17 junho 2005

estava na hora de ir buscar a criança

estava na hora de ir buscar a criança. acabou de comer a maçã já no elevador. um copo de água. a carteira. as chaves. o estacionamento abrasava àquela hora. o carro, agora sem a sombra do prédio, irradiava as ondas de calor. o pensamento, como os gestos, um sempre a seguir ao outro. o cansaço, que lhe parecia mais um reflexo do asfalto quente, embotava-lhe os sentidos. quase consciente da coreografia quotidiana, accionou o controlo remoto, abriu a porta, e observou com estranha minúcia os movimentos com que se apoderava do assento do carro, uma perna a seguir à outra, os joelhos a juntarem-se para se ajustar ao banco, o gesto de puxar e fixar o cinto, uma mão no volante, outra na alavanca das mudanças, uma perna sempre mais esticada do que a outra, quando rodava a chave na ignição, quando carregava no pedal da embraiagem, quando fixava o retrovisor. o próprio sufoco parecia automatizado. não pôde deixar de quase notar o desfasamento que havia sempre em tudo isto: ora percebendo antes dos gestos, como que antecipando os reflexos musculares, ora percebendo depois dos gestos, descrevendo-os para si mesma, catadupa de recordações de curta duração sempre a gerar novos registos. espécie de gps que em vez de descrever a sua posição a gerava, produzindo as coordenadas que triangulavam os movimentos relativos da mecânica corporal e os movimentos desta no mapa do mundo. a chama do sol no braço esquerdo. o primeiro semáforo vermelho.