infinito, o que em geral colide irremediavelmente com as dimensões de um jornal, ainda considerando, como de resto foi considerada, a hipótese (no fundo, académica) de multiplicar por 100.000 todos os suplementos e encartes do Expresso em regime de periodicidade diária ou até, pasme-se, semi-diária. (Aliás: diz-se "semi-diária" ou "bi-diária?")

Corporis fabrica (V)


É a um corpo virtual que cabe configurar a consumação de um Corpo hiper—sensorial. Esse modo de Corpo existe como digitalidade que não distingue o dígito numérico do dígito dérmico ou do código genético. Allegra Geller — a inventora de jogos protagonista de eXistenZ de David Cronemberg [lembrar a teoria da nova carne] — manifesta uma sensorialidade exponencial pela mediação da Máquina. No filme, a Máquina de jogos é biológica, e está unida ao Corpo humano, substituindo o rato, por um cordão umbilical. Lembro a mão de Allegra Geller a acariciar uma parede rugosa, e que é como uma pele; lembro, ainda, o nariz dela a cheirar um depósito de gasolina, que é como um fluído corporal; lembro, numa palavra, a eroticidade da sua persona lúdica. Nos sucessivos jogos virtuais os corpos vão—se redefinindo por uma sensorialidade em progressão quantitativa. Vão libertando os sentidos do constrangimento do hábito, que os cerceia e os monotoniza até perder neles por completo a capacidade de percepção de tudo pela primeira vez. Trata—se de libertar os sentidos da ideia dos sentidos. Aumentar—lhe uma pura exterioridade, sem interior que os canalize: um puro fluxo, circulando em regime de acesso livre. O Corpo como um Buraco — que Allegra Geller não receia: o orifício fabricado na espinha dorsal é da ordem natural de uma Boca, como de resto a inventora de jogos mostra sem necessidade de palavras. A Boca não faz qualquer fronteira entre um interior e um exterior do Corpo. A Língua, os Pulmões, o Esófago, o Estômago, os Intestinos, o Escroto, o Ânus, são uma exterioridade às avessas. Este modo de corpo virtual espraia—se numa superfície sensorial única [um tecido], com a qual comparte espessura e limites. De jogo para jogo [trata-se de jogos sem regras e sempre outros], temos um Corpo que vai guardando cada vez menos Memória, isto é, cada vez menos Memória do jogo. Chega—se a um ponto [encenado no fim do filme] em que não tem qualquer sentido lutar pelo realismo ou pelo virtualismo; estamos numa posteridade da distinção real/ficção, distinção que define a Modernidade [cf. Godzich 1998: 157]. O Mundo libertou—se de causas e fins, de ideias e cópias. O corpo virtual, como libertação da sua sensorialidade, liberta o Mundo da sua Ideia, i.e., uniformizado pela Necessidade e a Causalidade: «Por tanto, nuestra idea de necesidad y causación proviene exclusivamente de la uniformidad que puede observarse en las operaciones de la naturaleza, en las que constantemente están unidos objetos similares, y la mente es llevada por costumbre a inferir uno de ellos de la aparición del otro. Sólo estas dos circunstancias constituyen la necesidad que adscribimos a la materia. Más allá de la conjunción constante de objetos similares y la consecuente inferencia del uno a partir del otro, no tenemos noción alguna de necesidad o conexión» [Hume 2001: 118]. No filme, a des-mentalização do Mundo é o corolário do avanço da Técnica. Assim, é no jogo virtual que o Corpo e o Mundo não são extirpados pelo hábito. Só nos termos desse jogo virtual [sem regras do jogo, puro Acaso] podem ser mediação hiper—sensível do sensível. No fim não restam Corpos de sujeitos: apenas duas Corporações que fabricam indistinguíveis jogos: eXistenZ ou TransCendenZ.
Imagem: game-pod de eXistenZ

Droláticos e pilheriáticos



If you keep having birthdays, you’ll eventually die.

Groucho Marx

De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fl. 23a.

Dia santo

— Dia mesmo santo, hein Groucho?! ninguém por aqui, tudo calmo…
— Não posso dizer o mesmo, meu caro senhor. Tem sido até uma azáfama invulgar para um domingo. Não parei, desde a manhã, a distribuir a montanha de dossiers que toda essa gente tem vindo entregar… a propósito, já viu no seu cacifo?
— Dei uma olhada, Groucho, e desanimei logo. São os currículos dos novos membros, dos candidatos, quero dizer. E vinha eu preparado para falar consigo sobre o sentido moderno de antimoderno…
— Já não carece, senhor. Informei-me devidamente sobre o assunto.
— Devidamente?!
— Nem mais, devidamente. Descobri, por exemplo, que a expressão «antimoderno em sentido moderno» é redundante. Não há antimoderno senão em sentido moderno. Nem contramoderno, nem pós-moderno, nem pré-moderno… tudo sempre em sentido moderno.
— Ideia interessante, extremamente interessante. Quer dizer que o «moderno», o que quer que seja, é a referência central, o padrão, o ponto fixo, que define tudo o que se lhe opõe ou dele se distingue?
— Não, de modo nenhum. Aprendi antes que o moderno se define na diferença com o antimoderno, o contramoderno, o pré-moderno e até o pós-moderno. Antes ou depois, ao lado, contra, em antagonismo ou em deriva diferencial, o moderno é tudo isso e ao mesmo tempo apenas uma parte disso, a que não é nem «anti-», nem «contra-», nem «pré-», nem «pós-».
— Que confusão, Groucho. A ideia ficou ainda mais interessante, mas a formulação confunde. Deixe-me acabar de ler isto, que já voltamos a falar. Se lhe interessa, claro.
— Claro.

Iminências e Eminências

- Li num jornal que a candidatura de Soares está iminente!
- Com i ou com e?
- Com i, claro. Se não, não podia estar. Tinha de ser.
- Como assim?
- Que pergunta! A iminência não é, está. O que está iminente, logo deixa de estar.
- Está a dizer que a candidatura já não está iminente?
- Nada sei de candidaturas. Agora, quanto à iminência, é evidente que não pode estar assim mais de uns dias… Se não, perde-se a iminência, torna-se rotina, déjà vu.
- Percebo. É como a do Manuel Alegre, que está iminente há meses.
- Exacto. Se bem que no caso dele, a eminência (com e) o torne candidato (e só isso) a uma permanente iminência (com i).
- Mas não é o mesmo que sucede com Soares? Ou acha-o menos eminente?
- Soares é «a» eminência. Logo, desnecessita iminências. Soares está sempre iminente, é pleonasmo dizê-lo.
- Mau, agora é que me perdi. Qual é então a diferença em relação a Alegre?
- Bom, do ponto de vista da intenção das personagens, é claro que Alegre se vê como uma eminência que sempre esteve pouco iminente (injustiças da História). Por isso, ultimamente – desde a campanha para secretário-geral do PS – decidiu reivindicar o seu direito a estar também iminente. Parece evidente. Como a iminência de ser o novo secretário-geral do partido não se concretizou, parte para outra, sem dúvida mais eminente.
- A iminência da eminência…
- Nem mais. Aquilo que move Cavaco, por exemplo, ou Freitas, ou Alegre, ou de novo Soares.
- Uma das distinções fundamentais entre democracia e ditadura, não lhe parece? Nesta última a eminência nunca desce ao patamar da iminência. Existe, por direito natural, para sempre.
- Diga antes, uma das agruras da democracia, meu caro…
- Mas acha que Soares está mesmo iminente? E Cavaco, tão bem instalado na sua poltrona de avô, vai submeter-se às contingências da iminência?
- Não discuto eminências, meu caro. Antes o futebol, que é mais democrático. A propósito, qual é o novo ponta-de-lança iminente para o Glorioso?

Corporis fabrica (IV.3)



Inside/Outside: Back, por Katherine Du Tiel, 1994

Nódoa vergonhosa

Leitor atento detectou, algures numa das postas sobre o colete verde, vergonhoso erro ortográfico. Para ele, agradecimentos sinceros, apesar de embaraçados. Para os outros, a informação de que já foi corrigido: se não viram, escusam de procurar.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Deputados: 1. A maior parte deles vem do pára-quedismo. 2. Reformavam-se mal chegavam ao Parlamento (v.), mas Sócrates (v.) deu-lhes cabo da mama. 3. Não há um que se aproveite, à excepção de Francisco Louçã (v.) e Emanuel Topa.

Derrida, Jacques: 1. Famoso filósofo francês que dizia que a linguagem não tem nada a ver com as coisas e que o mundo é feito de papel timbrado. 2. Criador da desconstrução (v.), defendia que aquilo que dizemos oralmente já foi antes escrito. 3. Dizia que a diferença entre verdade e mentira é indiferente. 4. Estranhamente, para quem defendia tais posições, dizia acreditar na justiça (v.). 5. Um dos chefes de fila do relativismo (v.) contemporâneo. 6. Era meio-judeu, retornado da Argélia e tinha uma avó portuguesa.

Descartes: Enganou-se.

Desconstrução: 1. Método filosófico criado por Jacques Derrida (v.) segundo o qual os binarismos – Portugal/Espanha, António José Saraiva/José António Saraiva (v.), FCPorto (v.) /Benfica (v.), Alberto João Jardim (v.)/cubanos (v.), prostituição/alterne (v.), etc. - são ilusões que devem ser desmascaradas sem piedade. 2. Desconstruir não é destruir, embora, como se aprende na construção civil, destruir implique desconstruir. 3. O que os americanos estão a fazer no Iraque (v.), em relação ao regime de Saddam (v.).

Corporis fabrica (IV.2)



Imagem do vídeo Butterfly Stroke, por Elodie Pong, 2000

Corporis fabrica (IV.1)



Half Meat and Text, por Zhang Huan, 1998

Corporis fabrica (IV)




O Corpo em regime de arquivo: um repetidor técnico. Neste sentido, é uma forma de propriedade como o é uma peça de vestuário. É público e publicitável. Assim, eis a chamada de atenção: «Hace poco se planteó un conflicto en la NBA a propósito de los llamados 'publitatuajes': el reglamento de la NBA prohíbe llevar cualquier publicidad sobre las ropas, pero no dice nada respecto a llevar marcas sobre la piel. Pero ¿es la piel parte del uniforme? La NBA considera que sí, y quiere que se borren los publitatuajes, mientras los jugadores, enriquecidos con ellos, enarbolan sus derechos constitucionales sobre la libertad individual» [Verdú 2001]. A pele e o tecido vão perdendo o valor discreto, formando um contínuo textual, i.e., uma textura. «Michael Jordan» [a abstracção pura do jogo feita corpo físico; um corpo físico que pôde levar o jogo a ser outro jogo] prolonga—se fisicamente em «Air Jordan». A «tatuagem», outrora marca de «exclusão» [signo de um sacral ora positivo, ora negativo], re—semantiza—se como forma de «identificação»: tanto do corpo individual como da corporação colectiva. Uma forma avançada de tatuagem como «identificação» é [cf. Álvarez—Uría 1999], por exemplo, o código genético: e também ele, como bem sabemos, é um valor de mercado.
Imagem: Janine Antoni, Interlace, 1998.

Manchetes

O Público de 23 de Julho trazia esta surpreendente manchete: MANUEL ALEGRE É CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Saudando esta nova orientação na filosofia jornalística dos títulos de 1ª página, antecipam-se aqui (com base em fonte segura) algumas futuras manchetes conceptualmente idênticas:
a) PORTUGAL FAZ FRONTEIRA COM A ESPANHA
b) CAVACO SILVA É CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
c) ÁGUA DO MAR TEM ELEVADO TEOR DE SAL
d) JOSÉ SÓCRATES NÃO CUMPRIU PROMESSAS
e) O SOL É UM ASTRO
f) MANUEL MARIA CARRILHO É CANDIDATO... (incompleta)
g) ISTO É UM JORNAL
h) MARQUES MENDES É BAIXO
i) O AR NÃO É UM SÓLIDO
j) O PPM NÃO EXISTE
k) DINOSSAUROS EXTINGUIRAM-SE!

23 julho 2005

A lenda do colete verde

Já mais calmo, até animado.
— Fui averiguar isso do colete verde, senhor. E trago novidades interessantes: comprovei no especulativo o que o senhor deduziu no empírico…
— Credo, Groucho, que linguajar… Folgo em vê-lo animado. Conte lá.
— Fiz uma breve pesquisa na Internet, imagine, e verifiquei que não se chama colete verde: chama-se rigorosamente «colete retrorreflector».
— Que informação graciosa, Groucho. Obrigado. E mais?
— Depois descobri que a vontade de o usar é tanta que se criou já uma lenda em volta dele.
— Não me diga, um príncipe de colete verde salvou uma princesa na auto-estrada Porto-Lisboa…
— Não, não, é mais uma lenda jurídica, ou o que seja. As pessoas, muito desejosas de cumprir com o disposto no tal art.º 88º, inventaram normas e exigências que não existem. Como se quisessem fazer do uso do dito colete uma prova difícil ou uma cerimónia exigente.
— Percebo agora o que quis dizer com o especulativo…
— Mas há mais. Estava eu nisto, quando entrou na sala o Sr. Rubim (aliás muito apressado, porque saiu logo), que ainda teve tempo de me dizer que a profusão de regras inventadas pelo vulgo foi tal que a Direcção-Geral de Viação chegou a emitir uma «nota técnica» de esclarecimento. Tenho-a aqui.
— Admirável, sem dúvida. E o que diz a nota?
— Eu leio, que é curta. «Considerando as dúvidas que têm vindo a público sobre a correcta forma de transporte e uso dos equipamentos em apreço, importa esclarecer o seguinte: Os coletes retrorreflectores, tornados obrigatórios nos termos do Código da Estrada, não têm que se encontrar alojados no interior do habitáculo do veículo, podendo encontrar-se na bagageira.»
— Caramba, era preciso esclarecer isso?
— Já vai ver porquê com o esclarecimento seguinte: «Não existe qualquer imposição legal que imponha
— Imposição que imponha...?
— Sim, senhor, é o que está aqui: «Não existe qualquer imposição legal que imponha, a quem está obrigado à utilização do colete, que aquando da saída do veículo tenha que ter o colete colocado».
— Ah, compreendo agora, pensavam que tinham de sair do carro já com o colete vestido, e daí que tivesse de o guardar lá dentro. Já tenho visto carros usando-o como adorno do encosto do assento do condutor. Giro. E chega a perceber-se quando se tem mesmo de usar o tal retrorreflector?
— Quase. Eis o que diz a «nota»: «Só existe infracção ao disposto nos n.os 4 e 7 do art. 88º do Código da Estrada quando quem se encontre a proceder à colocação do triângulo de pré-sinalização de perigo, quem esteja a proceder a reparações no veículo, ou quem esteja a remover carga caída na via, não tenha colocado o colete de pré-sinalização de perigo.»
— Espere aí, Groucho, quer dizer que o colete não visa maior segurança do cidadão de imprevisto na estrada... é mais um sinal de trânsito, pré-sinalização de perigo.
— Depreende bem, meu caro senhor. Isto muda tudo, não lhe parece?

(Meta-) Droláticos e pilheriáticos

My guess is that there aren’t a hundred top-flight professional comedians, male and female, in the whole world. They are a much rarer and far more valuable commodity than all the gold and precious stones in the world. But because we are laughed at, I don’t think people really understand how essential we are to their sanity. If it weren’t for the brief respite we give the world with our foolishness, the world would see mass suicide in numbers that compare favourably with the death-rate of the lemmings.

Groucho Marx

De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fl. 3c.

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 2

- Groucho, sabe, por acaso, o que E um diacrItico?
- Nan-u me diga que vamos ter a mesma conversa?
- Mas jah tivemos esta conversa, foi?
- Esta, nan-u, obviamente. Mas uma parecida.
- Como E que sabe?
- Pelo inIcio, claro. Ouve-se o inIcio e toca logo um sino.
- Toca logo um sino?! Nan-u estou a perceber.
- Rings a bell... knock on wood... cross your fingers... shut the door.... anglicismo puxa anglicismo, percebe?
- Mais devagar, que estah a desviar a conversa.
- Qual conversa?
- A conversa que estamos a ter.
- Afinal eu tinha razan-u.
- Nan-u estou a perceber.
- Como E que a conversa se pode desviar se voceh nan-u souber jah para onde ela vai?
- E quem lhe diz a si que...
- Nan-u me interrompa no meio da conversa.
- Chama a isto uma conversa?
- Isso pergunto eu!
- O senhor E que disse que Iamos ter a mesma conversa. Nan-u se arme em desentendido...
- Pois disse, mas enganei-me. Bem se veh que isto nan-u E conversa nenhuma!
- Como nan-u E conversa nenhuma? Entan-u o que E?
- Diga o Senhor, foi o Sr. que abriu as hostilidades.
- Nan-u fui eu, foi o sino, o sino E que descarrilou isto.
- Nan-u misture as metahforas, homem.
- Voceh hoje estah de todo.
- Estah a ver? E depois ainda diz que nan-u E a mesma conversa...
- Acha que jah tivemos esta conversa, E?
- Isto nan-u E conversa nenhuma, jah lhe disse. O mais grave E que nan-u saImos daqui.
- De onde?
- Deste dia crItico.
- Ah! Era mesmo aI que eu queria chegar.
- Entan-u porque nan-u disse logo?
- Groucho, voceh faz um santo perder a pacienncia.
- Pois, entan-u nan-u fale, homem. Nan-u fale.
- Que dia!
- Que crIptico!