25 fevereiro 2006

Casa de férias 3


— Acha mesmo, Groucho? (pausa) Olhe que não sei...
— Não sabe ou não acha? Ou acha, mas não completamente?
— Bom...
— Era o que me parecia, resposta típica de um intelectual quando o intelecto é apanhado em território desconhecido.
— Vejo que lhe está a fazer bem o descanso, Groucho...
— Nem imagina quanto! (para o cão) Anda, vamos às compras.

23 fevereiro 2006

Multiplex 3 (take 3)

— Não olhe agora, Groucho, deixe-a sentar-se.
(pausa; continuam a tomar café)
— Olhe agora, Groucho, mas devagar, seja discreto que isto é uma terra pequena.
(Groucho olha, depois continua a tomar café)
— Não diz nada, Groucho?
— Digo que é um animal humano bonito. E dito isto, não percebo de todo a sua excitação.
— Mas não lhe parece uma presença arrebatadora? Não acha que em determinadas circunstâncias um homem pode abandonar tudo para a seguir? E note que eu penso que o contrário também pode acontecer, de uma mulher para um homem, ou entre homens ou entre...
(interrompendo) Percebo perfeitamente o seu ponto.
(pausa, Groucho toma o último gole de café)
.
— Mas que raio, Groucho, estou a tentar voltar à conversa de...
(interrompendo) Percebo perfeitamente o seu ponto, repito. É análogo daquela tese que diz que a beleza é uma armadilha da natureza para pôr um homem em pé.
— Mas que raio de metáfora machista é...
(interrompendo) E note que, tal como o Sr. Mourão, penso igualmente que a metáfora se pode aplicar a qualquer uma das combinações que enunciou. É um modo algo infeliz de dizer, mas apenas isso.
— E então em que ficamos, Groucho?
— Ficamos na mesma, senhor. Melhor, tenho de concluir em termos mais universais: Decididamente, os humanos não percebem nada.
— Arre, Groucho, você hoje está intratável.

Multiplex 3 (take 4)

— Groucho, podia explicar-se um pouco melhor?
— Mas é simples, senhor. Já trabalhei no cinema, sei como se produz a beleza, sei a diferença entre a imagem que fica na tela e as pessoas reais que...
(interrompendo) Mas aquela mulher no café, por exemplo, era real.
— Então tenho de dizer que essa realidade não me interessa.
— Porque?..
— Olhe, interessa-me a Gata Borralheira, é isso. Interessam-me as pessoas cansadas, sujas, um pouco vencidas pela vida. Interessa-me não a beleza, mas a cicatriz que torna a beleza humana.
— Groucho, você anda a ler demais!.. Mas mesmo nisso da Gata Borralheira, se não fosse o sapatinho, como é que o príncipe...
(interrompendo) É o que eu digo: como os humanos não percebem nada, precisam de umas próteses para o entendimento.
— Como metáforas à custa de sapatinhos, é isso?
— Ou tesão à custa de imagens, dá no mesmo. Mas depois esquecem-se que as metáforas são metáforas, e de repente acham que estão no estado de natureza.
— Chiça, homem, lá se vai o encanto todo da Scarlett!.. E eu aqui a pensar que o clown metafísico era eu...
— Lamento. (pausa) Podemos ir agora jantar? Descansadamente, sem olhar para outras mesas?..

22 fevereiro 2006

Multiplex 3 (take 2)


— Decididamente, os homens não percebem nada.
— Não o sabia tão descrente da humanidade, Groucho.
— Referia-me apenas aos machos da humanidade, senhor.
— Conte lá, Groucho, alivie a sua alma.
— Lembra-se quando ela lhe diz que os homens costumavam julgar que ela tinha alguma coisa de especial?
— Sim, ele pergunta-lhe: e tem? E ela responde que nunca nenhum lhe pediu o dinheiro de volta. É um dialogo típico para introduzir a mulher fatal, qual é o problema?
— O problema é a afirmação dela, Sr. Mourão. É um aviso claro, é uma forma de dizer que ela não tem nada de especial, que quer o que é suposto as mulheres quererem, pelo menos a maioria delas.
— E isso que as mulheres querem, na sua douta opinião, é o quê, Groucho?
— Não ironize à minha custa, senhor, estou só a falar do filme... No final, ela quer ter o filho, um marido, e um pequeno mundo deles. E isso ela já sabe desde o início, quer dizer, ela sabe que foi sempre isso que quis.
— Mas uma mulher daquelas, Groucho...
— Uma mulher daquelas é apenas o espelho infantil dos machos, mas que se vai recusando a ser apenas isso. Por isso ela avisa.
— Já não há mais espaço para a mulher fatal, é o que me está a dizer?
— Decididamente, os homens não percebem nada, é o que lhe estou a dizer.
— Nesse caso, nunca perceberam.
— Também serve.

21 fevereiro 2006

Multiplex 3 (take 1)


— Menos comentários desta vez, Groucho?
— Só mesmo à saída, uma senhora muito alta e indignada, dizendo ao marido: «É indecente, ele devia ter sido castigado!».
— Difícil aceitar a roleta russo da existência...
— Não me diga que também acha que o filme é mesmo sobre a sorte ou o azar de um match-point?
— Que ele quer vencer, é claro, mas em que a sorte ajuda bastante. Mas já vejo que tem outra leitura.
— É verdade que ele vence, mas não sei se aquele ponto é de match ou apenas de partida.
— Mas o título, Groucho...
— Pois... Mas veja bem a última cena, todos reunidos em torno do novo bebé, e ele de fora, como que separado de tudo.
— Remorsos, mas com dinheiro à vista, diria eu.
— Dostoievskiano, prefiro eu dizer. A cena mais dostoievskiana de todas, mais do que aquele diálogo com os fantasmas dos mortos saído directamente do Crime e Castigo.
— Não percebo.
— A grande descoberta de Dostoievski, Sr. Mourão, é a de que os remorsos ou a culpa nos separam de tudo, nos emparedam dentro das nossas pobres categorias. Não é uma questão de bem e mal, é uma questão de não haver terreno comum que permita que nos possamos reconhecer. Ele ganhou, e por isso mesmo perdeu, não pode partilhar com ninguém o que fez, não pode aspirar a que ninguém o reconheça naquilo que fez.
— Vive num inferno, quer você dizer.
— Quero dizer que o inferno é isso e nada mais que isso. E que a roleta russa não é para aqui chamada.
— E disse isso à senhora muito alta e indignada, como você lhe chamou?
— Não, deixá-la primeiro aprender a roleta russa, esta conversa só pode vir depois.

20 fevereiro 2006

Desdobrando a adivinha

Caro Senhor
Abel Barros Baptista:

Agora que todo este episódio chegou a bom termo, permita-me, não que tente adivinhar a sua adivinha, mas que a desdobre para começar a pensar. Caso em que ponho à sua consideração este outro exemplo, outro porque diferente e não mero acrescento. Trata-se de um autor que muito se baldou para as imunidades da língua — aliás, ao ponto de fazer disso uma das suas marcas autorais — mas que de repente encontra um vírus quiçá demasiado forte. Há um novo professor na aldeia, estamos a muitos anos do processo de Bolonha, and it goes like this:


"Dizia que a aprendizagem se devia fazer escrevendo logo na lousa palavras inteiras designando objectos conhecidos. Escrever por exemplo «pedra», «tijolo», «enxada», «exploração capitalista».
— É um método muito bom
era um método muito bom, as crianças entravam logo no seu mundo, uma enxada eles sabiam o que era. Mas ele tinha outro método que era o mesmo, trabalhado com palavras de impacto muito mais forte. Lá estava ele com o seu impacto, eu ouvia em cima, era uma barulheira infernal. (...)
— É muito positivo — dizia-me ele depois. — As crianças riem, como é próprio da ignorância, mas fixam logo a palavra, nunca mais a esquecem.
Eu também as não esqueci, diziam assim: «cu», «merda», «puta», «car(v)alho», «cagar», «porra», «fo...-se». Eu digo «fo...-se» com pontinhos e «car(v)alho» com um parêntese porque sou ainda um subdesenvolvido moral, mas o professor escrevia por inteiro.
— É muito positivo — dizia-me ele
e havia toda uma desmitificação a fazer dessas palavras. Achei, todavia, que a última que eu disse com pontinhos era muito forte e complicada e perguntei porque é que a ensinava, ele explicou que
— É por causa do hifen."
Vergílio Ferreira, Signo Sinal, 1979, pp. 52-53


Digamos que há aqui, de facto, um problema de “hífen”, de ligação entre a permanência ou a insistência de alguma “condição humana” e a linguagem que a enuncie nas novas “condições simbólicas” em que o termo vanguarda já só quer dizer “o senhor que se segue”. Claro, terá que ser senhor, e ser reconhecido como o que se segue. Mas enquanto houver mundo, é de crer que essa abundância não nos faltará. Por outro lado, nem de vanguarda aqui se tratará, mas da linguagem que pertence a este real, tendo-lhe sempre pertencido. Esta e outras — daí o problema, se o for.
Mas pensemos.

Saudações casmurras

18 fevereiro 2006

Reencaminhando a chamada

— Está? Sr. Mourão?..
— Olá, Groucho. Espere só um pouco, deixe-me vir aqui mais para dentro para o quentinho.
— Sábado desagradável, de facto. Já me tinha esquecido de que podia chover e ventar tanto.
— Veja lá, não poupe no gás, aqueça-me essa casa.
— Já sabe da questão das cartas falsas, senhor?
— Recebi há pouco um fax do Sr. Baptista com as missivas em causa.
— Um bocado intrigante, não acha?
— Devo confessar que fiquei um pouco espantado, é verdade. Sobretudo porque por uns breves momentos me perguntei se não tinha sido mesmo eu a escrever a carta...
— Hum, a questão do pastiche perfeito, estou a ver.
— Eu sei que não fui eu, ou melhor, creio saber que não fui eu, mas a verdade é que com a dose necessária de fel (o que me acontece por vezes, tenho de admitir), aquela seria a minha carta.
— Não é do seu punho, mas está na lógica do seu punho...
— E estando na lógica do meu punho, até que ponto não pertence ao meu punho?
— Problema profundo. Que pena não...
(interrompendo) Pior ainda quanto à suposta carta do Sr. Baptista.
— Pior?
— Claro, Groucho. Como não sou o Sr. Baptista, não sei de ciência razoavelmente certa que não foi ele a escrever a carta, e como também aqui o estilo confere...
— Claro, o pastiche parece-nos tanto mais perfeito quanto não seja o pastiche de nós.
— Se não fosse o Sr. Baptista assegurar-me não ser o autor da carta, não duvidaria por um instante da sua assinatura.
— Era o que eu ia dizer há bocado, esse é um dos problemas profundos a que o clube daria guarida de bom grado. É uma pena aquilo estar deserto...
— Não só é uma pena, Groucho, como estas cartas devem estar relacionadas com esse deserto.
— Também presume da autoria das cartas, como o Sr. Baptista?
— Também, Groucho. E encontro-lhes mesmo um motivo: estando o clube deserto, o suposto autor reinventa as vozes, a ver se atrás delas se perfila gente.
(esperançoso) E acha que dará resultado?
— Isso agora...

Passeio quase nocturno: o castelo (3)



— Mas que se passa com esta cidade? Há obras por todo o lado, santo deus.
— É o progresso, Groucho, e desta vez vem programado ou tem nome de programa.
— Ah, essa coisa grega...
— Cuidado aí com essas correntes, chegue-se mais para cá.
— Arre, sente-se bem que chegamos à beira-rio, que humidade!
— Aperte bem o cachecol, veja lá. Apesar do diferendo, acho que ninguém no clube me perdoaria se viesse a adoecer nestas férias.
(esperançoso) Acha mesmo?
— Acho, Groucho, acho mesmo. Mas voltando à história. Temos então que a câmara cá da terra tinha uma maioria confortável e parecia lançada para um novo mandato. E tanto assim era, que pela oposição se apresentou desportivamente um bom candidato perdedor.
— Estou a ver... Pessoa séria, não conhecida na política, que não quer mesmo ganhar, mas que faz o frete ao partido de se queimar naquelas eleições.
— Nem mais. Acontece que a maioria, quase a terminar o mandato, se lembra de propor um grande desígnio para o futuro. Faz contas e mais contas e chega à seguinte conclusão: se em todos os documentos oficiais da câmara, a designação da cidade, em vez de ser Viana do Castelo, passasse a um singelo Viana, poupar-se-iam muitos milhares de contos.
— Sério?!
— Foi o que disseram, e se calhar as contas até estavam bem feitas, sei lá. Além do mais, diziam eles, tratava-se simplesmente de tornar oficial a designação corrente cá do burgo.
— Hum... E depois, que aconteceu?
— A oposição tomou como lema da sua campanha “Por uma Viana com Castelo”, foi o que aconteceu.
— E ganharam?
— Oh-Oh, ganharam sim senhor. Por meia dúzia de votos, contadinhos até às quinhentas da noite, mas ganharam.
— Hum... (pausa longa) De facto... (pausa) Olhe cá uma curiosidade: quando disse Oh-Oh a sua entoação mudou...
— É uma expressão daqui, Groucho, estava a imitar as gentes de Viana.

17 fevereiro 2006

Ecografia























- Aquém não há quem!
- Nem além há!
- Sem ninguém, ninguém vem!
- Quem vem?
- Vem alguém sem ninguém.
- Vem?
- Sim, vem assim.
- Assim, com a água?
- Com a mágoa?
- Com o som do sim.
- O eco que ecoa.
- E canta.
- Eco ecoador.
- Cantador.
- Que coa.
- Os passos.
- A dor.
- Que bate contra a parede!
- Que cai no chão!
- E ressoa no tecto!
- A sala vazia.
- Quem está?
- Quem está lá?
- Aí, quem está?
- Quem está aí, está?
- E aquém?
- Quem?

Ecolália























- Uma estrela cadente rasgava os céus!
- Rasgava os céus!
- Como se o fizesse apenas pra mim!
- Apenas pra mim!
- E soubesse o que me ia no peito!
- O que me ia no peito!
- O ar estalava à luz escura da noite!
- À luz escura da noite!
- O motor da carne em combustão interna!
- Em combustão interna!
- No zimbório negro um raio de luz!
- Um raio de luz!
- Uma linha de choupos no alto do monte!
- No alto do monte!
- 80 decibéis a vibrar nos tímpanos!
- A vibrar nos tímpanos!
- Ao fundo do cenário as luzes da ponte!
- As luzes da ponte!
- Rasgava os céus uma estrela cadente!
- Uma estrela cadente!
- Trela cadente!
- Ela cadente!
- Cadente!
- Dente!
- Ente!
- Te!

Passeio quase nocturno: o castelo (2)




— Cuidado aí, isto anda tudo em obras, talvez seja melhor mudarmos de passeio.
— Vêm lá dois cães, será seguro?
— Estão com trela, mas vamos aqui pelo meio. Sabe que já não me lembro bem de quando foi a história, mas terá sido pouco antes ou pouco depois do fim do reinado cavaquista.
— Assim tão recente? E mete política dessa?.. Pff...
— Refere-se a umas eleições autárquicas, Groucho, mas não é uma história de política dessa.
— Como não? Lá no clube quase nunca se falava dessas coisas, e com razão, é um real tão pequenino, esse...
— Eu sei, Groucho, eu sei, também concordo que um dos meios de lidar com essa pequenez é não lhe dar precisamente todo o espaço do discurso.
— Ora aí está... Hum, eram grandes conversas aquelas...
— Saudades, não é, Groucho?
— Tenho de confessar que sim. Apesar de tudo...
— Claro, apesar de tudo. É preciso dar tempo... às vezes não resolve nada, mas deve-se dar sempre uma oportunidade ao tempo.
(quase desdenhoso) Pois, e dizer com ar grave: o tempo, esse grande escultor.
(pausa)
— Olhe, Groucho, acabamos de passar a entrada do castelo.
— Era aquilo?
— Precisamente.
— E funciona alguma coisa lá, agora?
— Oh, nem sei bem. A última vez que lá estive, já foi há uns anos, estavam umas salas a ser recuperadas para auditório dos serviços de turismo ou qualquer coisa do género.
— Apoio lojístico, portanto. Algum relevo arquitectónico?
— Que eu saiba não, mas não sou de fiar nessas coisas. O que me parece é que se de repente aquilo desaparecesse, se se evaporasse no ar em recolhido silêncio, ninguém daria conta... é isso que torna interessante a história que lhe estava a contar. Não é exactamente uma história política, e muito menos de política dessa, é antes uma história da força da existência do mapa contra a simples existência do território.
— Outra vez a antecipar as conclusões, senhor?.. (pausa) Bom, conte lá então...
— Sim, Groucho, mas tenha cuidado aí, está tudo esburacado.

(continua)

16 fevereiro 2006

Passeio quase nocturno: o castelo (1)




— Está bem agasalhado, Groucho? Olhe que isto já desceu aos cinco graus...
— Sente-se, lá isso é verdade. Andemos, andemos.
— Vamos ali contornar o castelo e depois continuamos pela beira-rio.
— Não parece grande, o castelo.
— E não é, além de não ter grande interesse. Mas há uma história curiosa que o envolve, e que é o reverso dessa verdade insofismável de que o mapa não é o território ou de que a palavra pedra não fere.
— O reverso de uma verdade insofismável, senhor? Como assim?
— Então, Groucho, o contrário, o oposto...
— Eu sei o que quer dizer reverso! Agora reverso de uma verdade insofismável...
— Visto da perspectiva completamente oposta, onde mora uma outra verdade que também se pretende insofismável.
— Mas podem ser ambas, ou afinal nenhuma delas é porque existe a outra?
— Acho que depende da história que você quiser contar, Groucho. Era o que eu ia fazer, contar-lhe uma história, uma pequena história...
— As minhas desculpas, senhor. Mas também me parece que começou logo pela conclusão, não pela história em si mesma.
— Mas já vê, Groucho, quando se começa pela conclusão e se conta depois a história, isso quer dizer desde logo que a conclusão não será assim tão conclusiva...
— Põe o desejo de conclusão à frente porque não sabe bem onde a história vai dar, é isso?
— Nem mais. O desejo de conclusão é só para ter por onde começar, que a gente bem sabe como se começa, agora como acabará...
— Bom, parece-me que o senhor é tão digressivo como os outros cavalheiros do clube. Volte lá à história, agora fiquei curioso.
— Está a ver, Groucho, as vantagens da digressão?
— Ou os incovenientes de ir aqui consigo...
— Pois, mas cuidado aí, isto anda tudo em obras, talvez seja melhor mudarmos de passeio.

(continua)

15 fevereiro 2006

Nar siso























- Fiquei a pensar, sabe?
- Sabe?
- Naquilo que me disse.
- Medisse.
- As palavras.
- Lavras.
- Na boca da parede.
- Oca da parede.
- Por pouco.
- Oco.
- Pensei que falava sozinho.
- Sei que falava sozinho.
- E que alucinara o que ouvira.
- Ou vira.
- Mas não. Afinal havia resposta.
- Vi a resposta.
- Primeiro, mal se distinguia.
- Extinguia.
- Depois, tremulava.
- Emulava.
- Ou antes, tremeluzia.
- Me luzia.
- Por fim, quase ressoava.
- Suava.
- Parecia-me água.
- Mágoa.
- A esvair-se.
- Ir-se.
- Um som surdo.
- O som surdo da loucura?
- Merda!
- Herda?
- Quem está?
- Ah!

Multiplex 2



—Então, Groucho, que tal a experiência de ir ao cinema na província?
— Deveras edificante. O jovem ao meu lado, acompanhado duma namorada silenciosa, riu nos sítios certos: quando eles se beijaram, quando a mulher os vê beijarem-se, e por aí fora...
— Era de esperar...
— Era. Mas no fim aconteceu uma coisa curiosa.
— Sim?
— Foi mesmo no fim, quando ele fecha o armário onde está a fotografia das montanhas e a roupa do último dia que passaram no paraíso...
— Groucho, você é um poeta!
— ... um poeta crítico, quando muito, que aquilo era mesmo o paraíso perdido, antes de eles lá chegarem já tudo aquilo tinha acabado.
— Acabado?
— É, aquilo começa já depois do fim, aquelas montanhas já estão para cá da fronteira. Mas indo ao ponto: quando o filme acaba, o jovem suspirou.
— Suspirou?!
— Suspirou. E disse à namorada: deve ser fodido ficar sozinho.
— Vencido pela morte, estou a ver...
— Como todo o amor que é amor, claro.

14 fevereiro 2006

Multiplex 1



— Obrigado, mas hoje não.
— Olhe que estava a pensar numa coisa simples, Groucho, um restaurante calmo ali para a parte velha, também não posso ficar até muito tarde...
— É, mas hoje não é um bom dia, agradeço-lhe de qualquer modo.
— Parece-me muito desamparado, Groucho...
— Isto passa, senhor. E não pense que me vou meter em casa num dia destes.
— Ai é?! mas então?..
— Vou para o meio da gente. Onde houver mais gente, é para lá mesmo que vou.
— Aqui é no shopping, Groucho.
— Era de esperar. Vou comer fast, bem no meio deles, talvez depois um filme qualquer, para continuar no meio deles...
Deles?
— Ora, sabe bem o que quero dizer...
— ?!
(com enfado) Dia de S. Valentim, não é?..
— Groucho, você deixa-me preocupado...
— Mas não há razão, é só mais um pouco de vida real. E apetece-me cinema com gente, está dito.
(entredentes) Oxalá não te arrependas. (normal) Seja, Groucho, um bom resto de noite.
— O mesmo, Sr. Mourão.
(afastam-se em direcções diferentes, Groucho muito apressado)

Casa de férias 2




— Já arranjou um cão, Groucho?!..
— Parece que é do prédio, vai andando por aí. Não o conhecia?
— Eu não, mas também faz tempo que não vinha por cá. Você até me fez um favor ao aceitar o convite, uma casa sem uso vai-se degradando.
— Por falar nisso, há novas do clube?..
— Cada vez mais deserto, Groucho... Aquela história de você ter raptado a menina Clara era treta, a verdade é que uma a um vão migrando, e nem se percebe bem porquê. Acho que até já puseram seriamente a hipótese de reclamar a herança do clube, veja lá.
— Herança? O quê, a mobília e os comes e bebes?
— Eu sei lá, Groucho. Mas acho que aquilo já está bastante despido, se calhar já levaram tudo, com ou sem herança. O Sr. Portela foi lá e só encontrou paredes e ecos.
— Vai ver que é o próximo a desertar.
— Também me parece. Olhe que o cão já bebeu a água toda.
(olham ambos para o cão; o cão deita-se sossegadamente)
— E o cão tem nome, Groucho?
— Já perguntei no prédio, mas ninguém se rala com isso, pelos vistos.
— Mas como é que você o chama?
— Ora, digo anda cá. E outras vezes ele já está aí, é ele que me chama a mim.
— Estou a ver.
— É bonito um cão sem nome, sabe? Tenho para mim que é um cão com um problema a menos.
— Como assim, Groucho?
— Oh, não interessa. O importante agora é que tenho de ir ali ao supermercado ver se lhe arranjo alguma comida. Você até que tinha alguma razão acerca dos encantos da vida real.
— Tinha?
— É, quanto mais metablogue de um lado, mais empiria do outro.
— Groucho, você está mesmo a precisar de férias, homem!..
— Por isso mesmo. (dirigindo-se ao cão) Anda, vamos às compras.

Migração























- Não entendo.
- Não entendo?
- Não.
- Não?
- Não entendo a migração.
- Não entendo a migração?
- Sim, a migração.
- Sim, a migração?
- A migração, a sala vazia.
- A migração, a sala vazia?
- O eco que isto faz.
- O eco que isto faz?
- Sim, o eco.
- Sim, o eco?
- O eco perguntador.
- O eco perguntador?
- É tudo muito estranho.
- É tudo muito estranho?
- A caixa acústica.
- A caixa acústica?
- A caixa acústica do peito, a ressonância.
- A caixa acústica do peito, a ressonância?
- Passou-se qualquer coisa!
- Passou-se qualquer coisa?
- Passou-se qualquer coisa para isto se passar!
- Passou-se qualquer coisa para isto se passar?
- Pare com essa merda!
- Pare com essa merda?
- Bate na parede e volta.
- Bate na parede e volta?
- O som.
- O som?
- O som bate na parede e volta.
- O som bate na parede e volta? Mas um blogue não tem paredes.
- Quem está aí?
- Quem está aí?
- Sim, aí, a escutar.
- As paredes não têm ouvidos.
- Quem disse?
- Quem disse?

13 fevereiro 2006

Casa de férias 1

— E é isto, Groucho. Acha que fica bem instalado?
— Mais que bem, senhor...
— Parece-me um pouco desanimado... Não é o que esperava?
— Bem, devo confessar que quando me falou de casa com vista de mar imaginei logo uma vivenda abrindo directamente para a areia e muito azul à volta...
— Mas eu depois avisei-o, Groucho, lamento se...
— Não, não, está muito bem assim, e não me enganou de todo, é exactamente como tinha dito.
— Mas...
— É só que é demasiado real, sei lá...
— Demasiado real?!..
— Quando me disse um sótão num bairro social, com vista sobre a parte velha, o porto, guindastes...
— E o mar, Groucho, o mar! Já reparou que o mar ocupa mais de metade da janela? Você senta-se aqui na mesa a ler ou a escrever ou só a pensar, e o mar é toda esta metade da janela. Uma casa assim é um achado, Groucho!
— E eu só tenho que agradecer. Mas não pensei que o bairro social fosse assim tão social, nem os guindastes tão guindastes...
— É só o primeiro impacto, Groucho. E depois vai ver que a vida real tem o seu encanto. Em todo o caso, terá sempre o mar.
— Também são apenas férias, não é nada de permanente...
— Era o que eu lhe dizia, Groucho: o mar são as férias da vida, nem há outra razão para ele ter de existir assim tão largamente.

12 fevereiro 2006

Contacto 2

— Posso convidá-lo para um almoço, senhor? Fora do clube, já se vê.
— Tenho uma ideia melhor, Groucho. Agora que é mais dono do seu tempo, porque não vem até cá acima? Terei muito prazer em recebê-lo, ofereço-lhe hospitalidade incondicional, estará como em sua casa.
— Convida-me para sua casa?!
— Melhor ainda, Groucho. Braga não tem assim tanto interesse, e casas com família já se sabe que é família a mais. Mas ofereço-lhe uma casa com vista de mar, estará à sua vontade, este Fevereiro vai solarengo, serão umas férias merecidas...
— Não tenho palavras para lhe agradecer, senhor.
— Estariam a mais, Groucho. A hospitalidade não precisa dessas, das outras conversaremos.
— Então está assente, é só fazer a mala.
— Não esqueça agasalho para os passeios nocturnos, esfria bastante.

Contacto 1

— Estou?
— É o Sr. Luís Mourão?
— O próprio.
— O Sr. Luís Mourão que entrou para os casmurros?
— Sim, mas?..
— É o Groucho, senhor.
— Ah, Groucho!.. Prazer em ouvi-lo, mas...
— O seu nome vem na lista telefónica, senhor. Os Casmurros negaram-me o seu contacto, mas o seu nome vem na lista. Aliás, não há outro Luís Mourão, foi fácil.
— Estou a ver, Groucho. E assim de repente até fico perplexo por só haver um Luís Mourão em tanto telefone, não fazia ideia.
— È natural, não vamos à lista ver o nosso próprio número de telefone, mas realmente é como lhe digo, foi fácil, tão fácil que até acho que há no caso alguma coisa de justiça poética...
— Oh, Groucho, deixe lá as missivas do Sr. Silvestre, aquilo é um falar de muita mágoa vestido a rigor másculo. A verdade é que estão todos abalados, por si e pela menina Clara, foi um golpe muito forte, é preciso dar tempo...
— Não sei, senhor. Pela menina Clara ainda compreendo, era a única mulher do clube; mas por mim é mesmo raiva, a forma como sempre me trataram, Groucho isto, Groucho aquilo, e depois ficavam que tempos sem dar cavaco...
— Que palavra azarenta.
— Desculpe?!
— Nada, Groucho, nada. Continue.
— Enfim, uma desconsideração, foi o que foi. E depois aquelas pilhérias e anedotas!.. O senhor, ao que julgo saber, não é tanto dado a essas coisas, pois não?
— Essa é uma conversa muito longa, Groucho. Mas de facto a minha reserva de anedotas é muito diminuta, só sei mesmo uma anedota, estou vivo.
— Desculpe?!
— A anedota é só isso: Estou vivo. É só assim, Groucho: Estou vivo.
— Ah... É do tipo clown metafísico...
— Pois.

08 fevereiro 2006

OPA OPA, compra que é branco!















... não é contra ninguém... não foi solicitada, mas também não é hostil... seguramente a melhor... positiva, possível e difícil de bater... a operação é muito grande e envolve muitas cautelas... estamos a ser observados pelos nossos concorrentes... este é um campeonato muito caro... a operação ascende a cerca de 12 mil milhões de euros... a operação foi desenhada para ganhar à primeira volta... uma grande aposta do grupo... um sinal de confiança no país... se ganharmos será por mérito próprio... é de certa forma uma alternativa ao investimento internacional... uma proposta que vai permitir clarificar por muitos anos o futuro da maior empresa portuguesa... é juntar à maior empresa nacional, o maior grupo português... imprimir uma liderança accionista... enfrentar os desafios estratégicos do futuro... é uma estratégia muito diferente da que tem sido seguida...

05 fevereiro 2006

muda de ideias esta noite

faz-me compreender que estava errado

- As primeiras impressões.
- As primeiras?
- Sim, as primeiras. Um dia novo.
- Novo?
- Sim, novo, Groucho, novo. A radiação do real. A sua consistência. Ver tudo pela primeira vez.
- Ainda não percebi do que está o senhor a falar. Aliás, agora que penso nisso, sempre me pareceu que fala sozinho.
- Desabituar o corpo do mundo.
- Soliloqua.
- Acordar e estranhar. A condensação da água.
- Fala sem nexo.
- Estranhar materialidade e a forma das coisas.
- Sem nexo e sem destino.
- Desabitar o próprio sentimento de si.
- De quem?
- Do que acontece, Groucho.
- O quê?
- A primeira impressão.

medo do sono

29 atributos diferentes

- Por exemplo, uma canção.
- O que tem?
- Ouvir tudo pela primeira vez.
- O que é que isso quer dizer?
- Que nada se repete, Groucho. Nada.
- Os seus leitores é que não podem dizer o mesmo.
- O caso dos signos talvez seja diferente.
- Que caso é esse?
- E talvez nem esse, não é?
- Como?
- O sentido é um campo de forças quântico. Probabilístico. Turbulento. Caótico. Percebe?
- Como é que hei-de perceber?
- É o hábito que estabiliza a interpretação.
- Soliloqua de novo. Não vejo argumento, mas pensei que a canção era o seu tópico.
- Era e é, Groucho. O real como fluído de propagação das ondas sonoras. Um buraco no ouvido.
- Um buraco?

não são os olhos, são os músculos à volta dos olhos

foi bom durante algum tempo mas está na altura de dizer adeus

- E o que é que aguenta a repetição?
- O dia e a noite?
- Nem isso. Mesmo os ciclos murcham à mercê do hábito.
- A vigília e o sono?
- A vigília, sim. É uma boa palavra. Talvez seja a que me faltava.
- Para quê?
- Para dizer da repetição, que é o dreno do mundo.
- Aforisma?, a estas horas?
- Se a todo o momento o corpo deixa escapar a espessa contiguidade da matéria.
- A leveza do ser?
- A representação é uma paragem da presença que incarna no ar.
- Aforisma de novo?
- A vigília expulsa o frio dormente do hábito.
- O sono?
- Que tolhe a visão.

é bom ver-te dançar sozinho

ajuda-me, não estou em mim

- Diz que nada se repete e, ao mesmo tempo, que nada aguenta a repetição. Em que é que ficamos?
- Não faça frases tão longas, Groucho.
- Agora eu é que faço?
- Deixe essa tecla, que está gasta. Sinta apenas a radiação.
- A radiação?
- Sim, a chamada do real para o sujeito vigilante.
- O sujeito vigilante?
- Tão vigilante que o sentido de si é um campo de possibilidades. Um feixe egonómico.
- Metaforiza?, a estas horas?
- Não se chegam a encontrar.
- Como? Se o som e a luz modificam as extremidades nervosas?
- Sim, admito que há um interface. Até mesmo uma interacção.
- Então?
- A alegria permanece imotivada.

conta-me um conto

desaparece, quero lá saber

- Como uma lâmina.
- Uma lâmina?
- Uma lâmina que desabitua o corpo.
- O amor, talvez?
- Sim, Groucho. Também.
- Também?
- A canção, por exemplo. Uma descarga de serotonina de três minutos.
- Um substituto?
- Não, um susbtituto não. Uma narrativa eléctrica, percebe?
- Quase, meu caro. Quase.
- A questão é: quantas repetições aguenta uma canção?
- Mas não é o registo o dispositivo intensificador?
- Sim, de certo modo.
- Então é a própria possibilidade de repetição o corte da lâmina nervosa do real, ou não?
- Vê o paradoxo?

a música seguia-te para toda a parte

sei que estás à minha espera

- Perde sentido, sabe. Esse é que é o problema.
- Sim, se não se sente, perde sentido. Acredito.
- O hábito mata.
- Organiza.
- Mata, Groucho. Está a ouvir?
- O quê?
- A canção, a canção...
- Outra?
- Repare no modo como a voz se entrelaça com as guitarras.
- Visceral, admito.
- Uma sirene no coração.
- Ou um buraco no ouvido?
- A repetição a drenar o mundo.
- Ou a condensá-lo?
- O hábito a descarnar o real.
- Ou a agarrá-lo?
- Quantas audições aguenta o amor?