30 junho 2005

Alvoroço no condomínio, 4

PS – De quem é este pano?
GR – Meu não é.
FMO – Só se for do Sr. Quintais.
(O Sr. Quintais entra.)
FMO – Então o Sr. entra ou sai?
LQ – Isso queria eu saber.
OMS – Isto é absurdo! Solecismo e solipsismo é o que eu tenho a dizer. Bolas e futebolas!
ABB – Onde é que nós íamos afinal?
PS – Íamos no Estilista, que se apoderava do Casmurro e nos punha a trabalhar para ele.
MP – Ao menos o Sr. Serra mantém a cabeça fria. Quer dizer, orienta-se. Não perde o fio à meada.
PS – Trago aqui o folhame que ele me mostrou. Avisou-me que estas eram só as primeiras sete. «There’s more where these came from», ipsis verbis, sem tirar nem pôr.
ABB – Então, já faz ameaças, ahn?! Não lhe bastou violar ontem a caixa do correio?
GR – E depois, o que disse mais?
PS – Resmoneou qualquer coisa em jeito de despedida, entre o bigode e o charuto, e foi-se embora. A única frase que ouvi foi «I miss the spa».
OMS – E as folhinhas são esses papeluchos que traz aí amarrotados?
PS – Sim, mas o melhor é ler isto tudo de seguida.
FMO – Devagar, que isto vai-me saber bem. A catástase aproxima-se.
(Cai o pano. Ouvem-se os papeluchos em voz off)

[Papelucho 1]
O ecdótico catacrético paronomásico atrabilioso
O responsável pela edição crítica para o assistente de investigação:
— Foi o senhor que digitou o manuscrito dactilografado?
— Não, eu apenas digitalizei. O dactilógrafo é que manuscreveu.
— Mas olhe que o espólio está muito necessitado de filologia.
— Pois é, deram-lhe muitos pontapés com as mãos.
— A ecdótica foi toda anedótica. E que lição tirar daqui agora?
— Depende da resolução: o óptico é inimigo do bom.
— E qual é a sua leitura?
— 300 pontos por polegada.

Caderninhos de retórica de ABB, fl. 48v
posted by Groucho, o Estilista

[Papelucho 2]
publicar 1. forma rebuscada de reciclar papel 2. produção da esfera pública 3. todos autores, todos leitores 4. sinónimo de “to post” (v.) 5. o que fazem as trombetas da fama
povo 1. multidão de gente 2. classe inferior 3. espectro do Estado (v.) 4. arcaísmo usado em expressões como “do povo”, “pelo povo”, “para o povo” 5. agente duplo da História
poesia 1. está na rua (v.) 2. arte de fazer versos 3. estado comovido de alma 4. cheiro do dinheiro (v.) 5. acção
post 1. posta de prosa ou linguado 2. posta de pescada pescada num blog (v.) 3. prefixo em expressões como “post-restante” para referir o post que sobra, e “post-ila” para referir o caderninho dos posts 4. pau fixado verticalmente no chão 5. “vai num post e vem no outro” (uso idiomático)

Dicionário de Soundbytes, por OMS,
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[Papelucho 3]
O nome de guerra do bloguista é muitas vezes o seu calcanhar daquilo. O pseudónimo trai-lhe a intenção e desmascara-lhe a anonímia. Ao confundir a fala e a escrita o bloguista oferece o flanco à seta que há no nome. A escrita é o acto de fala que o deixa lívido. A letra vívida consome-lhe a presença no filamento da lâmpada. São letras de contacto que o movem na lente desfocada dos dias. É a luz da sua própria fraqueza que lhe arde no ponto cego da retina. No diário em linha dá passos em falso. Tomba. O zumbido da voz digital posterga-lhe o ser postiço. Prostra-o. O nome de guerra mata-o. O remetente destinatário. O amador na cousa amada. Circuito curto para o circuito.

Nick, o bloguista 2, por PS
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[Papelucho 4]
decidiu começar ao acaso. um jogo que gostava de fazer. fechou os olhos e abriu negrume:
frag. 30 fotofilia
Sabes que o que está na imagem nunca pode ter existido daquele modo: é o olhar que dilata o instante ao ponto de lhe obliterar o futuro e o passado. Essa momentânea suspensão do tempo pode ser semelhante ao olhar com que espreitamos o mundo, se o conseguirmos despir do hábito e da rotina, que, no entanto, parecem servir para nos protegermos da força com que a vida se manifesta dentro dos dias. Organizamos o tempo para abolir esse apelo do presente e construir a identidade que nos deixa dormentes. A fotografia parece captar essa consciência fugidia do instante, dando-lhe uma duração e uma intensidade aparentemente impossíveis de apreender de outro modo. Mas afinal produz o que pretende captar, fazendo de conta que agarra a luz.

Juca Gaspar, uma novela aeroportuária duvidosa, por MP
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[Papelucho 5]
Liriconírico
— Abriu-se um buraco no céu da boca. Por onde desceste até à garganta. Que era uma árvore virada ao contrário. Ramos na terra, raízes no ar.
— Mas esse sonho foi o sonho de ontem! Conta-me o sonho que tiveste esta noite!
— Abriu-se um buraco no céu da boca. Por onde desceste até à garganta. Que era uma árvore virada ao contrário. Ramos na terra, raízes no ar.
— Mas esse sonho foi o sonho de ontem! Conta-me o sonho que tiveste esta noite!
— Abriu-se um buraco no céu da boca. Por onde desceste até à garganta. Que era uma árvore virada ao contrário. Ramos na terra, raízes no ar.
— Mas esse sonho foi o sonho de ontem! Conta-me o sonho que tiveste esta noite!
Adorno não concluiu este apontamento erótico — ao que se crê, adornou por motivos eróticos.

Os protocolos de Adorno, por FMO
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[Papelucho 6]
Clones na bruma
Abri a televisão e fui desfiando canais: num canal estava a dar um clone a perorar. Noutro canal estava a dar outro clone a piorar. Noutro clonal estava a dar outro. Recorde-se o adágio de Benjamim: não há paciência.

Exercícios de auto-etnografia, por LQ
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[Papelucho 7]
«Varrer o cotão filológico e os saltimbancos letrados» – declarou o insigne expressamente. Varrê-los e varrê-los bem, escreveu dentro do saco de plástico. Estranhei esta filosofia da navalhada sem contexto, mas o peso da melancolia não deixa ânimo para brincadeiras.

Os dias da Clepsydra, por GR
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(Sobe o pano.)
ABB – Está a arranjar lenha para se queimar.
OMS – Eu faço-lhe já a cama.
FMO – Isto é o que se chama um post nas costas.
LQ – E é o que eu chamo um caso de observador-observado.
ABB – O que o senhor chama não é para aqui chamado.
PS – A questão é: como descalçar a bota?
MP – Como tirar a pedra do sapato?
GR – E quem é que lhe chega às solas, quem? Quem lhe chega à coluna?
(Cai o pano.)
ABB – Não cai o pano, merda nenhuma, que isto é sério! O Sr Quintais já tem a acta?
(Cai o pano.)