07 julho 2005

ouvimos a água correr no lavatório

ouvimos a água correr no lavatório. na noite anterior à consulta. a torneira fecha-se. lemos ao lado da personagem. como se o olhar dela não existisse. sabemos que já se lavou. que esteve por instantes sentada na beira da cama. que foi ver se o filho estava a dormir. que o aconchegou. que voltou ao seu quarto e apagou a luz do tecto. que se deitou e se apoiou no travesseiro. que puxou o lençol. que aproximou o candeeiro de cabeceira suspenso da parede. que abriu o livro. que leu.

frag. 44: logofilia
E se calhar lês mal: ler também é difícil e não está menos sujeito a mal-entendidos do que falar. E o curioso é que a fonte dos mal-entendidos é exactamente a mesma: ler o que se quer ler (ouvir o que se quer ouvir) como se esse acto pudesse determinar unilateralmente o sentido do que se lê (ouve). Mas o mundo nunca é como o descrevo, resiste sempre à descrição e apenas os que não se dão conta do injusto poder da linguagem se podem contentar com as descrições que no dia a dia fazem do mundo. Por isso, há muitas vezes uma surdez universal nos diálogos: a nossa capacidade de processamento dos signos é tremendamente limitada pelos esquemas apriorísticos com damos sentido à realidade. Precisamos deles para interpretar rapidamente o que se passa à nossa volta. Saber, por exemplo, que um banco é um banco, uma árvore uma árvore, um rio um rio. Mas muitos desses esquemas arruínam de facto a hipótese de comunicação, quando deixamos de ter a capacidade de apreender o que nos dizem sem ser apenas nos nossos próprios termos. Porque esse é o espaço para a imaginação e para se ser humano, aquele em que o espaço entre o significante e o significado se abre para acolher aquilo que a surdez da linguagem nos impede de sentir e de dizer. Usar a palavra, todavia, é correr o risco de ler mal, de falar mal, de ouvir mal. Todos os dias isso acontece, mas talvez seja esse o motor simbólico da vida: tentar ler melhor, ouvir melhor, em lugar de cristalizar aquilo que sou capaz de entender e de dizer num conjunto limitado e repetido de discursos que me tomam ao seu serviço para continuarem a reproduzir-se ad infinitum. Mesmo escrever é uma tentativa vã para não transcrever o código genético com que a linguagem tenta a todo o instante reproduzir-se dentro de mim. Nomear sem ficar preso ao nome. Passar de pessoa em pessoa. Bater com a cabeça na parede.