24 setembro 2005

Letargia, 5




MP (de pé, no meio da sala, olha em redor) – Já que cá estou, o melhor é esperar mais um bocado.
GR (entra, e senta-se) – Então não se senta?
ABB (entra, vindo da esquerda) – Pensava que ainda era cedo.
CA (entra, olha para os outros) – Mas que pontuais!
FMO (entra, com ar apressado) – Espero que haja algum bom motivo para virmos cá.
PS (entra, e senta-se discretamente) – Desculpem-me o atraso.
OMS (entra, com ar enfastiado) – Inda agora cheguei e já me arrependi.
LQ (fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Inacreditável!

Letargia, 6



MP – Deixem-me que vos apresente o caso.
GR – O caso? Não sei de caso nenhum… Por mim, está encerrada a discussão.
MP – Mas se ainda agora começámos…
GR – Começar, acabar – qual a diferença?
ABB – Tudo está bem, quando acaba bem.
CA – Quem tudo quer, tudo perde.
FMO – Vale mais um na mão que dois a voar.
ABB – Chapa ganha, chapa batida.
PS – Palavras, leva-as o vento.
ABB – Talis blog, talis blogger.
OMS – Tal blogueio, tal blogueado.
LQ – Inacreditável!
GR – Isto vai de mal a pior!
LQ – Um mal nunca vem só!
CA – Do mal, o menos!
ABB – Para grandes males, grandes remédios!
OMS – Nem mais!
ABB – Nem mais?
OMS – ’Tá-se bem.
FMO – Ai está?
ABB – Mal por mal...
GR – É preciso fazer alguma coisa.
MP – Era o que eu ia a dizer.
LQ – Inacreditável!
CA – Palavra puxa palavra.
FMO – Passe a palavra.
PS – Bem dito!
OMS – Bendito!

Letargia, 7



MP – É preciso fazer alguma coisa, é o que vos digo.
GR – Talvez o Sr. Quintais queira avançar com alguma proposta…
LQ – Inacreditável!
ABB – O problema é os leitores (ou são os leitores?)...
PS – Como assim?
ABB – Habituaram-se ao frenesi e agora, zás.
GR – Zás?
CA – Zás! Reload e nicles! Reload e nicles!
FMO – Zás, reload e nicles? Não estou a perceber.
OMS – O senhor só lá vai com memorandos e memorabiliandos. A gente já sabe.
PS – O certo é que não havia compromissos. A coisa era espontânea. Garatujas para um lado, gatafunhos para o outro. Ler daqui, ler dacolá.
OMS – Pois esse é precisamente o problema, Sr. Serra. Citações a mais. E, diga lá, o senhor vai assim tantas vezes à letrina?
ABB – Sempre desbragado, o Sr. Silvestre!
OMS – Já para não falar na repetição das falas. E nas revelações à revelia. Isto não é sério.
MP – Não sei o que está a insinuar - prove o que diz…
GR – Se estamos nas suas mãos, como é que isso seria possível?
FMO – Sim, o Sr. Rubim tem toda a razão. Esta frase, por exemplo, quem a disse?
ABB – Nick, o bloguista, antes de bater a bota.
OMS – Qual bota? é que não. Não contem comigo. É abusar da paciência.
CA – Avançar no meio do quid pro quo, esse é o desafio.
PS – No meio é que está a virtude!
GR – A virtude é que (é quem) o faz correr.
CA – A quem?
GR – Ora o que há-de ser!
LQ – Inacreditável!
FMO – Quiproquó produções limitada!

Letargia, 8



MP – A pouco e pouco, faz-se luz. Estamos quase a chegar a um consenso…
CA – A um consenso?
LQ – Inacreditável!
OMS – Sr. Quintais, pare lá com essa!
LQ – Desculpe, mas não está nas minhas mãos.
OMS – Olhe, nas minhas ainda menos… se soubesse a agonia destas tiradas… eu já disse que não aparecia mais...
PS – Bom, o problema mantém-se. O que fazer?
LQ – Inacreditável!
GR – Tenho uma solução: desapontar o leitor!
ABB – A minha é melhor: desapontar o escritor!
MP – É precisamente esse o dilema que tenho de apresentar ao Professor Djabi.
CA – Ao Professor Djabi?
FMO – Outro candidato ao Casmurro?
OMS – Isto já lá não vai - Djabi ou Djubi, ou seja lá o que for. Acabou. Fechemos a chafarica!
LQ – Inacreditável!
FMO – Mas quem é o Professor Djabi?
OMS – Sempre às escuras, o Sr. Oliveira. Ora oiça: «Não há problema sem solução. Encontra-se no nosso País um grande mestre, internacionalmente conhecido, com 23 anos de experiência. Ajuda a resolver problemas dos mais difíceis ou graves, com urgência e honestidade, como: amor, amarração da mulher em 7 dias e do homem em 8 dias, impotência sexual, mau-olhado, depressão, negócios, justiça, inveja, doenças espirituais, emprego, maus vícios, drogas, alcoolismo. Lê a sorte. Faz-lhe saber o seu passado, presente e futuro. Faz consultas na presença, em português e francês. Não perca tempo. Contacte o mestre Djabi.» Elucidado?
CA – Quem vota a favor?
OMS – Veja só as falas que ele lhe dá!
FMO – Quem?
OMS – Santa inocência!
GR – Não seja cifrado se não quer ser decifrado!
LQ – Inacreditável!
GR – E andar de pano à boca de cena – o que tem a dizer a isso?
MP – Calma. Que o chá está servido.

O prometido é devido, 5



Um sapato velho, sala com duas entradas, vários sofás, uma mesa baixa, um rochedo lunar, outra mesa com várias cadeiras, estante na parede do fundo, dois candeeiros de pé, uma jukebox, dois candeeiros deitados, dois quadros nas paredes laterais, um relógio derretido preso numa teia de aranha.
Compassos de um tema lascivo e melancólico alternam com compassos de um tema frenético e eufórico. (Para os apreciadores, faixa 5 de MC Djabi, Drum & Bass, Vol. 2.) As personagens conversam e dançam.

O prometido é devido, 6



MP (de pé, no meio da sala, olha em redor) – Isto está animado, sem dúvida.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) (espantada) – Então, já voltou?
(espantada) – Falou com o Professor Djabi?
GR (entra, e senta-se) – O quê? Não ouvi bem… com este barulho…
(entra, e senta-se) (intrigada) – Não era nada consigo. Mas diga-me, onde esteve?
(intrigada) – Estamos curiosas. Sabe, é que temos lido algumas das suas entradas.
GR – Então, se é assim, é como se já nos conhecêssemos. Dispensemos as apresentações e os parêntesis. Gosto das entradas assim, directas.
ABB (entra, vindo da esquerda) – Vejo que já arranjou companhia, Sr. Rubim.
(entra, vindo da esquerda) (decididamente) – Mas eu vim consigo, Sr. Baptista. Não me diga que vai fazer de conta que não me conhece.
(decididamente) – Desculpe, mas a senhora veio comigo. Não se afaste, que a primeira dança está prometida.
ABB – Acho bem, que eu já tenho um compromisso. Além disso, a sua aparição foi inopinada. Não me responsabilizo. Eu falo sempre à minha maneira e donde venho não interessa a ninguém.
(entra, vindo da esquerda) – Eu podia dizer o mesmo.
(decididamente) – Isso já foi o que disse da outra vez. Hoje veio comigo e não se fala mais nisso.
CA (entra, olha para os outros) – Eu a pensar que vinha cedo demais.
(entra, olha para os outros) (curiosa) – Claro que não, Clara!
(curiosa) – O que é que isso significa?
(entra, olha para os outros) – Nada, nada.
FMO (entra, com ar apressado) – Acho que me enganei na porta.
(entra, com ar apressado) (surpreendida) – Não se enganou, não.
(surpreendida) – Como é que sabe? Pode muito bem ter-se enganado.
FMO – Enganei-me ou não?
(entra, com ar apressado) – Já lhe disse, não se enganou.
(surpreendida) – Não faça caso.
PS (entra, e senta-se discretamente) – Então, mas isto era uma reunião ou quê?
(entra, e senta-se discretamente) (tímida) – Sr. Serra, deixe-me que me apresente.
PS – Não é preciso. Eu já a conheço.
(entra, e senta-se discretamente) – Já me conhece? Deve estar a confundir-me com outra.
(tímida) – Onde é que vai?
PS – Vou aos lavabos. É só um instante.
(tímida) – Olhe que isto não é nenhuma biblioteca vaticana ou salamantina…
OMS (entra, com ar enfastiado) – Eu sabia que não devia ter vindo.
(entra, com ar enfastiado) (desdenhosa) – Mas veio, e trouxe-me atrás. Estava agora tão bem a ler o Casmurro.
(desdenhosa) – Essa merda pretensiosa? Avise quando for ler, que eu vou fazer outra coisa.
OMS – Incorrigível! E piora de dia para dia. E que espécie de música é esta?
LQ (fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Que visão do caraças!
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) (sobranceira) – Chegue-se para o lado que eu quero ver também.
LQ – Veja, veja, veja à vontade.
(sobranceira) – O que há para ver? O quê?

O prometido é devido, 7



(corrigindo) – Deixe que me apresente!
(explicativa) – Veio sozinha? Muito prazer!
(corrigindo) – Sou filha de uma retórica menor.
(ríspida) – Vejo que já se conhecem.
(secamente) – E eu andava à sua procura. Porque se veio embora tão bruscamente?
(conciliadora) – Quem é aquela ali no canto a agitar os sintagmas?
(secamente) – Chame-a, faça-lhe sinal, senão ela não abre a boca.
(aparte, falando consigo mesmo) – Ei, malta! Ganda festa!
MP – Está boa, está. Nunca pensei.

O prometido é devido, 8



(espantada) – Estava a ver que já não o via mais. Então, falou com o Professor Djabi?
MP – O quê? Não estou a ouvir nada com este barulho…
(entra, e senta-se) – Viu o Sr. Rubim, Sr. Portela?
MP – Não, não o vi. Estava aí sentado ao princípio mas já não sei dele. Porque pergunta?
(entra, e senta-se) – Deixe lá. É um assunto nosso.
ABB – Afinal já se sabe o que disse o Professor Djabi?
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Eu estava lá, fui com ele.
(espantada) – Eu também fui.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Foi?
(espantada) – Fui. Isto é, fui consigo.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Desculpe, mas não entrou no consultório.
(espantada) – Não entrei? Não entrei? Pois não entrei. Já me lembro!
(ríspida) – Essas suas confusões...
ABB – Quem é?
(aparte, falando consigo mesmo) – Olhe, apareceu aí há pouco tempo. Quer que eu a apresente?
ABB – Podia ser que ela soubesse alguma coisa.
LQ – Olha, quem ele é! Sr. Baptista, há qualquer coisa que não bate bem. Eu até tenho vontade de dizer as minhas falas. Inacreditável!
PS – Isso veio do Kraus, ou quê? De manhã não lhe saem dessas. É drum & bass a mais com certeza…
(entra, e senta-se discretamente) – Drama e beiço!
PS – Vou fazer de conta que não ouvi. Afinal o que disse o Professor Djabi?
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – A mim não me disse nada.
OMS – Que pandemónio!
(surpreendida) – Entregue-se, entregue-se: se não pode vencê-los, junte-se a eles. Conhece essa mínima?
OMS – Diz bem: essa mínima.
(surpreendida) – Veja só o Sr. Oliveira, entregue às evidências. Eu não me importo, embora já tenha saído com ela.
FMO – ’bora lá, didas.
(entra, com ar apressado) – ’bora aí, nagem. Este ritmo é irresistível.
(surpreendida) – ’Tá ver?! Belo par! E o Sr. dança?
OMS – Nem vejo como é que hei-de fazer outra coisa. Afinal de contas, o que é que disse o Professor Djabi?
(tímida) (metendo-se na conversa) – Eu não sei… mas circula por aí qualquer coisa… de ouvido em ouvido... de boca em boca...
(metendo-se na conversa) – Pois circula, e já não é segredo nenhum… quase todas as manas estão ao corrente.
OMS – Manas?
(metendo-se na conversa) – Sim, sisters of the scene. As manas da cena.
MP – Desculpe-me, mas a senhora não tinha que se meter na conversa. Aliás, quem a deixou entrar? Isto era só para o pessoal da empresa.
(metendo-se na conversa) – Já cá não está quem falou!
CA – Isso é o que ela diz. Anda por aí a fatiar as conversas e depois diz que não é nada com ela.
(entra, e senta-se discretamente) – Olhe, eu não me importava que falasse comigo.
CA – O importante era saber o que disse o mestre Djabi.
LQ – Quem é o mestre Djabi?
GR – Deve ter tomado alguma coisa, este extasiado…
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Já sei o que disse o professor Djabi.
ABB – Juntem-se, juntem-se, que a didas' do Sr. Quintais traz novidades.
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Está nos lavabos. Numa das portas.
LQ – Eu até tenho vontade de dizer as minhas falas. Inacreditável!
OMS – Que outra vontade poderia ter?
(entra, vindo da esquerda) – Ir aos lavabos, por exemplo!
PS – Eu fui lá e não vi nada.
(sobranceira) – Sempre desconfiei das suas leituras…
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Garanto que se lia e bem.
CA – Acabe com o suspense, caramba!
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Bom, na verdade era só uma palavra.
MP – Só uma palavra?
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Dançai.

23 setembro 2005

Letargia, 1
















MP (de pé, no meio da sala, olha em redor) – Bem, já não deve aparecer ninguém.
GR (entra, e senta-se) – Ah! Que cansaço… Que invenção, o assento!
ABB (entra, vindo da esquerda) – Boas!
CA (entra, olha para os outros) – Bons olhos os vejam, senhores!
FMO (entra, com ar apressado) – Não me posso demorar. Aviso já.
PS (entra, e senta-se discretamente) – Cá estamos. De novo reunidos.
OMS (entra, com ar enfastiado) – Ao que vem a assembleia, afinal de contas?
LQ (fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Penosa visão!

Letargia, 2















MP – Não olhem para mim.
GR – Já começa com merdas…
MP – Ele é que me disse para aparecer.
GR – Diz isso, e depois não vem?
ABB – Já sabem do que a casa gasta.
CA – Qual casa?
FMO – Pois. Qual casa?
ABB – Não é a casa. É o Groucho.
PS – O que tem o Groucho?
ABB – Dividir e reinar, é o que tem.
OMS – Reinar e mangar, pois é. Conversas fiadas aí pelos cantos.
LQ – Eu, ao menos, não lhe dou confiança.
GR – Dá-lhe aforismos, imagino.
LQ – Deixe-se de graças, porque eu bem tenho visto as suas conversas a meio da madrugada.
CA – Mas afinal o que é que ele queria? Não era um clube de leitura?
ABB – Não era nada disso. Isso já lá vai...
OMS – Falou o casmurro-mor!
ABB – O que é que isso quer dizer? O quê, hein?
OMS – ’Tá-se bem.
FMO – Ai está?
ABB – Bom, o que ele disse foi que havia uma crise.
GR – Pois foi. Aliás, a palavra usada até foi letargia.
MP – Torpor.
LQ – Gosto dessa!
CA – Dormência.
FMO – Comigo, referiu-se a paralisia.
PS – Uma modorra.
OMS – Uma porra! Avancem! Que inércia!

Letargia. 3















MP – Disse que isto era um caso típico de writers’ blog
GR – Writers’ block, presumo…
LQ – Presume mal. Luís Quintais, ao seu dispor.
ABB – A mim, disse-me que se via bem que isto não podia continuar assim.
PS – Assim como?
ABB – Assim com aquele ritmo febril, que aquilo não era blog rhythm.
GR – Block rhythm?
CA – Que ritmo é esse?
FMO – Pois. Foi o que eu lhe disse quando me falou nisso: que era preciso postar ao ritmo dos mortais.
OMS – Deixe-se de sentenças piedosas.
PS – O Sr. Oliveira tem razão. Nas nossas mãos o verbo tornara-se um látego castigador – foi o que ele me disse. Que era preciso um uso mais judicioso.
OMS – Meu Deus! Que beatice pegada, Sr. Serra. Não esperava esse mais-que-perfeito de si, o grande letrinador.
ABB – Sempre desbragado, o Sr. Silvestre!
OMS – Má formação! Falta de comité central!
MP – Estamos a desviar-nos do assunto…
GR – E que responsabilidade temos nós? - explique-me!
FMO – Sim... que não estou a ver livre-arbítrio nenhum nesta farsa. Esta frase, por exemplo, quem a disse?
ABB – Fernando Matos Oliveira antes de me dar a palavra.
OMS – Fernando Matos Oliveira vírgula antes de me dar a palavra.
CA – O certo é que o bloqueio se mantém.
PS – Isso está bem de ver!
GR – A força do bloqueio é que o faz correr.
CA – A quem?
GR – Ora!, a quem há-de ser!
LQ – Que bloqueio?
FMO – Sempre a leste, este!

Letargia, 4















MP – O certo é que ele disse que isto ia acontecer, mais dia, menos dia…
CA – Writers’ blog, presumo…
LQ – Presume mal. Luís Quintais, ao seu dispor.
OMS – Trocar as falas é que não leva a lado nenhum.
LQ – Desculpe, mas a minha não foi trocada.
OMS – Mas pode trocá-la no prazo de cinco dias. É só levar o talão.
PS – Bom, o problema mantém-se. O que fazemos da modorra?
LQ – De quem?
GR – Da letargia…
ABB – Da crise…
MP – Do torpor…
CA – Da dormência…
FMO – Da paralisia…
OMS – Que inércia! Fechemos a chafarica duma vez!
LQ – Calma. Que eu gostei daquela!
FMO – Daquela?
OMS – O Sr. ainda não topou isto, pois não?
CA – Topou ou tapou?
OMS – Veja só as falas que ele lhe dá!
FMO – Quem? O Groucho?
OMS – Santa inocência!
GR – Não seja cifrado se não quer ser decifrado!
LQ – Isso veio do Kraus, ou quê? De madrugada não lhe saem dessas. É jazz a mais com certeza…
GR – E andar de pano à boca de cena – o que tem a dizer a isso?
MP – Calma! Que o chá está servido.

[continua]

O prometido é devido, 1




Um sapato velho, sala com duas entradas, vários sofás, uma mesa baixa, um rochedo lunar, outra mesa com várias cadeiras, estante na parede do fundo, dois candeeiros de pé, uma jukebox, dois candeeiros deitados, dois quadros nas paredes laterais, um relógio derretido preso numa teia de aranha.

O prometido é devido, 2



MP (de pé, no meio da sala, olha em redor)
GR (entra, e senta-se)
ABB (entra, vindo da esquerda)
CA (entra, olha para os outros)
FMO (entra, com ar apressado)
PS (entra, e senta-se discretamente)
OMS (entra, com ar enfastiado)
LQ (fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo)

O prometido é devido, 3



(de pé, no meio da sala, olha em redor) (espantada) – Mas o que é isto?
(entra, e senta-se) (intrigada) – Isto??…
(entra, vindo da esquerda) (decididamente) – É um deíctico.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) (espantada) – Ai é?!
(entra, vindo da esquerda) (corrigindo) – Bom, agora é mais uma interjeição!
(entra, olha para os outros) (curiosa) – O que é isto?
(de pé, no meio da sala, olha em redor) (explicativo) – Pois, é isso mesmo que estamos a ver.
(entra, com ar apressado) (surpreendida) – Já cá estão todas?
(entra, vindo da esquerda) (ríspida) – Todas não! Que eu saiba ainda faltam três!
(entra, e senta-se discretamente) (tímida) – Desculpem o atraso.
(entra, com ar enfastiado) (desdenhosa) – Ora foda-se!
(entra, olha para os outros) (espantada) – Tento na língua!
(entra, com ar enfastiado) (secamente) – Mas tento na língua o quê? Se isto já está vai com a rédea solta!
(de pé, no meio da sala, olha em redor) (conciliadora) – Mas isto o quê? Isso é o que eu gostava de saber…
(entra, e senta-se discretamente) (aparte, falando consigo mesma) – Agora é que eu já não estou a perceber…
(entra, olha para os outros) (espantada) – Olha quem vem a chegar…
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) (sobranceira) – A didascália marou! Que chinfrim desgraçado!

O prometido é devido, 4



(espantada) – Mas o que é isto?
(de pé, no meio da sala, olha em redor) — Desculpe, mas quem dizia isto era eu!
(intrigada) – Isto??…
(entra, e senta-se) – E a senhora também me estava subordinada.
(intrigada) – Desculpe, mas isto é uma cooperativa.
(decididamente) – Não é um deíctico!
(entra, vindo da esquerda) — Tem a certeza?
(intrigada) – Pois tenho! É uma cooperativa e todas temos direito de voto.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Pois esse é que é problema!
(corrigindo) – Qual problema?
(entra, vindo da esquerda) — Está bom de ver qual é o problema: a cooperativa alargou-se de forma sub-reptícia.
(curiosa) – Sub-reptícia?
(entra, olha para os outros) — Pois foi: éramos oito e veja o que se passa agora.
(explicativo) – Desculpe, mas está nos estatutos.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) — Mas que estatutos?
(surpreendida) – Nos estatutos da associação.
(entra, com ar apressado) — Não posso crer: isto é uma tomada do poder!
(ríspida) – Nada disso. Foi um alargamento democrático.
(entra, vindo da esquerda) – Democrático? Democrático isto?
(tímida) – Sim, se umas têm direito, as outras também.
(entra, e senta-se discretamente) – Não estava à espera disto.
(desdenhosa) – Mas disto o quê?
(entra, com ar enfastiado) — Ora foda-se!
(espantada) – A senhora também é sempre a mesma coisa.
(entra, olha para os outros) — Valha-nos isso!
(secamente) – Isso o quê?
(entra, com ar enfastiado) – A estabilização do referente.
(conciliadora) – Seja lá o que for, agora não interessa…
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Que incoerência, meu Deus!
(aparte, falando consigo mesmo) – Quanto tempo há espera desde momento…
(entra, e senta-se discretamente) – Há espera?!
(espantada) – Hé da emoção… não é todos os dias que o aparte entra na conversa.
(entra, olha para os outros) – O certo é que ficámos em minoria. Passámos de oito para vinte e três, e isso, por muito que vos custe, é que não se compreende.
(sobranceira) – Não há nada que diga o contrário, ou há?
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo)– A didascália marou! Que estardalhaço!

[continua]

13 setembro 2005

post it

postar

11 setembro 2005

Noland, little rouges

omnipresente, o zumbido

omnipresente, o zumbido da refrigeração do disco rígido fazia de baixo contínuo, sobre o qual as notas do teclado, palavra a palavra, e frase a frase, delimitavam compassos, alternando longos momentos de quietude com irrupções continuadas de percussão, sublinhadas, de vez em quando, pelos estalidos da persiana e da porta provocados pelo vento, que entrava pela janela semi-aberta, por onde subiam também vozes de cães, motores e crianças, que o gemido da caixa parecia submergir com o seu canto eléctrico, companheiro inseparável do bombardeamento de electrões com que o tubo de raios catódicos lhe colonizava o nervo óptico, negando-lhe o entendimento da notação que a máquina lhe arrancava à mão, o tendão da linguagem paralisado pela escuta.

07 setembro 2005

Identidade

Poderia descrever-me como um humano
cheio de sede,

à beira do mutismo, contrafeito
sob a álgida presença de uma miragem

- wishful thinking.
Poderia descrever-me ainda

como um bicho que deslizasse
no mapa da mais plana existência.

Hoje, soberano de uma visão lúcida,
a de ver-te chegar,

não me sobra sequer a pretensão
de uma alegoria

que não seja esta:
a mais funda comunidade de virtude

traça os seus desígnios, os seus prodígios
no sangue de uma cidade-espécie por classificar.

Um amplexo de sonho
protege esse outro mapa,

e devolve-me a capilaridade
com que se conquista

a alegria.

06 setembro 2005

Ordem de trabalhos: as regras, 1 (allegro cappriccioso, con spirito)


















[Sobe o pano]
ABB – Os senhores não ouviram umas vozes quando vínhamos a chegar?
FMO – Umas vozes? Eu não ouvi nada.
OMS – Nem era preciso dizer…
CA – Eu ouvi qualquer coisa, mas não posso garantir que fossem vozes. Podia ser uma corrente de ar.
PS – Uma corrente de ar?
MP – Acho que o Sr. Baptista tem razão. Eu também ouvi umas vozes.
LQ – Ouvir vozes? Isso é o mais natural. Eu estou sempre a ouvi-las.
GR – E já foi ao médico?
LQ – O Sr. acha que é um caso médico, é?
GR – Não sei. Mas podia ser um sintoma…
LQ – Um sintoma? Um sintoma de quê, vamos lá a saber?
FMO – Pendurar-se no pano... ouvir vozes…
LQ – É precisamente esse o problema dos leitores.
GR – Dos leitores?
CA – Sim, ler no mundo os seus sistemas.
ABB – Exactamente. Alegorizarem as leituras.
CA – Interpretarem os signos como sintomas.
FMO – Não estou a perceber.
OMS – Nem era preciso dizer…
GR – O Sr. Serra tinha qualquer coisa a dizer. Aliás, tinha uma ideia.
CA – Pouco sarcasmo e mais dedicação, Sr. Rubim.
PS – Bem, se vamos fazer um clube de leitura, convinha haver umas regras.
LQ – Umas regras?
OMS – Sim, também digo! Regras para quê?
PS – Bem, são mais uns princípios orientadores, umas directrizes, umas guidelines
ABB – Acho bem. Qualquer clube tem um mínimo de regras, ainda que não estejam escritas. Ainda que sejam apenas consuetudinárias.
LQ – Consuetudinárias, Sr. Baptista!? Mais respeito!
CA – E quais são as suas regras?
FMO – Só espero que não venha para aí com os mandamentos do Pennac!
LQ – Os mandamentos do Pennac?
MP – Então não eram do Moisés?
OMS – Este é um caso perdido, meu Deus!

Ordem de trabalhos: as regras, 2 (allegro vivace, con gusto)



















GR – Caramba, que o homem está à espera de falar! Se houver sete falas entre cada réplica, perde-se o fio à meada!
OMS – Se o Sr. Rubim também já se põe com metalepses, então é que isto perde a última réstia de coerência. Não acha, Sr Portela?
MP – Isso é uma imputação infame. O que é que eu tenho a ver com o Sr. Rubim? Ele é que sabe da sua vida.
GR – Os senhores só estão a agravar o caso! Já lá vão dez e ainda agora começámos. O Sr. Serra até se esquece que existe.
LQ – E quem é que não se esquece nos tempos que correm? A vida não está para existencializar.
FMO – Essencializar?…
OMS – O Sr., de cada vez que abre a boca, só piora a situação.
CA – Se é assim, também digo mais qualquer coisa. Por que hei-de calar-me? Só para dar a vez?
FMO – Atenção! O Sr Serra está à espera de falar!
ABB – E eu? Hein? E eu?
GR – E já lá vão duas vezes sete!
MP – Então não é setenta vezes sete?
OMS – Diálogos bíblicos não, por favor!
PS – Uff! Finalmente a minha deixa. Estava a ver que já não bibliologava.
CA – Eu bem o avisei. Disse-lhe: comece a conversa só com dois ou três e depois arranje maneira de eles darem a conhecer aos outros o que se passou. Mas ele não me quis dar ouvidos.
ABB – Pois foi, disse que estava a ouvir umas vozes. E devia ser verdade, que eu também ouvi.
GR – E que era preciso apressarmo-nos.
FMO – Que o pano ia subir.
LQ – Que eu tinha que descer, que já era tarde!
OMS – E agora estamos aqui, sem pano, à boca de cena… tudo por darem ouvidos a esse cretino!
MP – A quem?

Ordem de trabalhos: as regras, 3 (allegro strepitoso, finale)

















PS – Bom, as regras são estas: cada um traz um objecto qualquer e lê.
ABB – Um objecto qualquer e lê? Que espécie de regra é essa? Então isto não é um clube de leitura? E leitura não vem de letra? E letra não vem de littera?
LQ – E littera vem de onde, ó fundacionalistas etimológicos?
CA – Vem do latim!
FMO – Vem do sânscrito!
OMS – Pergunte ao Heidegger!
MP – Vem das cavernas!
GR – Das cavernas?! Há aqui qualquer coisa que não bate certo!
OMS – Se há!
ABB – Bom, Sr. Serra, estou decepcionado. O Sr. disse que tinha tido uma ideia. Defraudou o público.
PS – Então, o que têm a minhas regras de mal?
CA – O plural é majestático, no mínimo. Só vi uma regra até agora.
ABB – Sabe que não se começa um clube de leitura assim sem mais nem menos. Vejo que nem conhece as regras do Pennac, afinal de contas.
LQ – As regras de quem? A esse tal Pennac só tenho uma coisa a dizer: não se leia, saltem-se páginas, não se acabem os livros, releiam-se, seja lá os que forem, amem-se essas figuras de papel, seja onde for, salte-se de uns para outros, leiam-se em voz alta, recusemo-nos a dizer seja o que for acerca deles, rasguem-se páginas, esventrem-se lombadas, cuspa-se para o chão…
FMO – Cuspa-se para o chão?!
GR – Penduremo-nos nas cortinas!
LQ – O que é que está a insinuar?
CA – Calma, calma. Estamos a chegar a um consenso. Não deitem tudo a perder!
FMO – Acabe-se com a moral da leitura de uma vez por todas…
OMS – Finalmente o Sr. Oliveira lá deu uma para a caixa.
ABB – Para a caixa?
PS – A caixa da leitura.
MP – Então não era das esmolas?
OMS – Poupe-nos, poupe-nos…
GR – Estava-se mesmo a ver como isto ia acabar.
PS – Nem sequer merece o benefício da dúvida!
CA – Sim, até aborrece…
LQ – A terceira lei da termodinâmica!
ABB – É fatal!
FMO – Certo como a morte!
MP – Não olhem para mim.
[Cai o pano]

05 setembro 2005

Interlúdio em um Acto (cena 1)



















Boca de Cena – Então, o que é que se passa?
Pano – Não se passa nada.
Boca de Cena – Passa-se alguma coisa.
Pano – Não se passa nada!
Boca de Cena – Eu bem vejo pelas tuas pregas que se passa alguma coisa.
Pano – Não se passa nada.
Boca de Cena – Não tenhas medo. Sabes que podes confiar em mim.
Pano – Posso mesmo?
Boca de Cena – Sabes bem que sim. Então já estamos juntos há tanto tempo.
Pano – Sim, é verdade.
Boca de Cena – Tirando aquela vez em que te foste embora.
Pano – Não fui eu. Sabes bem que fui a lavar. Não tenho culpa.
Boca de Cena – Podias ao menos ter avisado.
Pano – Como? Se nem eu sabia...
Boca de Cena – E essa não foi a única, tenho outras memórias mais dolorosas.
Pano – O que queres dizer?
Boca de Cena – Não me digas que já te esqueceste?!
Pano – O quê? Isso?
Boca de Cena – Isso mesmo!
Pano – Levaram-me para a sala de costura. Não foi nada do que tu pensas.
Boca de Cena – Isso agora...
Pano – Se é assim, não te digo mais nada.
Boca de Cena – Pois não digas.

Interlúdio em um Acto (cena 2)


















Boca de Cena – Então, o que é que se passa?
Pano – Não se passa nada.
Boca de Cena – Passa-se alguma coisa.
Pano – Não se passa nada!
Boca de Cena – Eu bem vejo pelas tuas olheiras que se passa alguma coisa.
Pano – Não se passa nada.
Boca de Cena – Estiveste a chorar?
Pano – Um pano não chora.
Boca de Cena – Pois não. Mas se chorar também não há nada de mal nisso, pois não?
Pano – Isso é o que tu dizes.
Boca de Cena – Repara em mim, por exemplo: estou sempre a abrir e a fechar, falo, canto, suspiro, calo-me, e até choro. E não me acontece nada, pois não?
Pano – Mas isso és tu. Com um pano não é a mesma coisa.
Boca de Cena – Mas tu não és um pano qualquer!
Pano – Pois não! Por isso mesmo...
Boca de Cena – Por isso mesmo o quê?
Pano – Deveria haver mais respeito.
Boca de Cena – Mais respeito?
Pano – Sim.
Boca de Cena – Mas o que é que se passa?
Pano – Não se passa nada!
Boca de Cena – Diz, não tenhas receio. Sabes que estou sempre a teu lado.
Pano – Lá isso estás.
Boca de Cena – Vês?

Interlúdio em um Acto (cena 3)


















Boca de Cena – Então, dizes-me o que se passa?
Pano – Só se não disseres a ninguém.
Boca de Cena – Claro. Fica um segredo entre nós os dois. Já temos muitos segredos os dois, não temos?.
Pano – Pois, é verdade!
Boca de Cena – Então, é só mais um. Assim crescem os nossos laços.
Pano – Mas tens de prometer uma coisa.
Boca de Cena – O quê?
Pano – Não dizes nada à teia.
Boca de Cena – Eu nunca digo nada à teia. Se calhar és tu que lhe dizes.
Pano – Eu?
Boca de Cena – Pois, tu! Não costumas subir lá para cima? E não dizes que falas no sono?
Pano – Se calhar tens razão. Tenho de ter mais cuidado.
Boca de Cena – Então, afinal porquê essas pregas e essas olheiras?
Pano – Sabes, tenho de falar baixinho.
Boca de Cena – O quê? Fala mais alto.
Pano – Tenho de baixar a voz. Eles andam aí.
Boca de Cena – Eles?
Pano – Sim, são oito, e às vezes nove.
Boca de Cena – Mas o que tem isso de especial? Esta vida é assim: há dias em que é só um ou dois, noutros dias são multidões a andar de cá para lá e de lá para cá.
Pano – Não é por isso. Não é por serem oito ou nove. É o que eles fazem e dizem.
Boca de Cena – Mas isto é mesmo assim. Nem pareces um pano lavado e remendado. Eles não têm culpa nenhuma. Está tudo no guião.
Pano – Com estes não. Dizem coisas à toa e fazem o que lhes dá na cabeça. Vê-se bem que não têm guião. Ainda por cima não têm consideração nenhuma por mim.
Boca de Cena – Como assim?
Pano – Sobem-me e descem-me de qualquer maneira. Vê lá tu, que um deles até se pendura em mim e se põe a baloiçar de um lado para o outro.
Boca de Cena – Não me digas!?
Pano – E há outro que me põe a falar, assim, despudoradamente, à boca de cena.
Boca de Cena – Realmente... se fosse a ti, não me prestava mais a isso. Não se trata um pano assim.
Pano – Chiu!, parece que estou a ouvi-los. Já lá vêm outra vez. Cala-te agora...
Boca de Cena – Sai da frente, sai da frente, deixa-me espreitar...

04 setembro 2005

Ordem de trabalhos: a queda, 1 (espontânea)



















CA – Então, está decidido?
ABB – O quê?
CA – O clube de leitura.
ABB – Não sei, temos de ponderar bem…
OMS – Ponderar o quê?
GR – Sim, também digo: ponderar o quê?
ABB – Há muita coisa a esclarecer. Como é que o clube se organiza? Quem faz o plano de actividades? Quem faz as fichas de leitura?
MP – As fichas de leitura?
LQ – Sim, boa pergunta! Que merda é essa das fichas?
ABB – Coisas simples: autor, título, editor, data. Nada dramático.
CA – Número de páginas, preço, tradutor quando for caso disso, sei lá…
LQ – Isso até parece a biblioteca de turma. O Sr. Baptista e a Sra Clara não pensaram bem no assunto, é o que me parece.
ABB – Designer gráfico, ilustrador, enfim, a malta toda que intervém no objecto.
MP – A malta toda que intervém no objecto?!
OMS – Não se faça desentendido. Não é o Sr. que tem essa mania dos agentes de produção?
CA – Agentes de produção?
GR – De produção e de recepção. E o que dizem o Sr. Serra e o Sr. Oliveira a isto?
FMO – A quê? Não sei do que estão a falar.
OMS – Ora, cá vamos nós outra vez. Estamos a falar do clube de leitura, caramba!
FMO – Ainda?
OMS – Ainda como? Então acha que o assunto já está resolvido?
PS – Calma, senhores. Vamos ao que é importante. Estive desde ontem a pensar no busílis…
MP – No busílis?
OMS – Cale-se e deixe a acção avançar. Não estrague a isotopia com perguntas descabidas. Guarde as metalepses.
LQ – Guarde as metalepses?! Mais respeito, Sr. Silvestre.
FMO – Sim, isto pode não ser um clube de leitura ainda, mas já é um clube, para todos os efeitos.
OMS – Então, e o Sr. anda de chinelas e t-shirt?
FMO – E o que tem o cu a ver com as calças? Com o calor que está, o que é que esperava?
OMS – Começo a pensar se os critérios de admissão não deveriam ter sido mais rigorosos…
PS – Bom, ia a dizer, antes de ser interrompido…
MP – Mas alguém o interrompeu?
FMO – Deixe-o falar. Deixei-o falar à vontade.
PS – Bom, ia a dizer, antes de ser interrompido pela segunda vez, que estive a pensar no busílis e tenho uma ideia.
GR – Pouco barulho aí desse lado, que o Sr. Serra tem uma ideia.
ABB e CA – O Sr Serra tem uma ideia!
LQ – Não posso com coros!
MP – Veja-o como um dueto.
GR – Alguém tem de dirigir estas reuniões. Isto não pode continuar assim.
[Cai o pano]

Ordem de trabalhos: a queda, 2 (caótica)


















ABB – Este pano é seu?
CA – Meu, não. Pergunte ao Sr. Quintais.
ABB – Este pano é seu?
LQ – Qual pano?
ABB – Curioso! Ainda agora o tinha na mão.
FMO – Pois tinha, mas eu vi-o subir.
GR – O que é que se passa?
MP – Parece que o Sr. Oliveira viu o pano subir.
OMS – Não admira, que ele vai muito ao teatro.
FMO – Não estou a brincar. Garanto-lhe que subiu e subiu bem.
LQ – Então é como o petróleo! Ainda bem que não conduzo.
ABB – Ai é? O senhor continua a teimar em vir de taxi para o clube?
CA – Afinal de quem era o pano?
MP – Acho que era um pano qualquer.
OMS – O que interessa isso agora?
PS – Sim, não foi para isso que viemos.
GR – Mas os senhores vieram? Eu ia a passar. Só por acaso vos apanhei.
ABB – Mas olhe que não foi da lama.
GR – O que está a sugerir?
ABB – Que o Sr. está sempre a passar… Tire os auscultadores e sente-se.
CA – O Sr. Serra disse que tinha uma ideia para o clube de leitura.
OMS – E qual é? Pode saber-se? Ou o Sr. Portela vai continuar a desfiar os seus isótopos?
MP – Essa terceira pergunta é descabida, no mínimo. O Sr. bem sabe que a conversa segue o seu curso. Não há nada a fazer.
OMS – Se me dá outra fala daquelas, a conversa acaba já aqui!
CA – Não se exalte Sr. Silvestre, já sabe como ele é. Deixe-o à vontade. Estamos aqui para ouvir o Sr. Serra, e ele ainda mal abriu a boca.
PS – Estava a ver que não dizia mais nada hoje.
LQ – E o seu silêncio vinha mesmo a calhar.
PS – Porquê? Posso saber?
FMO – É o pano. É o pano que vem a descer outra vez.
[Cai o pano]

Ordem de trabalhos: a queda, 3 (pendular)


















LQ – Esta coisa do pano é fixe! Uma trip de etnometodologia!
ABB – O que é que se passa com o Sr. Quintais?
FMO – Não sei. Pendurou-se no pano e anda de cá para lá a baloiçar.
OMS – Isto é intolerável.
GR – Isto?
OMS – Sim, este movimento pendular.
CA – Faz umas tonturas do caraças.
MP – Não estejam a olhar para mim. Ele que desça do pano.
PS – Então, posso começar?
ABB – Espere pelo pano!
PS – Pelo pano?
FMO – Sim, está quase a subir.
CA – Outra vez?
GR – Outra vez, não. Ainda é a primeira, que eu saiba.
OMS – Macacos me mordam se volto a pôr os pés numa reunião destas!
MP – Não olhe para mim. Não tenho nada a ver.
FMO – Tem, tem. Veja só o Sr. Quintais.
MP – Onde?
OMS – Homem, não disfarce o que é mais que óbvio.
ABB – Olhe, olhe, lá vai ele!
LQ – ’Tá-se bem aqui em cima.
CA – Estas reuniões são sempre assim?
GR – Até costumam correr bem. Não sei o que se passa. Devem ser efeitos da leitura.
PS – Obrigado, Sr. Rubim. Estava a ver que não havia deixa para mim.
CA – Aproveite agora, Sr. Serra, e diga-nos qual é a sua ideia. Tenho uma leve suspeita, mas não quero adiantar-me…
FMO – Depressa, depressa…
PS - …!??
[Cai o pano]

03 setembro 2005

Arcimboldo, legumes 1

Arcimboldo, legumes 2

Reunião de condomínio (impromptu, 2ª edição, variorum)

ABB – A Sra já sabe da última proposta do Groucho?
CA – Que proposta?
ABB – De um clube de leitura.
CA – Ah, a do clube de leitura na prisão?
MP – Na prisão não, no Casmurro.
CA – Mas isto já é um clube de leitura...
ABB – Refere-se aos cocassos e faceciosos ou aos droláticos e pilheriáticos?
OMS – Especioso, como sempre. Refere-se aos testes da venda, claro.
MP – Testes de venda?
OMS – Da venda, eu disse, da venda: o pano nos olhos, a cegueira poética.
GR – Refere-se à Enciclopédia de Bolso do Groucho.
ABB – Ou talvez à Antologia esquecida na mesa de cabeceira.
CA – Sim, refiro-me a isso, e a tudo o mais.
FMO – Isto é o clube de leitores fantasma.
ABB – Leitores fantasma ou clube fantasma?
FMO – Que importa isso agora?
MP – The ghost club of the ghost readers.
LQ – Nada disso. Formamos mas é o clube de leitura de Karl Kraus.
PS – E não esqueçamos as letrinas.
MP – Letrinas?
PS – Sim, as quintas-feiras serão dedicadas às letrinas. Leituras com cheiro.
GR – E quando é que lemos Malinowski? E Ruth Benedict? Quando, hein? Isso é que eu gostava de saber.
LQ – Esqueça isso, Sr Rubim. Kraus é quanto basta.
GR – E o que me diz das Lições de Abismo de Gustavo Corção? Devíamos dedicar uma semana por semana só a isso.
CA – O Sr deve estar a delirar. Eu proponho a semana Adília Lopes e, de vez em quando, O Diário de uma Intelectual enquanto Jovem Mãe (e ao invés).
ABB – Eu proponho a Antologia Esquecida na Mesa de Cabeceira, alternando com as Propostas de Candidatura ao Casmurro e com os Caderninhos de Retórica do Groucho.
MP – Um ponto de ordem: essas propostas estão todas ao serviço da mão invisível.
PS – Da mão invisível?
OMS – Sim, do clube do Espada e do Adam Smith.
FMO – Não estou a perceber.
OMS – Não me admira. O senhor nunca cá põe os pés. E a biblioteca aumenta todos os dias. Veja só aquele monte ali ao canto.
FMO – Que monte? Não vejo nada.
OMS – Não me admira. E tenho eu de aguentar isto…
ABB – Se é para ser um clube de leitura a sério, então só há uma hipótese: Claro Enigma seguido de Dom Casmurro e Tutaméia.
PS – Claro enigma seguido de dom casmurro e tutaméia?
MP – Sim, mas em itálico, Sr. Serra. Falta-lhe o itálico.
PS – Está a insultar-me agora, é? Perdeu finalmente as boas maneiras e essa calma irritante? Já não era sem tempo.
MP – Chá? Alguém quer chá?
LQ – Olha-me só o que este Sr. foi desenterrar ao baú do condomínio.
FMO – O baú do condomínio? Então não era do Pessoa?
OMS – Isso é a Arca, porra!
MP - A Arca é do Noé, não é?
LQ – Lá está o Sr. com reminiscências. Pegue no Kraus, pegue no Kraus, que a vida é curta.
CA – Clarice Lispector!
ABB – Carlos Drummond de Andrade!
CA – Anaïs Nin!
OMS – Auster! Beckett! Coetzee! Cunhal!
MP – Lá vem o abecedário…
CA – Natália Correia!
OMS – Oets Kolk Bouwsma!
MP – Quem?
OMS – Pergunte ao Wittgenstein!
MP – Também entra na lista?
PS – Mas há uma lista?
FMO – Adorno e Benjamin: isso sim, seria um começo!
OMS – Avraham Halfi!
MP – Pode soletrar?
OMS – Ahron Zeitlin!
MP – Quem?
OMS – Marshall Sahlins!
CA – Hélène Dorion!
FMO – Traumprotokolle e performance.
OMS – Isso não vem a propósito!
LQ – E o que é que vem a propósito nos dias que correm?
ABB – Manuel Bandeira!
GR – Comecemos pelas Apanhadas da lama!
MP – Da lama ou da cabeça?
ABB – Um Copo de Cólera!
GR – Onde?
MP – Faltou o itálico outra vez!
LQ – Desconta-se-lhe no ordenado!
PS – Não acho justo.
LQ – Proponho Walser, Ballard, Virilio e Cliford Geertz para descontrair.
FMO – Não, para descontrair, Bertolt Brecht.
ABB – Camilo Castelo Branco!
CA – Natalia Ginzburg!
OMS – O Espesso!
MP – O fino!
PS – Qual fino?
MP – Pensei que houvesse algum.
PS – Não se esqueçam dos livros raros e da ala dos reservados.
MP – Dos namorados?
PS – Dos reservados. A bibliofagia.
LQ – O Sr. não era mais dado à biblioclastia?
PS – Primeiro come-se, depois queima-se. Já trouxe o Typos Nacionaesdo Latino Coelho.
MP – De quem?
OMS – O Sr. confrange qualquer confrade. É só inside jokes e depois tem estas brancas.
MP – Piadas internas, piadas eternas.
OMS – Jocosas gasosas, paronomásias penosas.
MP – Trocadilhos trabalhosos, trocadilhos maltrapilhos.
OMS – Leia, leia, leia. Siga o exemplo do Sr. Serra. E deixe-se disso.
PS – Trouxe também os Ensaios de Michel de Montaigne. Já para não falar no Nariz enganado, e desenganado, tabaco empulhado, e defendido, publicado em Lisboa em 1767. E qualquer dia trago o Hissope.
LQ – Isso é só narizes velhos e nacos duros de roer. Nada de merdas. Kraus, e só um aforismo de três em três dias. Matemos a verborreia. Tenho dito.
FMO – Tem dito? E o que é que isso interessa? Tenho-me contido até agora, mas não posso com tenhos ditos. Street art e nada mais. A leitura tá na rua, senhores.
OMS – Tá na rua e tá no Tom. Tom Zé & Cramps & O Têpluquê& Tiken Jah Fakoly é a minha proposta. E fora com esses poetas de caixa de hipermercado e do código de barras.
CA - Catherine McKinnon! Andrea Dworkin! Lizzie Borden!
GR – Aplaudido! Lester Young forever.
[Entra Groucho]
G – Mas que falta de decoro é esta, minha senhora e meus senhores?

Arcimboldo, biblioteca

Reunião de condomínio (impromptu)

ABB – A Sra já sabe da última proposta do Groucho?
CA – Que proposta?
ABB – De um clube de leitura.
CA – Ah, a do clube de leitura na prisão?
MP – Na prisão não, no Casmurro.
CA – Mas isto já é um clube de leitura…
ABB – Refere-se aos cocassos e faceciosos ou aos droláticos e pilheriáticos?
OMS – Especioso, como sempre. Refere-se aos testes da venda, claro.
MP – Testes de venda?
OMS – Da venda, eu disse, da venda: o pano nos olhos, a cegueira poética.
GR – Refere-se à Enciclopédia de Bolso do Groucho.
ABB – Ou talvez à Antologia esquecida na mesa de cabeceira.
CA – Sim, refiro-me a isso, e a tudo o mais.
FMO – Isto é o clube de leitores fantasma.
ABB – Leitores fantasma ou clube fantasma?
FMO – Que importa isso agora?
MP – The ghost club of the ghost readers.
LQ – Nada disso. Formamos mas é o clube de leitura de Karl Kraus.
PS – E não esqueçamos as letrinas.
MP – Letrinas?
PS – Sim, as quintas-feiras serão dedicadas às letrinas. Leituras com cheiro.
GR – E quando é que lemos Malinowski? E Ruth Benedict? Quando, hein? Isso é que eu gostava de saber.
LQ – Esqueça isso, Sr Rubim. Kraus é quanto basta.
GR – E o que me diz das Lições de Abismo de Gustavo Corção? Devíamos dedicar uma semana por semana só a isso.
CA – O Sr deve estar a delirar. Eu proponho a semana Adília Lopes e, de vez em quando, O Diário de uma Intelectual enquanto Jovem Mãe (e ao invés).
ABB – Eu proponho a Antologia Esquecida na Mesa de Cabeceira, alternando com as Propostas de Candidatura ao Casmurro e com os Caderninhos de Retórica do Groucho.
MP – Um ponto de ordem: essas propostas estão todas ao serviço da mão invisível.
PS – Da mão invisível?
OMS – Sim, do clube do Espada e do Adam Smith.
FMO – Não estou a perceber.
OMS – Não me admira. O senhor nunca cá põe os pés. E a biblioteca aumenta todos os dias. Veja só aquele monte ali ao canto.
FMO – Que monte? Não vejo nada.
OMS – Não me admira. E tenho eu de aguentar isto…
ABB – Se é para ser um clube de leitura a sério, então só há uma hipótese: Claro Enigma seguido de Dom Casmurro e Tutaméia.
PS – Claro enigma seguido de dom casmurro e tutaméia?
MP – Sim, mas em itálico, Sr. Serra. Falta-lhe o itálico.
PS – Está a insultar-me agora, é? Perdeu finalmente as boas maneiras e essa calma irritante? Já não era sem tempo.
MP – Chá? Alguém quer chá?
LQ – Olha-me só o que este Sr. foi desenterrar ao baú do condomínio.
FMO – O baú do condomínio? Então não era do Pessoa?
OMS – Isso é a Arca, porra!
MP - A Arca é do Noé, não é?
LQ – Lá está o Sr. com reminiscências. Pegue no Kraus, pegue no Kraus, que a vida é curta.
CA – Clarice Lispector!
ABB – Carlos Drummond de Andrade!
CA – Anaïs Nin!
OMS – Auster! Beckett! Coetzee! Cunhal!
MP – Lá vem o abecedário…
CA – Natália Correia!
OMS – Oets Kolk Bouwsma!
MP – Quem?
OMS – Pergunte ao Wittgenstein!
MP – Também entra na lista?
PS – Mas há uma lista?
FMO – Adorno e Benjamin: isso sim, seria um começo!
OMS – Avraham Halfi!
MP – Pode soletrar?
OMS – Ahron Zeitlin!
MP – Quem?
OMS – Marshall Sahlins!
CA – Hélène Dorion!
FMO – Traumprotokolle e performance.
OMS – Isso não vem a propósito!
LQ – E o que é que vem a propósito nos dias que correm?
ABB – Manuel Bandeira!
GR – Comecemos pelas Apanhadas da lama!
MP – Da lama ou da cabeça?
ABB – Um Copo de Cólera!
GR – Onde?
MP – Faltou o itálico outra vez!
LQ – Desconta-se-lhe no ordenado!
PS – Não acho justo.
LQ – Proponho Walser, Ballard, Virilio e Cliford Geertz para descontrair.
FMO – Não, para descontrair, Bertolt Brecht.
ABB – Camilo Castelo Branco!
CA – Natalia Ginzburg!
OMS – O Espesso!
MP – O fino!
PS – Qual fino?
MP – Pensei que houvesse algum.
PS – Não se esqueçam dos livros raros e da ala dos reservados.
MP – Dos namorados?
PS – Dos reservados. A bibliofagia.
LQ – O Sr. não era mais dado à biblioclastia?
PS – Primeiro come-se, depois queima-se. Já trouxe o Typos Nacionaes do Latino Coelho.
MP – De quem?
OMS – O Sr. confrange qualquer confrade. É só inside jokes e depois tem estas brancas.
MP – Piadas internas, piadas eternas.
OMS – Jocosas gasosas, paronomásias penosas.
MP – Trocadilhos trabalhosos, trocadilhos maltrapilhos.
OMS – Leia, leia, leia. Siga o exemplo do Sr. Serra. E deixe-se disso.
PS – Trouxe também os Ensaios de Michel de Montaigne. Já para não falar no Nariz enganado, e desenganado, tabaco empulhado, e defendido, publicado em Lisboa em 1767. E qualquer dia trago o Hissope.
LQ – Isso é só narizes velhos e nacos duros de roer. Nada de merdas. Kraus, e só um aforismo de três em três dias. Matemos a verborreia. Tenho dito.
FMO – Tem dito? E o que é que isso interessa? Tenho-me contido até agora, mas não posso com tenhos ditos. Street art e nada mais. A leitura tá na rua, senhores.
OMS – Tá na rua e tá no Tom. Tom Zé & Cramps & O Têpluquê & Tiken Jah Fakoly é a minha proposta. E fora com esses poetas de caixa de hipermercado e do código de barras.
CA - Catherine McKinnon! Andrea Dworkin! Lizzie Borden!
GR – Aplaudido! Lester Young forever.
[Entra Groucho]
G – Mas que falta de decoro é esta, minha senhora e meus senhores?