12 julho 2005

Reconstrução, 3

- Mais calmo, agora, Groucho?
- Calmo não é a palavra certa. Diga antes, conformado. Temporariamente conformado.
- Com a perda do manuscrito, presumo?
- Não, homem, com estes diálogos em que você me enredou. Não ter eu passado mais uns tempos nas termas, com o calor que está. A boa educação é um ónus tremendo…
- Falávamos da reconstrução.
- Quer dizer, falava você. E eu ouvia.
- Bear with me, my dear Groucho, como dizem os americanos.
- Não é com americanismos que lá vamos. Avance, avance, que o seu interlocutor impacienta-se.
- Entretanto, depois de muitas queixas, foi determinado pela Comissão da Reforma Governamental da Câmara dos Representantes uma auditoria à contabilidade da ocupação e reconstrução do Iraque. Sabe qual foi uma das primeiras descobertas da Comissão, apenas seis meses depois da invasão?
- O que é que quer que lhe diga, se não li nada das suas fontes? Evite perguntas destas, se não quer colocar o diálogo em risco. É só um conselho que lhe dou.
- A comissão descobriu que a companhia Halliburton, do Texas, estava a especular com o petróleo que importava do Kuwait para o Iraque: enquanto as foças americanas importavam o petróleo a 1,57 dólares por galão, a Halliburton vendia-o aos civis iraquianos por 2,64, obtendo mais de 150 milhões de dólares de lucro em poucos meses.
- E é com esses dados que espera interessar-me no assunto? Francamente.
- Entretanto foi publicado o relatório do GAO (US General Accountability Office), em Julho de 2004. Mais de uma centena de contratos, envolvendo biliões de dólares, foram recomendados para investigação e eventual procedimento criminal. Além disso, de cerca de 8,8 biliões de dólares, que terão passado para o novo governo de Bagdad ainda durante a administração de Bremer, não há qualquer rasto.
- Não dramatize. Sabe bem que o dinheiro é volátil por natureza. O mesmo não se pode dizer de um manuscrito. A sua analogia começa a ruir pela base.
- Mesmo os contratos para a logística das tropas americanas — instalações, refeições, higiene — foram objecto de especulação de uma outra empresa, a Kellog, Brown & Root, subsidiária da Halliburton. Os 73 milhões de dólares de custo das caravanas para alojamento das tropas da 101ª Divisão Aerotransportada foram o dobro daquilo que teria custado a construção de aquartelamentos. O relatório refere, por exemplo, que foram cobrados 88 milhões de dólares por três milhões de refeições que nunca foram servidas.
- Sabe que as refeições virtuais são as mais difíceis de confeccionar. Por isso não me admira nada. Aliás, o Sr. podia ter começado a sua conversa pelo prato desaparecido, em vez dos helicópteros. Criava mais suspense e poupava-me esta sua pedagogia do oprimido. E sempre era mais interessante para os leitores.
- Não me distraia, que me desaparece o fio ao pensamento.