28 junho 2005

engoliu a saliva, contraiu os lábios, respirou fundo

engoliu a saliva, contraiu os lábios, respirou fundo. uma aguda consciência do espaço interior da sua própria boca precedia sempre a entrada para o consultório. a língua traçava e retraçava a forma dos dentes, antecipando o movimento manual do destartarizador metálico e a rotação eléctrica da escova. não estava nervosa. as mãos suavam ligeiramente. pelas suas contas, deveria ser a próxima a entrar. inexplicavelmente, não se conseguia concentrar na leitura. fechou o livro e leu, distraidamente, a nota da contracapa:

Em negrume, Sam Brackett (1964-2005) leva a auto-alienação ao limite. Brackett talvez peça demais, por isso está sempre na fronteira da loucura. Alguns dos seus fragmentos são quase insuportáveis. A impossibilidade de existir como se imagina que seria possível existir não se deve apenas àquilo que constrange os indivíduos de fora, mas deve-se sobretudo àquilo que os constrange de dentro: a morte que transportam consigo e o mal que fazem a si mesmos e aos outros. Toda a sua escrita se alimenta desta contradição entre a natureza essencial da humanidade e o desejo imaginário de ser ou de ter sido ou de vir a ser. É como se a linguagem servisse apenas para agravar o sofrimento humano e tornar ainda mais palpável a sua condição solitária e vegetativa. Como se os seres humanos não se conseguissem nunca verdadeiramente tocar, mas apenas ferir-se e mutilar-se mutuamente. E quando dão por si já os vermes os ceifaram. A revolta de Brackett contra o destino biológico parece ser também contra a linguagem, que é ao mesmo tempo o instrumento da dor que se inflige e da dor que se sofre. A linguagem transforma homens e mulheres em carrascos e vítimas da natureza que transportam dentro de si. Mas talvez isto seja uma leitura demasiado negra de negrume. Há apesar de tudo redenção no inteligir a ininteligibilidade, como afirmou certo dia Estevão Andorinha.