Um jubilado em Londres fresco e barbeado
- Leu a opinião de Hélder Macedo sobre os atentados em Londres?
- Quem é o vate?
- Poeta, romancista, e, de facto, homem propenso a vaticínios.
- Que mais?
- Já agora, meu caro Groucho, a breve entrevista identifica-o como "professor jubilado do King's College de Londres" e residente nessa cidade "há mais de 40 anos".
- Que mais?
- Tem outros rótulos por agora esquecidos. Por exemplo, "especialista em Bernardim Ribeiro" e, sobretudo, no que creio ser o seu excelso troféu, "o amigo português do casal Hughes-Plath".
- Que mais?
- Parece ser um tipo simpático, não tivesse aquele pose de...
- Professor jubilado?
- Precisely.
- E que dizia o pedante?
- Tenho aqui o jornal. Deixe-me citá-lo: "Às oito já andava a pé, e oiço sempre as notícias na BBC4. Estava a ouvir um programa muito interessante sobre o ... Marlowe, e quando saí da casa de banho, já fresco e barbeado, deram a notícia."
- O homem e a sua circunstância, pois.
- Perguntaram-lhe se manteve a calma ou se se precipitou, ou podemos presumi-lo pelo teor da resposta.
- Que foi?
- "Como só se enerva com problemas simples, do género cortar-se numa folha de papel, manteve-se calmo."
- Sim, um tipo calmo e barbeado jamais se inquietaria com atentados na rede de transportes de uma grande metrópole que, afinal, habita "há mais de 40 anos".
- O metro e o autocarro estarão certamente excluídos como legítimos meios de transporte para um jubilado em Londres fresco e barbeado. Aliás, a mulher do professor anda de táxi. Volto a citar: "A mulher que se preparava para apanhar um táxi, desistiu. Hélder Macedo ligou a televisão, e ficaram ambos a ver a BBC."
- A que conclusões chegou o professor depois dessa manhã bem passada em casa a ver a BBC com a mulher?
- Que nada justifica o alarme. Diz ele: "Não vale a pena entrar em pânico".
- Reserve-se isso para a eventual cena gore com uma folha de papel.
- Eu acrescentaria o problema dos aeroportos...
- Dos aeroportos?
- Sim, Groucho, o professor está preocupado com a sua world tour. Deixe que lhe leia: "A polícia vai ser muito mais rigorosa, vai chatear imenso nos aeroportos..."
- Presumo então que todas as restantes cogitações sejam irrelevantes. Por exemplo, o cosmopolitismo que tanto apreciamos.
- Não, longe disso, ele terá concluído o seu depoimento chamando a atenção para a a impossibilidade do incensado cosmopolitismo estar em risco: "É de tal maneira forte que isso não vai acontecer." A sermos justos, acrescenta: "Agora, se isto for o início de uma série, as coisas serão mais complicadas. Os radicais poderão reclamar uma razão moral."
- Interrogo-me sobre tal "razão moral".
- Que seria?
- Você é que tem o jornal em mãos.
- Sim, mas o depoimento acaba mesmo aí.
- Ah, nesse caso avanço desde já com uma hipótese. Uma rigorosíssima interdição: que sejam censurados ou editados sem apelo vaticínios de jubilados frescos e barbeados sobre assuntos de tal gravidade. O que seria, como sabe, uma medida demasiadamente tolerante para radicais, mas um ponto de honra para nós, os civilizados...
- Não me diga que partilha da opinião do Dr. Mário Soares.
- Que é?
- Negoceie-se com os terroristas.
- Brilhante! Admirável barganha.
[v. Público, 8 jul 2005, p. 8; assina A.L.C.]
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