08 março 2006

Casa de férias 7 ou um crime deveras insolúvel

A acção decorre na véspera do infausto acontecimento marcado para dia 8. Nenhuma personagem está autorizada a pronunciar o nome daquele cujo nome não devemos pronunciar. Sala de estar fortemente iluminada. Mourão anda de um lado para o outro, por vezes vem à janela, respira fundo, abana levemente a cabeça, retoma a deambulação.
Som estridente da campainha. Duas vezes. Mourão vai abrir apressadamente. Entram dois homens. Não olham para Mourão nem lhe dirigem a palavra. Vão deambulando pela sala. Mourão regressa devagar, fala com um tom incrédulo e até um pouco medroso.

MOURÃO: Os senhores são quem eu penso que são?
UM: Sem dúvida.
OUTRO: Oui, Monsieur, não tenha disso a menor dúvida.
MOURÃO: Mas não é possível.
UM: Os tempos são outros. Os meios são outros. (aparte) Se bem que isto é um pouco bizarro.
OUTRO: Ora, Sr. Mourão, como pode pensar que a nossa presença aqui tenha o que quer que seja de estranho, se as circunstâncias não só a explicam como até a exigem?
MOURÃO: Mas quem os chamou? Os outros membros do clube?
UM: O caso foi-nos entregue, esse é o procedimento normal.
MOURÃO: A ambos? (dirigindo-se a Outro) A você também? Quem o contratou a si?
OUTRO: O importante agora é o caso, Sr. Mourão.
MOURÃO: Há qualquer coisa de errado... (pausa) Mas vamos lá tentar resolver isto de uma vez. (em tom decidido) Têm toda a cooperação que eu possa dar, mas ajudem-me a perceber, se é que sabem, a razão de estarem aqui. (dirigindo-se a Um) Inspector Maigret, quer ter a bondade de me dizer porquê?
MAIGRET: O crime aconteceu numa cidade de província, percebe, num bairro social... algumas pistas apontam para um crime fortuito, contendas com a vizinhança... numa palavra, vida empírica a mais, se é que me percebe.
MOURÃO: (em voz baixa) Disparate! (tom normal) Mas qual a relação entre Paris e um bairro social de uma cidade de província?
MAIGRET: O crime, Sr. Mourão. Naquele Paris os crimes eram muito classe baixa, psicologia previsível, procedimentos que...
MOURÃO: (interrompendo) Obrigado. (dirigindo-se a Outro) Sr. Hercule Poirot, quer ter a bondade?..
POIROT: Bien sur. Há também suspeitas de que o crime possa estar ligado ao clube. Um crime colectivo, são essas as suspeitas, para ser mais específico. Um crime envolvendo sem excepção toda a alta classe que passava pelo clube.
MOURÃO: Classe alta, o clube?!
POIROT: Alta classe intelectual, Sr. Mourão. Um crime intelectual perfeito. (Maigret desinteressa-se da conversa, Poirot entusiasma-se) Um crime único e perfeito: todos o mataram, incluindo o senhor, naturalmente, e afinal ninguém o matou.
MOURÃO: Não compreendo.
POIROT: Acredito que não. Mas acredite também que a sua responsabilidade é imensa. O senhor pô-lo a ler, a ver filmes, a passear, em férias… Enfim, repetindo o meu amável colega, demasiada empiria. Mas o ponto, bien sur, é que se todos o mataram, afinal ninguém o matou. Já estava morto há muito, Monsieur. Voilá.
MOURÃO: Mas então porque diz que todos o mataram? E se já estava morto, quem o matou? Ou de que morreu?
POIROT: Bien sur. (pausa; caminha até à janela) Ah, o mar…
(fica absorto, a olhar; Maigret regressa à conversa)
MAIGRET: Conhece bem as pessoas do prédio?
MOURÃO: Não.
MAIGRET: E os membros do clube?
MOURÃO: Pessoalmente, não todos.
MAIGRET: E os que conhece pessoalmente, quando os viu pela última vez?
MOURÃO: Já vai há uns tempos, ora deixe-me pensar…
MAIGRET: Um jantar, talvez?
MOURÃO: Não, acho que não…
MAIGRET: Uma amena cavaqueira regada a Barca Velha e a Mouchão 1988?
MOURÃO: Como não bebo, não dou muita…
MAIGRET: (interrompendo) Não bebe?!
MOURÃO: Quase nunca. Vinho, nunca gostei. De quando em vez, muito raramente, um licor…
MAIGRET: (em voz baixa) Era o que eu pensava. (normal) Mas então, a última vez que viu um dos membros do clube?.. Digamos, foi antes do Natal? Há mais tempo, há menos tempo?
MOURÃO: Há mais tempo, seguramente.
MAIGRET: Aí está.
MOURÃO: Aí está o quê?
MAIGRET: Não pode ter a certeza disto.
MOURÃO: Disto o quê, caramba? De que raio está você a falar?
(Maigret cala-se e acende o cachimbo. Poirot volta à conversa)
POIROT: O erro foi terem-no posto a falar, Monsieur.
MAIGRET: Porque é sabido: quando alguém começa a falar, em algum momento vai ter de calar-se. Enfim, é uma lei.
POIROT: E é muito diferente calar-se alguém que falava, ou continuar calado quem nunca falou.
(Mourão olha para ambos estupefacto, parece em transe. Maigret e Poirot falam como se não estivesse mais ninguém na sala)
MAIGRET: Deviam ter escolhido o Harpo.
POIROT: Voilá.
MAIGRET: Agora é tarde.
POIROT: Quel dommage…
MAIGRET: Acha que ele sobrevive?
POIROT: Não tem importância.
MAIGRET: Pois não, já não é connosco.
POIROT: Voilá.
(pausa)
MAIGRET: Vamos?
POIROT: Pra ?!
MAIGRET: Que ideia, claro que não! Não há lugar para nós. Completa empiria, aquilo.
POIROT: Pois, era o que me parecia. (pausa) Mas então, vamos para onde?
MAIGRET: Ora, para onde há-de ser? Vamos ter com ele.
POIROT: Claro, bien sur.
(pausa)
MAIGRET: Vamos?
POIROT: Vamos.
(não se mexem)