bocejou pela terceira vez
bocejou pela terceira vez. tocava-se já a última peça do concerto dessa noite. o cansaço do dia acumulava-se. o terceiro andamento do concerto em Fá Maior, na primeira parte, fora o único momento em que saíra do torpor que lhe tomara conta dos membros e dos sentidos, praticamente desde que se sentara no lugar, K23. entrara na sala dez minutos antes do início. no palco, fortemente iluminado, já estava toda a orquestra. abriram-lhe os ouvidos, aqueles minutos de afinação. sentir novo chão debaixo dos pés. como se só agora tivesse aterrado. a percepção do real sempre atrasada. sopros e cordas, a procurarem a vibração certa, numa massa de som que ora enchia o volume da sala, ora se rarefazia e soçobrava num único instrumento. parede ainda batida pelo sol. água quente do duche. pouco mais de meia hora antes de chamar o táxi de novo. entra o primeiro violino. vénia. aplausos. de novo as cordas se tentam harmonizar. o corpo sempre adiantado. gargarejo. água de colónia. ele, que raramente se via ultrapassado pelos acontecimentos. entra, pouco depois, o maestro, que vai dirigir e estar ao piano ao mesmo tempo. «já cheguei. está tudo bem. não te preocupes. amanhã falamos. com mais calma.» percussão, sopros e piano entrecortavam num ritmo assombroso o pano sonoro das cordas. ainda mais uma chamada para atender. que compassos frenéticos. cabrão do Bráulio. «good evening, ladies and gentleman» - o maestro, sorridente, anunciava a primeira peça, descrevendo cada um dos andamentos. veremos o que sai do inquérito. trombones, timbales e pratos marcam, furiosos, aquela espécie de dança estrepitosa.
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