chegou antes da hora marcada
chegou antes da hora marcada. a consulta era só às onze e meia. uma coisa rotineira: destartarização, flúor, dois dedos de conversa. cáries, não havia, com certeza. a água fria às vezes causava impressão. teria de voltar a selar aquele pré-molar? deixara o Tiago no infantário às dez. não valia a pena voltar a casa. caminhar um bocado. um café. depois a consulta. abriu o livro que começara a ler ontem à noite. um texto saído em 2002 ou 2003. a Teresa é que lhe falara naquilo. não conhecia o autor. negrume, de Sam Brackett. traduzido pela primeira vez. recomeçou no fragmento 29.
frag. 29: grafofilia
Escrever não é natural, a não ser como uma espécie de segunda natureza que se desenvolve de modo imperceptível no centro do sistema de signos com que organizas aquilo que a linguagem te faz ser ou querer ser. É preciso arruinares o que julgas que és, o que julgas que queres ser, o que julgas que é possível ser ou querer ser. Tentas imaginar contra a gangrena que te coloniza a imaginação, o vírus da linguagem a replicar-se nas tuas células. Tentas escrever sem ser vítima dos símbolos, sem sucumbires à descrição que fazes do mundo. Escrever serve também para isso. Se se aprende a controlar, é o analgésico mais duradouro e um motor de emoções e sentimentos quase inesgotável. Permite produzir tristeza sem tristeza, alegria sem alegria, amor sem amor, raiva sem raiva, isto é, permite transformar em puros fenómenos de consciência os estados físicos e químicos do cérebro e do corpo. Por isso é tão paradoxal quando vista sob o ponto de vista biológico: tirando intensidade a tudo parece tornar tudo mais intenso. Ao tentares não transcrever o código genético com que a linguagem tenta a todo o instante reproduzir-se dentro de ti, retro-alimentas apenas o circuito cortical-subcortical. Submetes-te ao poder da sintaxe, na vã esperança de abrires uma brecha por onde se possa respirar. Espreitar. Pôr a cabeça de fora da cabeça. Comer a letra.
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