29 julho 2005

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 8

- Tenho aqui um.
- Um queh?
- Um diacrItico.
- Entan-u mostre lah!
- Primeiro, tem de fechar os olhos...
- Fechar os olhos?
- Nan-u me diga que nan-u gosta de surpresas?
- Apanhou-me bem disposto, E a sua sorte.
- Fechar os olhos e abrir as man-us...
- Homem, voceh nan-u faz nada por menos?
- O que E que quer dizer?
- O costume: que isto nan-u ata nem desata.
- Mas diga lah se nan-u foram uns dias bem passados?
- Que dias?
- Os dias crIticos.
- Voceh nan-u se consegue explicar, pois nan-u?
- Eu?, se E tudo claro como um fio de ahgua.
- Esta conversa E que estah por um fio.
- Nan-u me diga que se vai embora sem ver.
- Sem ver o queh?
- O que eu tenho aqui para lhe mostrar.
- Estah a ver qual E o problema? San-u estes cIrculos constantes.
- Que cIrculos?
- Os cIrculos viciantes!
- Viciantes?
- Sim, sim: resposta, pergunta. Pergunta, pergunta. Resposta, resposta. Pergunta, resposta. Perde-se o fio.
- O fio da conversa?
- Nan-u, o fio de ahgua!!!...
- Claro, claro. Agora entendo o que quis dizer.
- Mas eu nan-u quis dizer nada, caramba. Vah, mostre o que traz aI.
- Primeiro, tem de fechar os olhos e abrir as man-us.
- Que tal assim? (Espero que ninguenm esteja a ver)
- Vou deixah-lo cair para as suas man-us. Cuidado, que vai sentir o diacrItico.
- Nan-u sinto nada.
- E agora?
- Nada de nada. Soh este crIptico dia!

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 7

- Quem estah aI?
- ...
- Voceh, Groucho?
- ...
- Jah chegou?
- ...
- Responda, Groucho!
- ...
- Nan-u se esconda.
- ...
- Soh pode ser voceh.
- ...
- Pensei que vinha mais logo ah tarde.
- ...
- Mas estava a ficar ansioso, sabe?
- ...
- Groucho, estah a ouvir?
- ...
- Responda, Groucho!
- ...
- Dizia-lhe que hoje veio mais cedo do que eu esperava.
- ...
- Olhe, mas ainda bem, pois eu estava a ficar ansioso.
- ...
- Nan-u responde, mas eu sei bem que estah aI.
- ...
- Jah arranjei um para lhe mostrar.
- ...
- Estah a ouvir?
- ...
- Estou a dizer que jah tenho um para lhe mostrar.
- ...
- Passahmos do diahlogo de surdos para o diahlogo de mudos.
- ...
- Que dia!
- ...

28 julho 2005

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 6

- Isto nan-u pode continuar.
- Isto?
- Sim, este dia.
- Porqueh?
- Ainda pergunta, Groucho?
- Estah a atingir um ponto crItico.
- Entan-u e o som que se ouvia?
- Esquessa isso.
- E o dia da marmota?
- Esquessa.
- E o sino que tocou?
- Esquessa, jah disse.
- Pronto, jah cah nan-u estah quem falou.
- A que E que se refere?
- Nan-u me refiro a nada.
- Como a nada?
- Era uma maneira de dizer.
- De dizer o queh?
- Olhe, que nan-u se pode falar consigo.
- E depois diz que sou eu...
- Concordo consigo.
- Concorda comigo?
- Sim, acho que isto nan-u pode continuar.
- Mas isto o queh?
- Voceh foi o primeiro a dizeh-lo.
- A dizer o queh?
- Que isto nan-u pode continuar.
- Ah, sim, pois, nan-u pode, nan-u.
- Sempre fui dessa opinian-u.
- Isto atingiu um ponto de nan-u retorno.
- Um ponto crItico.
- Cada dia que passa mais crItico...
- Mais dia crItico...
- Este dia a dia sem diacrItico.
- Que crIptico!
- Que dia!

27 julho 2005

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 5

- Chiu!
- Nan-u disse nada.
- Estah a ouvir?
- O queh?
- O dia.
- O diacrItico?
- Nan-u, o dia.
- O dia?
- Estah a ouvir?
- Nan-u oisso nada.
- Mas ouve-se perfeitamente.
- O meu ouvido jah nan-u E o que era.
- Chiu!
- Ah! Agora estou a ouvir qualquer coisa.
- Fale mais baixo... fale mais baixo...
- Estou a ouvir um rumor... um som abafado, E este?
- Nan-u, nan-u E esse.
- Soh oisso esse. Nan-u consigo ouvir mais nada.
- Mas ouve-se tan-u bem, Groucho.
- Isso E o que o Sr. diz.
- Chiu! Estah a ficar mais forte agora.
- Agora estou a ouvir... um murmuhrio que se ouve lah ao fundo, E este?
- Nan-u, nan-u E nada disso. Voceh nan-u escuta com atensan-u
- Espere, espere... estou a ouvir outro som.
- Outro som? Como outro som?
- Parece um fiozinho de ahgua a correr numa caleira lah fora.
- Nan-u oisso nada.
- Quer dizer que deixou de ouvir aquele som?
- Qual som?
- O som que estava a ouvir.
- Nan-u, esse ouve-se lindamente.
- Que som E esse afinal?
- Cale-se, e escute.
- Se nan-u se ouve nada...
- Que dia!
- Que crIptico!

Humor ou falta dele

Certas coisas serão sempre tão tristes que para elas não haverá solvente universal.

26 julho 2005

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 4

- Jah sei, Groucho...
- Jah sabe?!
- Como posso...
- Como pode?!
- Sair deste dia.
- Ah!
- Estah a ver?
- Se voceh o diz.
- Digo. Pois digo, digo, e o Sr. sai comigo.
- Saio?
- Sai.
- Sai.
- Saio. Devia ter dito saio.
- Mas o Sr. E que diz o que eu digo?!
- Calma, calma. Nan-u queremos outro dia crItico.
- Lah estah outra vez!
- Lah estou outra vez...
- Nan-u me repita, porra!
- Calma. Sangue frio, cabessa fria, pehs frios, tudo frio. Nan-u se irrite.
- Isto parece o dia da marmota.
- O dia da marmota?
- Se nan-u fossem estes ecos.
- Estes ecos?
- Nan-u ouve? O dia da marmota, o dia da marmota. Estes ecos, estes ecos.
- Agora E que nan-u estou a segui-lo.
- Olhe, sabe que horas san-u?
- Porque pergunta, Groucho?
- A sua resposta diz tudo.
- Mas eu nan-u respondi.
- Assim E que nan-u E possIvel. Tem de haver um common ground, ou nan-u?
- Common ground??
- Sim, um terreno comum. Uma base. Uma plataforma.
- Voceh deixa-me perplexo.
- Se E assim, cale-se. Nan-u diga mais nada.
- Que crIptico!
- Que dia!

Morning glories

As ipomeias inglesas chamam-se morning glories.
Whitman fala-nos de uma ipomeia à sua janela no "Song of myself".

Eu não gosto de Whitman.

Mas gosto da palavra ipomeia
porque desconheço o seu referente.

A submissão ao tangível destrói
o sonho da linguagem.

[para F.]

25 julho 2005

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 3

- Groucho, sabe, por acaso, o que E um diacrItico?
- Nan-u acredito. Estou capaz de me suicidar.
- Nan-u me diga. O que E que se passa?
- Nan-u se passa nada.
- Mas entan-u, o suicIdio?
- Qual suicIdio?
- Qual hah-de ser? O seu, homem, o seu.
- Era uma forsa de expressan-u.
- Ah, bom! Estava a ficar preocupado.
- Com queh?
- Consigo, Groucho. Consigo.
- Consegue o queh?
- Lah estah voceh a confundir as coisas.
- O que hei-de fazer?!, se estamos sempre aqui parados...
- Aqui parados como? O que estah a insinuar?
- Nan-u estou a insinuar nada, caramba! Voceh E que nan-u se mexe!
- O senhor E que disse que se matava. Que culpa tenho eu?
- Jah lhe disse que era uma forsa de expressan-u. Avansamos?
- Mas para onde E que o Sr. quer ir?
- Nan-u acredito. Estou capaz de me suicidar.
- Outra vez! Mas que E que se passa? Nan-u tenha receio. Desembuche.
- Jah lhe disse, era uma forsa de expressan-u.
- Ah, bom! Estava a ficar preocupado.
- Com queh? Consigo, Groucho?
- Sim, tambenm, mas nan-u soh.
- Diga, diga o que tem a dizer. Nan-u seja crIptico.
- Era mesmo aI que eu queria chegar.
- Entan-u chegue. Que os leitores estan-u impacientes.
- Quais leitores?
- Deus me valha! Os leitores destes diahlogos.
- Pensei que a conversa era soh entre nohs os dois.
- E E.
- Groucho, entan-u jah nan-u percebo nada.
- Pois se E assim, homem, nan-u fale. Nan-u diga nada.
- Que dia!
- Que crIptico!

23 julho 2005

Alfabeto

Dia crItico sem diacrItico, 2

- Groucho, sabe, por acaso, o que E um diacrItico?
- Nan-u me diga que vamos ter a mesma conversa?
- Mas jah tivemos esta conversa, foi?
- Esta, nan-u, obviamente. Mas uma parecida.
- Como E que sabe?
- Pelo inIcio, claro. Ouve-se o inIcio e toca logo um sino.
- Toca logo um sino?! Nan-u estou a perceber.
- Rings a bell... knock on wood... cross your fingers... shut the door.... anglicismo puxa anglicismo, percebe?
- Mais devagar, que estah a desviar a conversa.
- Qual conversa?
- A conversa que estamos a ter.
- Afinal eu tinha razan-u.
- Nan-u estou a perceber.
- Como E que a conversa se pode desviar se voceh nan-u souber jah para onde ela vai?
- E quem lhe diz a si que...
- Nan-u me interrompa no meio da conversa.
- Chama a isto uma conversa?
- Isso pergunto eu!
- O senhor E que disse que Iamos ter a mesma conversa. Nan-u se arme em desentendido...
- Pois disse, mas enganei-me. Bem se veh que isto nan-u E conversa nenhuma!
- Como nan-u E conversa nenhuma? Entan-u o que E?
- Diga o Senhor, foi o Sr. que abriu as hostilidades.
- Nan-u fui eu, foi o sino, o sino E que descarrilou isto.
- Nan-u misture as metahforas, homem.
- Voceh hoje estah de todo.
- Estah a ver? E depois ainda diz que nan-u E a mesma conversa...
- Acha que jah tivemos esta conversa, E?
- Isto nan-u E conversa nenhuma, jah lhe disse. O mais grave E que nan-u saImos daqui.
- De onde?
- Deste dia crItico.
- Ah! Era mesmo aI que eu queria chegar.
- Entan-u porque nan-u disse logo?
- Groucho, voceh faz um santo perder a pacienncia.
- Pois, entan-u nan-u fale, homem. Nan-u fale.
- Que dia!
- Que crIptico!

22 julho 2005

Dia crItico sem diacrItico, 1

- Groucho, sabe, por acaso, o que E um diacrItico?
- Temos blindfold test, E, a esta hora?
- Ora, ora. Nan u me diga que E hora crItica para si?
- E a hora! E a hora!
- Cuidado, que assim ficamos sem e. Depois, quem vai poder dizer "e agora"?
- E a hora! E a hora!
- Todos temos a nossa. Acho bem que tenha a sua! Nan u critico por isso.
- Imagino que um dia nas corridas possa ser um dia crItico...
- Voceh lah sabe.
- E uma noite na Ohpera, uma noite crItica...
- A I jah estou mais de acordo. Arte total, arte banal.
- Aqueles quinze minutos, ou seis e meio, ou lah o que foi, E que foram crIticos.
- Mas isso seria um QueercrItico, nan u um diacrItico!
- Bom, entan u nan u sei o que seja.
- Logo vi.
- Apanhou-me descalsso. Com uma man u atrahs e outra ah frente.
- Tome lah!
- O queh?
- Os sapatos!
- Deixe-se de brincadeiras!
- E um sinal, homem!
- De queh?
- Da inocenncia...
- Ai E?
- Voceh hoje estah de todo.
- De todo e de parte. Pois voceh nan u se faz entender! Saiu-me cah um diacrIptico...
- Um diacrItico E um sinal.
- Um sinal de queh?
- Um sinal do fim dos tempos, porra! Um detonador ortograhfico!
- Agora E que estou ah nora.
- Estah voceh e estou eu, caramba! Que jah me arrependi!
- De queh?
- De falar de diacrIticos.
- Pois, entan u nan u fale, homem. Nan u fale.
- Que dia!
- Que crIptico!

Alfabeto

Um mergulho na merda

- O método será o fieldwork com observação participante, disse-nos o Senhor Malinowski.
- Mas isso é o fétiche da experiência, não?
- Sim, meu caro Groucho.
- Esses tipos da antropologia são metodologicamente muito primários.
- Creio que tem meia razão apenas. Recorde-se que o Malinowski era leitor de Conrad. Quando os nativos, esses "pretos", como ele os designa numa célebre passagem dos diários, quando os nativos, dizia, se tornavam insuportáveis, o homem fechava-se na sua tenda de Omarakana a ler Conrad. E queria ser o Conrad da antropologia, como nos diz o James Clifford. Polaco a escrever em inglês, e tudo!
- Você perde-se em detalhes. Por que razão se trata afinal de uma meia razão?
- Ah, é verdade, desculpe o registo digressivo! O Conrad era um grande pessimista, como sabe, e sobre a experiência ele escreveu em A linha de sombra: "Toda a gente tem uma excelente opinião acerca dos benefícios da experiência. Mas de facto, a experiência significa sempre algo de desagradável, contrariando sempre a sedução e a candura das ilusões." Ou seja, ironicamente o Malinowski devia saber muito bem o que representava a observação participante...
- Um mergulho na merda.
- Sim. Depois teremos sempre prerrogativas especiais sobre o conhecimento.
- E a seguir? Contemplamos o mundo melancolicamente?
- Parece-me bem que sim.
- Ó Quintais, lembre-se da máxima judaica: "O homem chora e Deus ri".
- Obrigado, divino Groucho.

14 julho 2005

Nobre ofício

Mrs Alfred Tennyson
Answered
begging letters
admiring letters
insulting letters
enquiring letters
business letters
and publishers' letters.
She also
looked after his clothes
saw to his food and drink
entertained visitors
protected him from gossip and criticism
And finally
(apart from running the household)
Brought up and educated the children.

While all this was going on
Mister Alfred Tennyson sat like a baby
Doing his poetic business.

[Philip Larkin, "The literary world", ii]

Um jubilado em Londres fresco e barbeado

- Leu a opinião de Hélder Macedo sobre os atentados em Londres?
- Quem é o vate?
- Poeta, romancista, e, de facto, homem propenso a vaticínios.
- Que mais?
- Já agora, meu caro Groucho, a breve entrevista identifica-o como "professor jubilado do King's College de Londres" e residente nessa cidade "há mais de 40 anos".
- Que mais?
- Tem outros rótulos por agora esquecidos. Por exemplo, "especialista em Bernardim Ribeiro" e, sobretudo, no que creio ser o seu excelso troféu, "o amigo português do casal Hughes-Plath".
- Que mais?
- Parece ser um tipo simpático, não tivesse aquele pose de...
- Professor jubilado?
- Precisely.
- E que dizia o pedante?
- Tenho aqui o jornal. Deixe-me citá-lo: "Às oito já andava a pé, e oiço sempre as notícias na BBC4. Estava a ouvir um programa muito interessante sobre o ... Marlowe, e quando saí da casa de banho, já fresco e barbeado, deram a notícia."
- O homem e a sua circunstância, pois.
- Perguntaram-lhe se manteve a calma ou se se precipitou, ou podemos presumi-lo pelo teor da resposta.
- Que foi?
- "Como só se enerva com problemas simples, do género cortar-se numa folha de papel, manteve-se calmo."
- Sim, um tipo calmo e barbeado jamais se inquietaria com atentados na rede de transportes de uma grande metrópole que, afinal, habita "há mais de 40 anos".
- O metro e o autocarro estarão certamente excluídos como legítimos meios de transporte para um jubilado em Londres fresco e barbeado. Aliás, a mulher do professor anda de táxi. Volto a citar: "A mulher que se preparava para apanhar um táxi, desistiu. Hélder Macedo ligou a televisão, e ficaram ambos a ver a BBC."
- A que conclusões chegou o professor depois dessa manhã bem passada em casa a ver a BBC com a mulher?
- Que nada justifica o alarme. Diz ele: "Não vale a pena entrar em pânico".
- Reserve-se isso para a eventual cena gore com uma folha de papel.
- Eu acrescentaria o problema dos aeroportos...
- Dos aeroportos?
- Sim, Groucho, o professor está preocupado com a sua world tour. Deixe que lhe leia: "A polícia vai ser muito mais rigorosa, vai chatear imenso nos aeroportos..."
- Presumo então que todas as restantes cogitações sejam irrelevantes. Por exemplo, o cosmopolitismo que tanto apreciamos.
- Não, longe disso, ele terá concluído o seu depoimento chamando a atenção para a a impossibilidade do incensado cosmopolitismo estar em risco: "É de tal maneira forte que isso não vai acontecer." A sermos justos, acrescenta: "Agora, se isto for o início de uma série, as coisas serão mais complicadas. Os radicais poderão reclamar uma razão moral."
- Interrogo-me sobre tal "razão moral".
- Que seria?
- Você é que tem o jornal em mãos.
- Sim, mas o depoimento acaba mesmo aí.
- Ah, nesse caso avanço desde já com uma hipótese. Uma rigorosíssima interdição: que sejam censurados ou editados sem apelo vaticínios de jubilados frescos e barbeados sobre assuntos de tal gravidade. O que seria, como sabe, uma medida demasiadamente tolerante para radicais, mas um ponto de honra para nós, os civilizados...
- Não me diga que partilha da opinião do Dr. Mário Soares.
- Que é?
- Negoceie-se com os terroristas.
- Brilhante! Admirável barganha.

[v. Público, 8 jul 2005, p. 8; assina A.L.C.]

13 julho 2005

Um desesperado em Oxford

Rodney Needham é um antropólogo social inglês. Mais que isso, Needham é um residente das torres de marfim de Oxbridge: um caso emblemático de uma cultura sob ameaça (ou irrevogavelmente comprometida) no pós-guerra. Ameaçada ou comprometida pelo gentio, i. é, proletários, mulheres, estrangeiros, e cientistas, afinal todos aqueles que vieram corromper a universidade com os seus estranhos modos de vida. A usar uma expressão cunhada por W. H. Auden, Needham é um representante das "antigas culturas de pedantismo (conceit)" (v. "In Memory of Sigmund Freud", 1939). Desenvolveu trabalho de terreno no sudeste asiático e escreveu copiosamente sobre parentesco e simbolismo.
Em 1972, Needham publica um livro imensamente influente. Refiro-me a Belief, language, and experience (Chicago, The University of Chicago Press). O livro inspira-se em Wittgenstein e Lévy-Bruhl, figuras às quais é, aliás, dedicado. A tese é basicamente a seguinte: a "crença" é um vocábulo/conceito culturalmente específico (ele não é passível de ser traduzido em inúmeras línguas onde como conceito nem sequer existe: exemplo Penan, exemplo Nuer, etc.); a "crença" não se reporta a quaisquer experiências internas aos sujeitos universalmente codificável; em última análise, a "crença" revela a impossibilidade em se aceder ao interior seja de quem for, como, em grande parte, todos os denominados conceitos psicológicos.
O livro é digressivo, reiterativo, titubeante, em suma, um daqueles pedaços de prosa académica erudita e grotescamente chata.
O que me parece de salientar são as desesperadas observações finais (a lembrar Hofmannsthal) acerca da impossibilidade da linguagem revelar o mundo ou o pensamento. E era aqui que eu gostaria de chegar. Needham escreve em conclusão (são mesmo as últimas palavras do livro): "The solitary comprehensible fact about human experience is that it is incomprehensible" (p. 246).
Ou seja, volvidas 246 páginas à procura de uma "redenção" argumentativa, o leitor encontra apenas desespero epistemológico, e não pode deixar de lamentar o tempo perdido a escutar o pedante professor inglês na sua prosa titilante e trituradora. O leitor não pode deixar de registar que Needham depois desta proposição suicidária (para um antropólogo e não só) continuou a ensinar, orientar teses, a escrever e a publicar.
Alguém deveria ter-lhe aconselhado a leitura de Álvaro de Campos: "Se te queres matar...", ou Nietzsche (tudo o que ele diz já tinha, aliás, sido dito por Nietzsche em "Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral" um quase rigoroso século antes): "Simplifica a tua vida, suicida-te".

12 julho 2005

Iraque, 1

Reconstrução, 1

- Então, mais conformado com o desaparecimento do seu manuscrito, Groucho?
- Nem me fale disso! Nunca imaginei, depois de tanta ética nos bastidores…Mas já estou por tudo…
- Imagine que eram notas do programa de reconstrução do Iraque?
- Como assim?
- Vou só dar-lhe uma pequena ideia. Imagine, por exemplo, 1,5 biliões de dólares em notas a serem entregues pela Autoridade Provisória da Coligação, em Erbil, a 12 de Abril de 2004, a um intermediário local. O dinheiro, em notas de 100 dólares, empacotado em várias paletes, enche três helicópteros Blackhawk.
- E de onde vinha essa massa toda?
- Da venda de petróleo iraquiano, ao abrigo do programa das Nações Unidas “Petróleo por Alimentos”. O Conselho de Segurança atribuiu esse dinheiro ao Governo americano para ser gasto em benefício do povo iraquiano.
- Não me vai dizer que esse dinheiro desapareceu?
- Não, não desapareceu todo de uma vez, se é a isso que se refere.
- Então não vejo onde está a analogia.
- Tenha calma que já lá chego.
- Estou a ver que também é dos que dá voltas e voltas para chegar ao busílis da questão. Temos falado pouco, mas nisso vejo que não está nada desacompanhado por estas bandas. A verborreia que eu tenho aturado neste último mês…
- Olhe que um manuscrito de 500 páginas….
- Não estou a ver aonde quer chegar…
- Acompanhe-me, acompanhe-me, e vai ver que o assunto é muito instrutivo.

Iraque, 2

Reconstrução, 2

- Dizia eu que a reconstrução do Iraque é o maior programa de ocupação dirigido pelo Governo americano desde o Plano Marshall. Mas com uma diferença significativa: a reconstrução do Iraque é paga pelo país libertado.
- Já estou ao corrente. Não é necessário repetir.
- Bom, havia para esse programa 6 biliões de dólares do programa das Nações Unidas, além dos valores bancários congelados e pelo menos 10 biliões de dólares do rendimento das exportações de petróleo só no ano a seguir à invasão. Todos estes fundos foram transferidos para uma conta do Banco da Reserva Federal em Nova Iorque, ao abrigo da resolução 1483 do Conselho de Segurança, aprovada a 22 de Maio de 2003. Nasceu assim o Fundo para o Desenvolvimento do Iraque. Também o Congresso…
- Se isto é uma aula de relações internacionais, está a falar com a pessoa errada. Esse seu excurso excede o que é razoável em nome da civilidade…
- Calma, Sr Groucho. Não seja susceptível. Uma boa conversa tem às vezes circunlóquios, mas traz as suas próprias recompensas.
- Se o senhor chama a esta prelecção uma conversa… O meu papel nestas “conversas” vai ter de se alterar. Já disse e volto a dizer. A minha paciência começa a chegar ao limite.
- Também o Congresso aprovou uma resolução que determinava uma comparticipação de 18,4 biliões de dólares do orçamento americano para o desenvolvimento do Iraque.
- Não me vai dizer que esse fundo também desapareceu?
- Não. Já lhe disse que não se trata de um desaparecimento puro e simples. A verdade é que a 28 de Junho de 2004, quando Paul Bremer deixou Bagdad, a Autoridade Provisória da Coligação tinha gasto 20 biliões do dinheiro iraquiano e apenas 300 milhões de dólares de fundos americanos.
- Pouparam a reserva nacional, está bem de ver. Mais um sinal de patriotismo.
- Não se vá embora, que o melhor está para chegar.
- Ai, as voltas que o Sr. dá! As voltas que o Sr. dá!

Iraque, 3

Reconstrução, 3

- Mais calmo, agora, Groucho?
- Calmo não é a palavra certa. Diga antes, conformado. Temporariamente conformado.
- Com a perda do manuscrito, presumo?
- Não, homem, com estes diálogos em que você me enredou. Não ter eu passado mais uns tempos nas termas, com o calor que está. A boa educação é um ónus tremendo…
- Falávamos da reconstrução.
- Quer dizer, falava você. E eu ouvia.
- Bear with me, my dear Groucho, como dizem os americanos.
- Não é com americanismos que lá vamos. Avance, avance, que o seu interlocutor impacienta-se.
- Entretanto, depois de muitas queixas, foi determinado pela Comissão da Reforma Governamental da Câmara dos Representantes uma auditoria à contabilidade da ocupação e reconstrução do Iraque. Sabe qual foi uma das primeiras descobertas da Comissão, apenas seis meses depois da invasão?
- O que é que quer que lhe diga, se não li nada das suas fontes? Evite perguntas destas, se não quer colocar o diálogo em risco. É só um conselho que lhe dou.
- A comissão descobriu que a companhia Halliburton, do Texas, estava a especular com o petróleo que importava do Kuwait para o Iraque: enquanto as foças americanas importavam o petróleo a 1,57 dólares por galão, a Halliburton vendia-o aos civis iraquianos por 2,64, obtendo mais de 150 milhões de dólares de lucro em poucos meses.
- E é com esses dados que espera interessar-me no assunto? Francamente.
- Entretanto foi publicado o relatório do GAO (US General Accountability Office), em Julho de 2004. Mais de uma centena de contratos, envolvendo biliões de dólares, foram recomendados para investigação e eventual procedimento criminal. Além disso, de cerca de 8,8 biliões de dólares, que terão passado para o novo governo de Bagdad ainda durante a administração de Bremer, não há qualquer rasto.
- Não dramatize. Sabe bem que o dinheiro é volátil por natureza. O mesmo não se pode dizer de um manuscrito. A sua analogia começa a ruir pela base.
- Mesmo os contratos para a logística das tropas americanas — instalações, refeições, higiene — foram objecto de especulação de uma outra empresa, a Kellog, Brown & Root, subsidiária da Halliburton. Os 73 milhões de dólares de custo das caravanas para alojamento das tropas da 101ª Divisão Aerotransportada foram o dobro daquilo que teria custado a construção de aquartelamentos. O relatório refere, por exemplo, que foram cobrados 88 milhões de dólares por três milhões de refeições que nunca foram servidas.
- Sabe que as refeições virtuais são as mais difíceis de confeccionar. Por isso não me admira nada. Aliás, o Sr. podia ter começado a sua conversa pelo prato desaparecido, em vez dos helicópteros. Criava mais suspense e poupava-me esta sua pedagogia do oprimido. E sempre era mais interessante para os leitores.
- Não me distraia, que me desaparece o fio ao pensamento.

Iraque, 4

Reconstrução, 4

- Muitos dos procedimentos não respeitavam as regras mínimas de contabilidade. Os inspectores verificaram, por exemplo, que faltava grande parte dos registos das despesas e dos pagamentos feitos pelas empresas subcontratadas pela Kellog, Brown & Root que pudessem confirmar as facturas apresentadas ao governo, num contrato que tinha o valor global de 3,9 biliões de dólares. Além disso, na escassa documentação apresentada relativa a subcontratações surge sempre um factor de “despesas adicionais”, que varia entre 10 e 35% do valor de cada factura e acerca do qual não foi dada uma explicação satisfatória.
- Passámos da aula de relações internacionais para a aula de contabilidade. E proclamaram isto um clube de cavalheiros: furtos, facadas nas costas, debates inflamados nos bastidores, mensagens insultuosas, discursos intermináveis. Começa a ser indecoroso até o simples acto de trocar umas breves palavras no cumprimento quotidiano. Nem a função fáctica sobrevive ao bárbaro impulso pedagógico que vos anima. Mal sabia eu que o senhor também era dado a prelecções. Sempre o achei mais discreto que os dois loquazes contumazes que não me deixam dormir descansado. Vou ter de me desviar quando o vir ao fundo do corredor, e é com pena que o digo. Imaginava que íamos ter uma outra relação. Mais íntima, mais colaborativa.
- Dizia eu, confrontada com os resultados da auditoria, a empresa criou a sua própria equipa interna de investigação. Sabe o que fez a equipa de investigação?
- Lá está o Sr. com perguntas irritantes. Se eu sou o pretexto para o Sr. falar sozinho, ao menos não enfade. Deixe-me tomar a água tónica em sossego.
- Alojou-se no hotel de cinco estrelas Kempinski, no Kuwait. A sua conta chegou a 1 milhão de dólares. Mais: mesmo depois de verificarem que havia subcontratação irregular, recomendaram que se prorrogassem os contratos. Os soldados indignaram-se: dormiam em tendas, ao custo de 1,39 dólares por noite.
- O sono dos guerreiros. É o que sabe melhor.
- Mas temos ainda o caso dos transportes. Um dos contratos da Kellog, Brown & Root dizia respeito ao transporte de mantimentos entre bases americanas. As frotas de camiões Mercedes Benz novos, ao preço de 85000 dólares cada, deslocavam-se pelas principais auto-estradas, escoltadas pelas tropas americanas, todos os dias. Ainda que não houvesse bens a transportar, os camiões faziam e cobravam as viagens. Não foram enviados filtros de ar e de óleo, nem sequer pneus sobressalentes. Camião que tivesse uma avaria era abandonado e destruído para que ninguém o pudesse usar, ficando a arder na berma da estrada. Por receio de emboscadas, os condutores tinham instruções para nunca abrandar. Um empregado da Kellog, Brown & Root testemunhou perante a comissão de inquérito do Congresso que, numa dessas viagens, um carro de uma família iraquiana, com quatro pessoas, foi abalroado para fora da estrada. O condutor teria dito que isso era normal.

Iraque, 5

Reconstrução, 5

- Acabámos a aula sobre o Fundo para a Reconstrução do Iraque?
- Não seja sarcástico, Groucho. Isto é uma conversação, um diálogo, uma interlocução, um colóquio, uma cavaqueira, enfim, um tête-à-tête.
- Seja lá o que for, a pilhagem e a guerra andam sempre de mãos dadas, meu caro. Não perca tempo com relatórios.
- Só mais meia dúzia de frases, Groucho. Prometo não me exceder. No Banco Central Iraquiano, desapareceram 11 dos 26 milhões de dólares de valores sequestrados pela Autoridade Provisória da Coligação. Na lista de pagamentos estão incluídas centenas de empregados fantasma e milhões de dólares foram pagos por trabalho fantasma, por exemplo, 3 379 505 dólares foram pagos a “a trabalho efectuado por pessoal que não estava no local” numa única reparação de um oleoduto. A dada altura foram encontrados 6,5 milhões de dólares no Líbano, a bordo de um avião ao serviço do Ministro do Interior nomeado pela administração americana. Além disso, as exportações de petróleo não estavam a ser contabilizadas. Oficialmente, durante o primeiro ano de ocupação as exportações totalizaram 10 biliões de dólares. Outras organizações, como a Christian Aid, estimam que terão sido exportados até cerca de 4 biliões de dólares adicionais não registados. Como vê, há muito por onde fazer analogias com o seu manuscrito.
- Mas a pilhagem literária é outra coisa. É coisa de estilistas. Não está ao alcance de qualquer administrador delegado.
- A situação não melhorou com a nova administração iraquiana. Actualmente, é a Comissão Suprema de Auditoria que superintende na fiscalização da aplicação dos fundos. Foi criada também uma Comissão Iraquiana de Integridade Pública. Das mais de 3400 queixas recebidas, apenas cerca de 2% foram indicadas para procedimento judicial. Vários altos funcionários responsáveis pela investigação de casos de corrupção foram mortos, incluindo Ehsan Karim, o chefe da Comissão Suprema de Auditoria, morto por uma bomba a 1 de Julho de 2004, apenas dois dias depois de Paul Bremer deixar o Iraque.
- Lá está você a perorar. Já chega, já chega. Senão, quem desaparece sou eu.

11 julho 2005

Blake, a canção de Los, gravura 5

abriu de novo a novela incompleta

abriu de novo a novela incompleta, e percorreu o índice, tentando, em vão, reconstruir o percurso daquelas horas.

1. «fora do cão, o livro. dentro do cão, o escuro»
2. Escher, outro mundo
3. «era cedo ainda quando cheguei a casa»
4. tac, tactac: um, doistrês limões
5. Malevitch, composição
6. com nove passos atravessou a sala
7. Sherman, páginas centrais
8. «cherry stones have to be taken out first»
9. de Hooch, pátio
10. estava na hora de ir buscar a criança
11. van Eyck, Adão e Eva
12. ocupou o lugar 5H
13. Grosz, eclipse do sol
14. saltaram os três para a água
15. Hockney, Arnold, David, Peter, Lisa e Little Diana
16. David acabara de entrar na sala
17. Freud, homem nu, vista de trás
18. chegou antes da hora marcada
19. Phillips, Um Humumento: página 6
20. bocejou pela terceira vez
21. coração
22. tocámos a pista às 17h47
23. Groucho Bar
24. engoliu a saliva, contraiu os lábios, respirou fundo
25. Vermeer, a leiteira
26. decidiu começar ao acaso [por Groucho, Estilista]
27. Muñoz, virados para a esquina
28. «Tiago, come o pão»
29. Truffaut, o menino selvagem
30. que surja outra personagem no meio da ventania
31. cometa
32. ouvimos a água correr no lavatório
33. Gormley, sem título
34. sentado na ante-câmara
35. Prado, Pedro e o lobo
36. sobre as operações de Juca Gaspar
37. xadrez

10 julho 2005

xadrez

sobre as operações de Juca Gaspar

sobre as operações de Juca Gaspar, Braúlio Boavida deixou aos restantes membros do conselho de administração os trabalhos de rescaldo. exibindo segurança e abundante documentação, que preparara em dossiês para distribuir aos membros da comissão de inquérito, ainda reservou um ar de desprezo para o segundo accionista e ex-presidente do banco, que tinha tentado comprometê-lo na operação. o engenheiro Alberto Bracinha foi nomeado uma vez, num momento de irritação, depois de ter sido tratado durante duas horas como o «protagonista do ataque» — estaria interessado, segundo Boavida, «em realizar mais-valias na oferta pública de aquisição, talvez por não dispor de capitais para o controlar». acerca de Juca Gaspar disse ter falta de «credibilidade» e de a tentar suprir «criando cenários fantasmagóricos». «as suas opiniões», acrescentou, «relevam das de um homem perturbado, que tudo fez para ocultar da direcção do banco a extensão das operações no mercado de derivados e futuros, mesmo depois de confrontado com o historial das suas ordens de compra e venda». Boavida respondeu a todas as perguntas. apenas alguma impaciência deixava transparecer que já trazia a declaração de demissão assinada.

08 julho 2005

Prado, Pedro e o lobo

sentado na ante-câmara

sentado na ante-câmara da sala de reuniões, Braúlio Boavida passava os olhos pela Gazeta Financeira, enquanto aguardava o início dos trabalhos da comissão de inquérito. trazia consigo recortes de várias edições dos últimos meses, que usava como memorando de um processo cujos contornos precisos ele próprio estava ainda a tentar compreender. quem lesse o parágrafo que antecipava o relatório de contas dificilmente poderia imaginar a situação crítica em que o banco se encontrava naquele momento. releu um dos recortes mais antigos, assinado por Raimundo Nariz. sabia-o praticamente de cor: Os resultados consolidados do grupo Boavida cresceram 35% acima das expectativas, o que permitiu ao banco lucrar 5 milhões de euros. Não lhe será, por isso, difícil exceder a meta dos 20 milhões de euros que os analistas avançam para este exercício. A rendibilidade dos capitais próprios evoluiu de 14 para 23 por cento. O crescimento de 1,2 milhões de euros da margem financeira foi suportado, nomeadamente, pela expansão da carteira de crédito hipotecário, pela desintermediação de recursos com “spreads” muito reduzidos e pelo crescimento de 70 por cento das comissões — a intermediação e custódia de títulos cresceu 1,5 milhões, a gestão de fundos de investimento 1,2 milhões e os cartões e transferências de valores mais 0,9 milhões. um naco de prosa que ganhara entretanto um sabor amargo. o seu depoimento já estava preparado.

Londres

12 milhões de habitantes.
Quantas línguas?
All Babel tongues which flaunt and flow.

Glossolalia

- Sei que o ilustre Manuel Alegre se mostrou disponível para se candidatar a Belém.
- Nem por isso, Groucho. Ele terá dito que o poeta nele se degladiava com o político nele, e que o poeta nele queria ir a Belém, mas o político nem por isso.
- Estranho. Não é isso o que vocês antropólogos chamam de glossolalia, speaking in tongues, ou, de modo mais etnocêntrico, partição de consciência?
- Sim, meu caro, nada mais a propósito no que diz respeito a nomenclatura. Cirúrgico.

Híbridos

Assisti certa vez a uma discussão entre dois botânicos sobre uma Coisa Danada que brotara impiamente do pátio duma universidade. Um afirmava que a Coisa Danada era uma árvore, e o outro dizia que era um arbusto. Cada um dos dois encontrava-se munido de bons argumentos académicos, e quando os deixei a discussão ainda continuava. § O mundo está permanentemente a fazer brotar Coisas Danadas - coisas que não são nem árvores nem arbustos, nem carne nem peixe, nem pretas nem brancas. O pensador categórico não pode deixar de considerar o mundo espinhoso e rodopiante dos factos energéticos como uma profunda afronta ao seu sistema de classificação por cartões indexados. O pior de tudo são os factos que violam o "senso comum", esse triste pântano de preconceitos apodrecidos e inércia lamacenta. Toda a história da ciência é a odisseia de indexadores vogando perpetuamente entre Coisas Danadas, fazendo malabarismos desesperados com os cartões, até elas se encaixarem nas suas classificações, do mesmo modo como toda a história da política não passa do épico fútil duma longa série de tentativas para alinhar as Coisas Danadas em parada e obrigá-las a marchar (Robert Anton Wilson, O livro dos illuminati, p. 161).

07 julho 2005

Gormley, sem título

ouvimos a água correr no lavatório

ouvimos a água correr no lavatório. na noite anterior à consulta. a torneira fecha-se. lemos ao lado da personagem. como se o olhar dela não existisse. sabemos que já se lavou. que esteve por instantes sentada na beira da cama. que foi ver se o filho estava a dormir. que o aconchegou. que voltou ao seu quarto e apagou a luz do tecto. que se deitou e se apoiou no travesseiro. que puxou o lençol. que aproximou o candeeiro de cabeceira suspenso da parede. que abriu o livro. que leu.

frag. 44: logofilia
E se calhar lês mal: ler também é difícil e não está menos sujeito a mal-entendidos do que falar. E o curioso é que a fonte dos mal-entendidos é exactamente a mesma: ler o que se quer ler (ouvir o que se quer ouvir) como se esse acto pudesse determinar unilateralmente o sentido do que se lê (ouve). Mas o mundo nunca é como o descrevo, resiste sempre à descrição e apenas os que não se dão conta do injusto poder da linguagem se podem contentar com as descrições que no dia a dia fazem do mundo. Por isso, há muitas vezes uma surdez universal nos diálogos: a nossa capacidade de processamento dos signos é tremendamente limitada pelos esquemas apriorísticos com damos sentido à realidade. Precisamos deles para interpretar rapidamente o que se passa à nossa volta. Saber, por exemplo, que um banco é um banco, uma árvore uma árvore, um rio um rio. Mas muitos desses esquemas arruínam de facto a hipótese de comunicação, quando deixamos de ter a capacidade de apreender o que nos dizem sem ser apenas nos nossos próprios termos. Porque esse é o espaço para a imaginação e para se ser humano, aquele em que o espaço entre o significante e o significado se abre para acolher aquilo que a surdez da linguagem nos impede de sentir e de dizer. Usar a palavra, todavia, é correr o risco de ler mal, de falar mal, de ouvir mal. Todos os dias isso acontece, mas talvez seja esse o motor simbólico da vida: tentar ler melhor, ouvir melhor, em lugar de cristalizar aquilo que sou capaz de entender e de dizer num conjunto limitado e repetido de discursos que me tomam ao seu serviço para continuarem a reproduzir-se ad infinitum. Mesmo escrever é uma tentativa vã para não transcrever o código genético com que a linguagem tenta a todo o instante reproduzir-se dentro de mim. Nomear sem ficar preso ao nome. Passar de pessoa em pessoa. Bater com a cabeça na parede.

06 julho 2005

Robert Anton Wilson

Encontrei ontem, por mero acaso, um livrinho que adquiri na década de 80 do século passado. Sou tomado pelo sentimento de melancolia que sempre me assalta quando regresso a velhos livros. Em 1986 - assim diz a indicação sob o nome com que marcava os meus territórios de posse e afeição - eu lia Robert Anton Wilson e o seu Livro dos Iluminati (Porto, Via Óptima, 1985).
Em boa verdade, não consegui reconhecer-me neste utopista declarado que diz ter moldado o seu estilo de pensamento em Pound, Joyce, Chandler, e Burroughs, citando frequentemente os Marx.
R.A. Wilson é o produto de uma América lisérgica que já não existe. É fácil traçar paralelos com Leary, Ginsberg, etc.
Para lá da inflexão utopista (as referências ao arquitecto R. Buckminster Fuller são uma constante), o que me interessa fazer salvaguardar é o projecto anti-paranóico de Wilson. Escreve ele, por exemplo, acerca de "profecias auto-realizadoras": "Consideremos por um momento as implicações daquilo que os psicólogos designam de profecia auto-realizadora. Muito resumidamente, significa que se estivermos certos de ser rejeitados por uma mulher ou um homem, não lhe faremos aberturas. Se acreditarmos que não conseguiremos passar no exame, não nos daremos ao trabalho de estudar. Se pensarmos que não conseguiremos arranjar o emprego, não iremos à entrevista. Em resultado, a senhora ou o cavalheiro irão para a cama com outro qualquer, o exame será passado pelos que realmente estudaram, e o emprego será oferecido a algum dos sujeitos que fez um esforço para o conseguir. § No nosso século, o exemplo mais flagrante de profecia auto-realizadora negativa foi Estaline, que pensava estar sempre rodeado de inimigos. Suspeitava do seu próprio partido, que julgava estar infestado de desviacionistas que o odiavam. Fez aumentar gradualmente o tamanho e os poderes da polícia secreta e, um a um, mandou executar como conspiradores todos os seus chefes. Antes de morrerem, todos deviam assinar confissões; Estaline fazia questão disso. Queria tudo com o preto no branco, a prova de que as suas suspeitas eram justificadas (p. 64).
Wilson permite-nos mostrar como a paranóia e a conspiração são um dos processos mais temíveis (e temidos) da modernidade: a ideia de que tudo exige um programa meta-interpretativo sem o qual não será possível aceder-se ao "sentido". Os mestres da suspeita aí estão para o confirmar: Marx, Freud, Nietzsche, Weber. Seria interessante ver como isto nos permite reequacionar objectos como aqueles que designamos por "arte", ou, de forma mais específica, objectos como aqueles que uma certa tradição de pensamento (a antropologia, justamente) designou por "bruxaria". De algum modo, o modernismo encerra estratégias clínicas de controlo das desmedidas forças da "paranóia". O humor será, talvez, um dos seus recursos mais constantes. Assim, leia-se os Marx citados em epígrafe por Wilson:
Eu dou-te boleia no meu carro.
Oh, tens carro?
Não. Antigamente tinha carro e motorista, mas não me podia dar ao luxo de ter ambos, de modo que me desfiz do carro.
E para que é que serve teres um motorista se não tens carro?
Preciso dele para me conduzir até ao emprego.
Mas como é que ele te pode conduzir ao emprego se não tens carro?
Não há problema. Eu também não tenho emprego.
(Groucho e Chico, Duck Soup, cit. Wilson, p. 5).

05 julho 2005

Soneto 130

130.
Seus olhos em nada ao sol se parecem,
Seus lábios rubros, menos que o coral,
Se é branca a neve, os seios lhe escurecem,
Negro o cabelo, em fios de metal.
Vi rosas rubras, brancas, cor-de-rosa,
Mas nunca a face de rosas corada,
E fragrância há bem mais deleitosa
Do que o cheiro que exala a minha amada.
Gosto de ouvi-la falar, mas bem sei
Que a música apraz com mais perfeição.
Uma deusa a passar nunca notei,
Pois quando caminha ela pisa o chão.
Inda assim, o meu amor é tão raro
Como o que o desmente quando o comparo.

William Shakespeare (Tradução MP)

Muñoz, virados para a esquina

Comunidade

Há muitos que partilham das minhas ideias. Eu é que não as partilho com eles.
Karl Kraus

Vida académica

Toda a ciência exacta assenta na ideia certíssima de que um ciclope só tem um olho, enquanto um professor da universidade tem dois.
Karl Kraus

04 julho 2005

cometa

que surja outra personagem no meio da ventania

que surja outra personagem no meio da ventania. e uma outra página. que não se saiba ainda quem lê. retrospectivemos o seu olhar, subsumindo-o, ao escutar o silvo do vento na frincha da porta.

frag. 43: necrofilia
Se aquilo que define o desejo é a sua mobilidade, isto é, o projectar-se sempre em novos objectos, seria impossível fixar esse movimento, prendê-lo ou ligá-lo a um objecto em particular. Seria como pretender ligar um significante e um significado, ou um significante e um referente, ou um significado e um referente: tais ligações são temporárias, contextuais, convencionais, já que o que define a linguagem é esse intervalo entre significante e significado, entre o som e o mundo, que gera o movimento da fala e de todos os laços que se constroem através das palavras e dos gestos. Só novos desejos pelo mesmo objecto explicam a aparente fixação do desejo num objecto em particular. Por outro lado, o movimento natural do desejo em busca de novos objectos repete o padrão que o levou a fixar-se num determinado objecto. Parar é contradizer a sua essência, que é o movimento, mas procurar novos objectos é repetir o impulso inicial, e portanto procurar o que já se encontrou. Ou seja, num certo sentido, realizar o desejo é contradizê-lo, já que o objecto lhe é quase indiferente. Foi uma alucinação que o desejo conjurou apenas para continuar a desejar. Almodovar encena bem esse dilema no Habla com Ella: uma relação que não seja necrofílica com o objecto implica uma deflação do desejo capaz de se ligar ao objecto fora das figurações que o sujeito constrói do objecto. O problema está em que a fantasia é o motor do desejo, que sobrepõe as suas representações e afectos à realidade material e concreta do objecto. Por isso, a energia que torna um objecto significativo está sempre em movimento, já que esse movimento é independente do elo que por instantes se estabeleceu entre desejo e objecto. O texto permanece em estado de coma.

03 julho 2005

Truffaut, o menino selvagem

«Tiago, come o pão»

«Tiago, come o pão. daqui a bocado chega a tua mãe.» nos dias da piscina lanchava mais cedo. «Graça, já me posso levantar?» no grupo dos cinco anos era um dos poucos que raramente chegava a adormecer. «chiu! dorme, dorme, não vês que os meninos estão todos a dormir.» naquele dia da semana a excitação era sempre maior. mal passava das três e meia quando acabou por sair da sala. a voz da Joana na penumbra. uma fresta de luz a iluminar as partículas de pó. o Pedro a fazer aaaahhhhhaaaahhhhhaaaahhhhh e a alterar o som com os dedos na boca. «João! ó João!» o ferro frio da cama. o polegar e o indicador da mão direita a sentir a costura da coberta. tinha calor. «vem cá, vestir a bata. calçaste os sapatos?» olhou para os atacadores desapertados. a educadora deu-lhe a mão e foram para o refeitório. entretanto chegava ao fim a hora da sesta e a sala, ao fundo do corredor, voltava a encher-se de vozes e risos, e algum choro desencontrado. abertas as persianas, a luz revelou duas crianças ainda a dormir. ajudadas, vestiam-se, calçavam-se, arrumavam as caminhas. coreografada pelos gestos mecânicos e delicados da educadora, a ordem da sala reconstruiu-se. como todas as tardes, por volta das quatro, dirigiram-se para o refeitório, em fila, de mãos dadas, dois a dois. vi-os chegar. encheram a minha mesa e a outra ao lado. sentada de novo a seu lado, numa cadeira pequenina. «Graça, não quero mais.»