09 março 2006

A morte absoluta

Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes! — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança duma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento.
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”

Morrer mais completamente ainda,
— Sem deixar sequer esse nome.


Manuel Bandeira, Lira dos Cinquent’anos (1940)

08 março 2006

Fogo-de-artifício 9 (reprise nocturna)

LM – Um silvo a cortar o ar frio da noite!
GR – Já viu, Clara, como o fogo sobe no ar!
CA – Já viu, meu querido Rubim, como a luz anuncia a chegada do som!
ABB – Lá no alto, chispas coloridas numa campânula de luz!
OMS – Uma tremenda expansão de energia contida!
PS – Depois um estouro, e depois outro, e outro, e outro, um rumor de estampidos.
FMO – Brancas, vermelhas, amarelas, azuis, as lágrimas cintilam em arcos de luz.
LQ – Um breve brilho brilhante bruxuleia.
MP – E as cinzas beijam o orvalho que as espera no chão.

Stadium




- Acenda aí, Groucho. Hoje acompanho-o.
- E aqui neste digestivo?
- Uma vez sem exemplo, mas sim.
(fumam e bebem)
- Grande adrenalina, não foi?
- E eu que nem sequer sou benfiquista.
- E tudo perfeito, não acha Mourão?
- Ah, estava a ver que nunca mais deixava o Sr. no tinteiro, Groucho!
- Hoje aprendi muito, amigo Mourão. Foi cá um dia! Mas você sabe, claro.
- Sabemos todos. (pensativo) Sabemos todos.
- E se quer que lhe diga, também um perfeito exemplo do porquê da produtividade nacional ser o que é!.. (riem ambos)
-
Mas ó Groucho, bem sabe que a criatividade não tem esses horários. Nós somos gente de passar os fins-de-semana a queimar pestanas e...
- Pronto, deixe lá isso, não era propriamente uma crítica.
- Claro, onde é que eu tinha a cabeça? (fumaça mais funda) Há muito tempo que não fumava!..
- Você é um bocado ascético, hein, Mourão?
- Isso era uma longa conversa... (pausa) Por falar nisso, aquilo lá por baixo é vivível, ou é mais como o Silvestre diz aí há uns posts atrás?
- Hum... Nem uma coisa nem outra, Mourão, antes completamente diferente. E mais não consigo dizer.
- Coisa só de experiência feita, estou vendo.
- De facto não está vendo, mas sim, é isso.
- E vai voltar de vez em quando, como agora?
- Não. Estou em trânsito, mas logo logo partirei de vez.
- Hum... E vai ainda, como dizer, despedir-se dos outros casmurros?
- De cada um à maneira de cada um.
Pausa. Groucho expele uma grande fumaça em arco, ficam os dois olhando e sorrindo.
- Aquele golo, Mourão...
- Pois...
- E tudo perfeito, reparou? O azar altíssimo dos ingleses, aquele Gerard enorme...
- E o público, que me diz daquele público? Aqueles cânticos logo depois da sentença do segundo golo, aquela nobreza...
- Um arrepio.
- Um estremecimento.
Fumam, bebem.

HIPER EXTRA! HIPER EXTRA!

O Groucho está no pé do Simão!
vocês viram aquilo, carago? e eu sou completamente azul, que não haja dúvidas acerca disso, mas vocês viram aquilo, carago? lembram-se de como o Groucho fumava? daquele modo de fazer o arco? ficava numa ponta do clube e mandava o fumo pelo janelão do meio, lembram-se? as volutas, os ornamentos, a leveza, a poesia? vocês viram aquilo, carago?

(viram sim senhor, que ninguém postou desde os dez minutos iniciais — isto sim, é um clube de cavalheiros sem pachorra para aquele cujo nome não devemos pronunciar!)

SUPER EXTRA! SUPER EXTRA!

Groucho era a alma de Alberto João Jardim!
Está parcialmente desvendado o mistério do desaparecimento de Groucho. Habitou a alma de Alberto João Jardim até à recusa deste em desfilar no último carnaval madeirense. Regressado dos mortos risíveis, tentou ainda enfiar-se num canto da alma daquele cujo nome não devemos pronunciar, mas o caminho era estreito e seco, e tudo indica que tenha perecido no insano intento.

ler mais desenvolvimentos aqui

EXTRA! EXTRA!

Fontes geralmente bem informadas asseguram que o Groucho — vulgo mordomo, vulgo aquela tendência marxista do mesmo nome, vulgo qualquer coisa assim — aceitou integrar a equipa da casa civil do Presidente da República, o tal cujo nome não devemos pronunciar.

Para o efeito, sujeitou-se a um processo completo — inquestionavelmente completo — de morte bloguística. Renascerá incognito nas suas novas funções.

Alento, pois, bom povo, pode ser que tudo aquilo ainda venha a ruir antes do tempo!
Ou — nem sei bem o que será melhor, quer dizer, pior — pode até acontecer que aquele cujo nome não devemos pronunciar seja inoculado de riso grouchista e a presidência entre em menoscabo.

(Ah, como é belo o paraíso visto pelas lentes de um post!)

Terapia breve

- Mas porquê?
- O diálogo. Pensando bem, a resposta mais simples é essa: o diálogo.
- Nunca tinha tido?
- Em parte, sim. Aliás, como tudo na vida: parece que é sempre em parte.
- Já está a elaborar, essa já não é uma resposta simples.
- Pois… Falar com o Groucho foi uma libertação. Não tenho outro modo de o dizer. Acha ridículo?
- Não tenho de achar, o que importa para já é o que você acha. Porque diz que seria ridículo? (pausa longa) Não pense tanto.
- Afinal de contas… Bom, afinal de contas era apenas um blog. Era apenas uma personagem. Será a vida assim tão desinteressante, que nos afeiçoemos a uma personagem a ponto de chorarmos a sua perda?
- Não sei, diga-mo você. Mas noto que faz uma distinção muito nítida entre vida e ficção.
- Pois… Mas percebe o que quero dizer.
- O que você me possa explicar é muito mais importante do que aquilo que eu possa perceber.
- Compreeendo. (pausa) Vai ser um bocado cansativo.
- A terapia é um processo de mudança e a mudança implica esforço.
- Seja. Não é que acredite muito... Mas por agora fiquemos por aqui.

Casa de férias 7 ou um crime deveras insolúvel

A acção decorre na véspera do infausto acontecimento marcado para dia 8. Nenhuma personagem está autorizada a pronunciar o nome daquele cujo nome não devemos pronunciar. Sala de estar fortemente iluminada. Mourão anda de um lado para o outro, por vezes vem à janela, respira fundo, abana levemente a cabeça, retoma a deambulação.
Som estridente da campainha. Duas vezes. Mourão vai abrir apressadamente. Entram dois homens. Não olham para Mourão nem lhe dirigem a palavra. Vão deambulando pela sala. Mourão regressa devagar, fala com um tom incrédulo e até um pouco medroso.

MOURÃO: Os senhores são quem eu penso que são?
UM: Sem dúvida.
OUTRO: Oui, Monsieur, não tenha disso a menor dúvida.
MOURÃO: Mas não é possível.
UM: Os tempos são outros. Os meios são outros. (aparte) Se bem que isto é um pouco bizarro.
OUTRO: Ora, Sr. Mourão, como pode pensar que a nossa presença aqui tenha o que quer que seja de estranho, se as circunstâncias não só a explicam como até a exigem?
MOURÃO: Mas quem os chamou? Os outros membros do clube?
UM: O caso foi-nos entregue, esse é o procedimento normal.
MOURÃO: A ambos? (dirigindo-se a Outro) A você também? Quem o contratou a si?
OUTRO: O importante agora é o caso, Sr. Mourão.
MOURÃO: Há qualquer coisa de errado... (pausa) Mas vamos lá tentar resolver isto de uma vez. (em tom decidido) Têm toda a cooperação que eu possa dar, mas ajudem-me a perceber, se é que sabem, a razão de estarem aqui. (dirigindo-se a Um) Inspector Maigret, quer ter a bondade de me dizer porquê?
MAIGRET: O crime aconteceu numa cidade de província, percebe, num bairro social... algumas pistas apontam para um crime fortuito, contendas com a vizinhança... numa palavra, vida empírica a mais, se é que me percebe.
MOURÃO: (em voz baixa) Disparate! (tom normal) Mas qual a relação entre Paris e um bairro social de uma cidade de província?
MAIGRET: O crime, Sr. Mourão. Naquele Paris os crimes eram muito classe baixa, psicologia previsível, procedimentos que...
MOURÃO: (interrompendo) Obrigado. (dirigindo-se a Outro) Sr. Hercule Poirot, quer ter a bondade?..
POIROT: Bien sur. Há também suspeitas de que o crime possa estar ligado ao clube. Um crime colectivo, são essas as suspeitas, para ser mais específico. Um crime envolvendo sem excepção toda a alta classe que passava pelo clube.
MOURÃO: Classe alta, o clube?!
POIROT: Alta classe intelectual, Sr. Mourão. Um crime intelectual perfeito. (Maigret desinteressa-se da conversa, Poirot entusiasma-se) Um crime único e perfeito: todos o mataram, incluindo o senhor, naturalmente, e afinal ninguém o matou.
MOURÃO: Não compreendo.
POIROT: Acredito que não. Mas acredite também que a sua responsabilidade é imensa. O senhor pô-lo a ler, a ver filmes, a passear, em férias… Enfim, repetindo o meu amável colega, demasiada empiria. Mas o ponto, bien sur, é que se todos o mataram, afinal ninguém o matou. Já estava morto há muito, Monsieur. Voilá.
MOURÃO: Mas então porque diz que todos o mataram? E se já estava morto, quem o matou? Ou de que morreu?
POIROT: Bien sur. (pausa; caminha até à janela) Ah, o mar…
(fica absorto, a olhar; Maigret regressa à conversa)
MAIGRET: Conhece bem as pessoas do prédio?
MOURÃO: Não.
MAIGRET: E os membros do clube?
MOURÃO: Pessoalmente, não todos.
MAIGRET: E os que conhece pessoalmente, quando os viu pela última vez?
MOURÃO: Já vai há uns tempos, ora deixe-me pensar…
MAIGRET: Um jantar, talvez?
MOURÃO: Não, acho que não…
MAIGRET: Uma amena cavaqueira regada a Barca Velha e a Mouchão 1988?
MOURÃO: Como não bebo, não dou muita…
MAIGRET: (interrompendo) Não bebe?!
MOURÃO: Quase nunca. Vinho, nunca gostei. De quando em vez, muito raramente, um licor…
MAIGRET: (em voz baixa) Era o que eu pensava. (normal) Mas então, a última vez que viu um dos membros do clube?.. Digamos, foi antes do Natal? Há mais tempo, há menos tempo?
MOURÃO: Há mais tempo, seguramente.
MAIGRET: Aí está.
MOURÃO: Aí está o quê?
MAIGRET: Não pode ter a certeza disto.
MOURÃO: Disto o quê, caramba? De que raio está você a falar?
(Maigret cala-se e acende o cachimbo. Poirot volta à conversa)
POIROT: O erro foi terem-no posto a falar, Monsieur.
MAIGRET: Porque é sabido: quando alguém começa a falar, em algum momento vai ter de calar-se. Enfim, é uma lei.
POIROT: E é muito diferente calar-se alguém que falava, ou continuar calado quem nunca falou.
(Mourão olha para ambos estupefacto, parece em transe. Maigret e Poirot falam como se não estivesse mais ninguém na sala)
MAIGRET: Deviam ter escolhido o Harpo.
POIROT: Voilá.
MAIGRET: Agora é tarde.
POIROT: Quel dommage…
MAIGRET: Acha que ele sobrevive?
POIROT: Não tem importância.
MAIGRET: Pois não, já não é connosco.
POIROT: Voilá.
(pausa)
MAIGRET: Vamos?
POIROT: Pra ?!
MAIGRET: Que ideia, claro que não! Não há lugar para nós. Completa empiria, aquilo.
POIROT: Pois, era o que me parecia. (pausa) Mas então, vamos para onde?
MAIGRET: Ora, para onde há-de ser? Vamos ter com ele.
POIROT: Claro, bien sur.
(pausa)
MAIGRET: Vamos?
POIROT: Vamos.
(não se mexem)

Fogo-de-artifício 1

LQ – Eles andam aí!
PS – Pois andam!
FMO – Eles quem?
LQ – E você de onde saiu?
FMO – Isso é comigo?
LQ – É consigo e comigo! Olha que merda!
MP – Chá! Chá! O chá está servido!
OMS – O chá não sei, mas a chacha já está de certeza…
MP – E o que é que isso quer dizer, vamos lá a saber?
ABB – E se vem a chacha, logo vem a chalaça…
CA – Cuidado! Que vem aí a chaleira!
FMO – A chaleira ou a chalaça?
LQ – A leste nada de novo!
FMO – Isso é comigo?
LQ – É consigo e comigo! Olha que merda!

Fogo-de-artifício 2

LM – Queimei a língua!
MP – Mas eu avisei que o chá estava a escaldar.
OMS – Sr. Portela, que espécie de deixa é essa?
MP – É uma deixa a andar!
CA – Então, senhores!, o Sr. Mourão queimou a língua!
GR – Quem anda à chuva molha-se!
ABB – Quem anda à chuva molha-se, Sr. Rubim? Não misture as metáforas.
LQ – Não é metáfora nenhuma. Olhem para a cara dele!
PS – Está aflito, coitado!
FMO – Queimou as papilas todas!
OMS – Sr. Portela, por amor de Deus, queimou as papilas todas? Queimou as papilas todas?
PS – O que tem a fala do homem?
FMO – Mas foi a fala ou foi a língua?
OMS – Tudo em prol da literatura dramática!
GR – Beckett e Ibsen. Sobretudo Ibsen!
CA – Faz bem em pôr água na fervura!
ABB – Pôr água na fervura, Clara? Não queime as metáforas. Guarde-as para melhor ocasião. [Puxa do caderninho de retórica e toma notas afanosas. Hipálage, aponta, com a ponta da língua de fora e o nariz em cima da folha.]
LQ – Não é metáfora nenhuma. Olhem para a cara dele!
PS – Está aflito, coitado!
FMO – Queimou as pupilas todas!
PS – Os olhos também?
MP – Os olhos não, porra! Via-se bem que era uma gralha, Sr. Oliveira!
FMO – Acha que fiz de propósito?
OMS – Tudo em prol da literatura dramática!

Fogo-de-artifício 3

LM – Queimei a língua!
MP – Outra vez?
LM – Isso pergunto eu!
MP – E como quer que eu saiba? Acaso moro na sua boca?
LM – Se soubesse que isto era assim, tinha ficado no multiplex!
LQ – Qual é o filme hoje, man?
FMO – Acho que é Estranhos no Telhado.
PS – Não, esse já foi. Hoje é Truz-truz, quem é?
GR – Truz-truz, quem é? ? Nunca ouvi falar.
OMS – E quem ouviu?
CA – Então, senhores!, o Sr. Mourão queimou a língua!
FMO – Bom, agora é tarde demais.
PS – A história segue o seu curso.
CA – O seu curso melancólico!
OMS – O anjo novo de Klee!
MP – Essa agora escapou-me!
ABB – E essa também!
PS – Tudo escapa!
FMO – Tubo escape!
LQ – Boa, Sr. Oliveira!, começa a entrar no espírito da coisa.
GR – Faço minhas as suas palavras!
PS – E eu as suas!
MP – E eu as minhas!
OMS – E quem faz suas as minhas?
CA – Eu é que não!
ABB – Usurpador-usurpado!
LQ – Perdão, obsevador-observado!
FMO – E isso significa o quê, hein?
LQ – Hibernador-hibernado!
FMO – E isso significa o quê, hein? Hein?
MP – O chá está na chávena!

Fogo-de-artifício 4

ABB – Estamos à sua espera!
LM – Nem pensem!
ABB – Mas acha assim tão mau?
LM – Experimente você!
ABB – Queimei a língua!
GR – Também?
ABB – Estava só a ensaiar.
CA – Mas eu avisei que estava a escaldar.
MP – Espere, que essa frase é minha.
LQ – Inda estão nisso?
ABB – Já expliquei que estava só a ensaiar.
OMS – Claro, um ensaísta ensaia.
PS – Um nick bloguista bloga.
FMO – Um street artist rua.
LQ – Um body artist bora lá.
CA – Bloga, rua, bora lá.
OMS – …da-se.
GR – Um actor actua.
LM – Um casmurro casmurra!
MP – Sr. Mourão, o que é que isso significa?
OMS – Segurem-me! Segurem-me!
CA – O que é que lhe deu?
GR – O mesmo que a mim!
CA – O que foi, Sr. Serra?
PS – Querem a morte do autor, parece-me.
CA – Mas isso seria matar o morto!
LQ – Morto ou não, caguei!, violência ritual nunca fez mal a ninguém.
FMO – Calma!
MP – Calma digo eu!
LM – E eu! que estava agora tão bem no multiplex!

Fogo-de-artifício 5

LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Tá-se bem!
MP (surpreendido) – O que faz aí em cima?
OMS (sarcástico) — Se calhar a didascália não lhe saiu das mãos?
ABB (conciliador) – Olhe que ele até a costuma dispensar.
FMO (acabado de chegar) – Dispensar quem?
GR (visivelmente irritado) – Talvez dispense a didascália, mas trocadilhos é um ver se te avias!
CA (olhando para o tecto) – Sr. Quintais, pendurado outra vez!
LQ (irónico) – Bem o pode dizer!
MP (atrapalhado) – O que é que eu hei-de fazer? Os Senhores e a Senhora não me dão tempo!
PS (entrando sem se fazer notar) – Tire-o dali!
LM (exortativo) – Realmente, isso não se faz! E já há precedente.
GR (escarnecedor) – A redundância é a mãe da invenção.
FMO (espantado) – Pensei que fosse a necessidade!
CA (impaciente) – Ora, Sr. Oliveira!
MP (insistente) – Quando cheguei ele já lá estava. Eu nem tinha sequer deitado as mãos ao papel.
OMS (mordaz) – Deitá-las ao papel, nem eu diria melhor — agora à obra, isso é que já não está nas suas mãos.

Fogo-de-artifício 6

ABB (pensativo) – Anáforas e epanáforas!
PS (intrigado) – Anáforas e epanáforas?
ABB (explicativo) – Sim, sim. É o truque dele.
OMS (indignado) - Truque? Isso é dar crédito demais à criatura. Ele sabe lá o que faz!
FMO (sempre oportuno) – De quem é que estão a falar?
LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Tá-se bem!
LM (fazendo avançar a acção) – E o que fazemos com aquele lá em cima?
PS (virando-se para ABB) – Mas ainda não percebi a descrição do método.
GR (zombando) – É Stanislavsky à procura de Pirandello.
FMO (inquisitivo) – Ai é? Deve ser uma coisa nova. Pensei que aqui só se praticava Brecht.
CA (corroborante) — E eu, que era só absurdo!
OMS (contundente) — Do absurdo é que não é! Mas lá que tem qualquer coisa a menos, disso nunca tive dúvidas!
LM (fazendo avançar a acção) – Do corpo, não vos parece?
PS (a testa franzida em sinal de ponderação) – Da palavra, diria eu.
ABB (triunfante) – Ora, era aí que eu queria chegar!
FMO (vingando os desaires anteriores) – Mas não foi aí que começou?
GR (galhofando) – O eterno retorno é a origem da tragédia.
PS (pronunciando as sílabas com gravidade) – Ou-tro mé-to-do? Mas o homem é inesgotável.
CA (desafiadora) – O problema persiste: como interpretar a Personagem no Candelabro?
FMO (olhando para o tecto) – Mas a peça já tem título, é?
ABB (à beira de perder as estribeiras) – Viu algum itálico, viu? Por acaso viu algum? Viu? Viu?
LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Tá-se bem!
LM (fazendo avançar a acção) – Mas o Sr. não consegue dizer outra coisa?
LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Conseguir, consigo! O problema não é esse.
FMO (interrogativo) – Mas que é dele, que não aparece?

Fogo-de-artifício 7

(pensativo) (apresentando-se) – Pensativo. Tenho estado a ouvir. Abel Barros Baptista? O das epanáforas?
ABB (solícito) – Precisamente! O próprio, ao seu dispor.
(pensativo) – Estes diálogos são curiosos. É pena os parêntesis.
ABB (intrigado) – Os parêntesis?
(intrigado) – Sim. Não nos deixam ouvir bem. Intrigado, muito prazer.
ABB (cortês) – O prazer é meu.
PS (ligeira vénia) - E meu.
(ligeira vénia) – Já agora. Deixe-me apertar-lhe a mão.
OMS (indignado) – Aperte-lha! Aperte-lha, a ver se pára.
PS (fazendo conversa) – E diga-me, de onde vem o seu apelido?
(ligeira vénia) – Nem sei bem, já está na família há várias gerações. Sei que o meu tetravô já era vénia.
(intrigado) – A linhagem é até muito conhecida.
(pensativo) – Nunca me falou disso.
FMO (sempre oportuno) – De quem é que estão a falar?
LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Tá-se bem!
LM (fazendo avançar a acção) – Há que pôr um ponto final nisto.
GR (enfadado) – Lá por isso. Põe-se um ponto final.
CA (aliviada) – Finalmente, vou poder descansar.
(aliviada) – E eu também!
PS (conformado) – Custou, mas foi.
ABB (saudoso) – Os caderninhos é que foi pena!
FMO (interrogativo) – Mas que é dele, que não aparece?
OMS (desdenhoso) – Se calhar, queriam mais chá?

Fogo-de-artifício 8

LM – Um silvo a cortar o ar frio da noite!
GR – Já viu, Clara, como o fogo sobe no ar!
CA – Já viu, meu querido Rubim, como a luz anuncia a chegada do som!
ABB – Lá no alto, chispas coloridas numa campânula de luz!
OMS – Uma tremenda expansão de energia contida!
PS – Depois um estouro, e depois outro, e outro, e outro, um rumor de estampidos.
FMO – Brancas, vermelhas, amarelas, azuis, as lágrimas cintilam em arcos de luz.
LQ – Um breve brilho brilhante bruxuleia.
MP – E as cinzas beijam o orvalho que as espera no chão.

07 março 2006

1281

- De momento, o número que marcou não está disponível. Por favor, deixe a sua mensagem após o sinal.
- Groucho, sou eu outra vez. Afinal não me ligou. Ouviu a mensagem? Se calhar nem ficou gravada. Já me aconteceu, sabe? Começa-se a falar, a falar, a tentar encontrar as palavras, a sentir os silêncios, a preenchê-los, a preenchê-los, parece que quanto mais se fala mais eles aumentam e depois já não se consegue parar, fala-se, fala-se, e começa-se a repetir, a repetir, parece que não se sai do mesmo lugar. Não me diga que já não sentiu isto? Mas isso nem é o pior. O pior é que nessa ânsia de falar e de abolir o silêncio e de repetir e de encher tudo de sinais, sim, encher tudo de sinais, transformar cada palavra, cada gesto, cada objecto, num sinal, nessa ânsia de falar diz-se o que não se queria dizer, percebe? O que não se queria dizer não enquanto desconhecimento do que se queria dizer e se descobre no acto de dizer, não, nada disso, mas sim o que não se queria mesmo dizer e só a ânsia de falar e de abolir o silêncio e de repetir e de encher tudo de sinais nos leva a dizer, percebe? A palavra tem uma agenda escondida. Um inconsciente? Não, não é bem um inconsciente, porque a linguagem sabe bem o que faz. É da sua natureza. Ser assim, insidiosa, infiltrar-se. No aparelho fonador, no cérebro, nos dedos. E deitar tudo a perder. Falar através de nós. Não de uma forma mecânica, nada disso. É muito mais esperta do que isso. Começa branda e doce, ao ponto de se confundir connosco. Mas não. Está sempre à espreita. E quando damos por ela, pronto, já está, dissemos o que não queríamos dizer. É uma lógica implacável, sabe? Começa-se a falar, a falar, a tentar encontrar as palavras, a sentir os silêncios, a preenchê-los, a preenchê-los, parece que quanto mais se fala mais eles aumentam e depois já não se consegue parar, fala-se, fala-se, e começa-se a repetir, a repetir, parece que não se sai do mesmo lugar. Mas não. Avança-se, avança-se sempre. Sem saber para onde. Diga-me, isto também se passa consigo? Seria isto que eu lhe queria perguntar? Não, não era com certeza. Bom, nem sei bem o motivo da chamada. Mas ligue-me, ligue-me quando puder.

05 março 2006

1275



- De momento, o número que marcou não está disponível. Por favor, deixe a sua mensagem após o sinal.
- Sou eu, Groucho. Não vou dizer o meu nome. Há-de reconhecer a minha voz na gravação, com certeza. Ou não? Às vezes, até a mim me soa estranha. Tenho tentado apanhá-lo, mas ninguém sabe onde pára. Pelo que leio, as suas férias têm corrido bem. Ao menos arranjou com quem conversar. E farta-se de ir ao cinema. E de passear à noite. Eu é que não posso dizer o mesmo. É uma canseira a engolir-me os dias e nunca percebi para quê. Um derrame de sangue. Um dom sem destino. Já há algum tempo que não conversamos, sabe? Vai-me dizer que nunca falámos. Que não me conhece. Que foi tudo imaginação minha. Olhe, eu próprio cheguei a pôr essa hipótese. Mas vi logo que não, que não podia ser. Que era delírio. Que era delírio pensar que era imaginação. Bem sei que isto foi ficando vazio, é verdade. Terá tido ecos disso, estou certo. Mas ainda há pouco conversámos os dois. Dirá que nos malentendemos quando muito. Talvez, mas essa era a nossa maneira de conversar. E até o que falha tem o sabor do amor. Sabe por que lhe estou a ligar? Imagino que não. Nem eu sei bem. Espero que saiba ao menos quem lhe está a ligar. Colaram um cartaz aqui na parede. Foi você? Isto era uma das coisas que lhe queria perguntar. Acho. Já nem me lembro da outra. Tenho de voltar a ligar. Ou então, ligue-me quando ouvir a mensagem. Espero que este seja o seu número. Não tenho outro. Adeus, Groucho.

03 março 2006

Casa de férias 6, adenda final

Mesa encostada à janela, de noite. Chove. A luz vem de fora, mas há também duas velas minúsculas na mesa. Jantam. Em fundo, música do último verão. Falam alto, animadamente.
— Afinal, você é mesmo um metafísico de todo o tamanho, ó Sr. Mourão!
— Nada disso, Groucho. Estava apenas a sublinhar que isto é tudo forma, matriz.
— Eu não digo? Até o Matrix lhe serve!
— Matriz, Groucho, matriz, não confundamos. Mas deixe-me pôr as coisas noutros termos.
— Ponha, ponha. E deite aí um bocado mais de massa. Disse que isto era tricolor integral?
— Qualquer coisa assim. Esses canudinhos verdes são de espinafre, os laranja de cenoura, os castanhos acho que é só trigo ou lá que coisa é a massa.
— A gente come a realidade, mas não tem de saber o que é a realidade, certo?
(riem ambos)
— Mas então deixe-me pôr as coisas assim, Groucho: é como se a arte fosse um jogo de dados. Mas digamos que em vez de você lançar dois dados, lança vinte. E que cada dado, em vez de ter seis faces, tem doze.
— Mas ó Sr. Mourão, você sabe matemática suficiente para o raciocínio que me parece que aí vem?
— Nada, Groucho, usemos apenas a imaginação. Um jogo assim tem combinatórias que cheguem para o universo inteiro, mas suponho que matematicamente, ou será estatisticamente?, é possível dizer-se que todas as combinatórias acabarão por sair.
— Suponhamos que sim.
— Chamemos a isso a lei interna do jogo. Para que as combinatórias se realizem, é preciso apenas que alguém lance os dados.
— Boa piada, estou a ver. Mozart e Picasso e Joyce como jogadores de dados...
— Mas o ponto é que desde que alguém lance os dados, não importa quem, as combinatórias saem.
— E por isso você diz que se Mozart não tivesse existido, um outro compositor, ou um conjunto de compositores, teriam necessariamente realizado todas as obras que Mozart realizou.
— Nota por nota, Groucho.
— Não posso dizer que esteja convencido, nem que não seja metafísico. Mas isso deixa-o a si em que lugar do jogo?
— Como assim?
— Você vai lançar os dados, Sr. Mourão?
— Mas é isso que lhe estou a explicar, Groucho, a pergunta, como pergunta de responsabilidade por um destino qualquer da arte, não tem sentido. Podemos jantar tranquilamente, está a ver?
— Sim, mas em relação a si, só a si mesmo?
— Ora, Groucho, já viu quantos milhões somos, hoje? De alguma forma, todos nós lançamos os dados. Sai muita coisa repetida, não vale a pena perder o sono com isso.
— Um metafísico tranquilo, estou a ver.
— E que tal este tofu, Groucho? Não comia disto lá no clube, pois não?
Continuam a falar alto, animadamente. Não voltam ao assunto.

Casa de férias 5, adenda final



— Ainda preocupado com o kairos, Groucho?
— De todo. Percebi qual é a grande vantagem, ou pelo menos uma das grandes vantagens, da literatura e da arte face à vida.
— Ora venha de lá mais um lugar comum...
— De facto, será um lugar comum. Mas sabe que isto de vir a ser comum também tem muito que se lhe diga...
— Vá, corte os apartes, ao menos que alguém no clube vá directo ao assunto.
— A literatura permite sempre uma terceira inúmera oportunidade.

Casa de férias 4, adenda final


(...) A manhã não é o sol,
É esta atitude dos nervos,

Como se um intérprete obtuso agarrase
Os matizes da viola azul.

Tem de ser esta rapsódia ou nenhuma outra,
A rapsódia das coisas como são.


— Vejo que voltou ao poema original do Wallace Stevens, Groucho.
— Bem prega Frei Tomás...
— E isso quer dizer?..
— Então depois da sua conversa nocturna de ontem, vem-me dizer que voltei ao poema original?
— Queria apenas dizer que...
— Eu percebi, mas o Sr. Mourão é que talvez não. É evidente que não é o mesmo poema. É o mesmo poema depois de eu o ter transformado e destransformado de volta. Faz uma grande diferença.
— Por exemplo?
— Ora olhe bem para lá: não se percebe melhor agora que toda a carga não está na rapsódia das coisas como são mas nos nervos do não sei quantos obtuso?
— Intérprete obtuso.
— Não sei quantos obtuso: wallace obtuso, vergílio obtuso, qualquer um por vir obtuso.
— Se você acha, Groucho...

02 março 2006

Casa de férias 6, variação



Sala às escuras, iluminada apenas pela luz de fora que entra pela janela. Bebem licor. Olham sempre para a janela, nunca um para o outro.
- Ouça... (pausa) Aquela coisa do poema não é para levar a sério.
- Ora, Groucho, deixe-se disso.
- Mas deixo-me disso porquê? Porque não me levou logo a sério ou porque...
- (interrompendo) Porque isso não interessa coisa nenhuma, se você se levou a sério ou não. Quando muito interessará numa alínea qualquer da psicologia da criação...
- ... ou da ilusão da criação...
- ... mas o que interessa é o que ficou escrito, e isso já não é nada consigo. Só com quem lê.
- Não é meu?
- Para algumas coisas laterais e civis, digamos assim, seria sem dúvida seu. Para o que interessa a quem lê, passou através de si, pouco mais.
- Mas ter passado através do Vergílio Ferreira não é a mesma coisa que ter passado através de outro, pois não?
— Não, seguramente não. (pausa) Coloque a hipótese de que «passar através de» dará o mesmo resultado que transcrever uma música para outros instrumentos ou outro tipo de agrupamentos.
— Hipótese perigosa, Sr. Mourão. Entrevejo uma origem metafísica, um uno, o um, qualquer coisa por esses lados... Nunca ouvi tal coisa no clube...
— Nem o ouvirá de mim, Groucho. Transcreve-se as coisas como são, e tudo o que sabemos do como está nas várias transcrições. Mas sobretudo, sublinhe coisas.
— Pluralidade irredutível...
— E estúpida alegre angustiante enigmática fascinante, essa treta toda até ao fim dos confins e ainda mais para lá... Bom, respira-se melhor assim, enquanto valer a pena respirar.
— O licor é bom...
— E a noite vai de feição, Groucho. Já viu o silêncio que há no prédio?

Casa de férias 5, variação



- Mas claro que pode fazer, Groucho, porque não haveria de poder re-escrever tudo o que existe?
- Não é o poder da potência a que me refiro, é o poder do kairós...
- A oportunidade?
- Sim, a oportunidade. Mas um pouco mais do que isso, também. Alguma coisa parecida com a oportunidade coincidir com o destino.
- Percebo. Quer dizer, parece-me que o percebo. Mas nesse caso esqueça a questão.
- E porquê, se é que se pode saber?
- Porque é uma questão da crítica, não do escrever.
- Mas escrever não é desde logo a crítica de tudo o que foi escrito?
- Claro, Groucho, tem toda a razão. Crítica e homenagem e outras coisas que podemos ler nos ensaios e que os autores sabem muito bem, mesmo que não o saibam segundo a linguagem dos ensaios. Mas escrever só começa depois.
- Depois?
- Depois. (pausa) O problema é que nunca se sabe exactamente quando é que começa o depois. Ou quando já começou a ser depois.
- Percebo, só se sabe muito depois do depois já ter começado.
- É assim que as coisas são.
- Porque são como são.
- Porque são como me são.
- Foi o que eu disse.
- Este silêncio chega-lhe, Groucho?

Casa de férias 4, variação





(...) A manhã é o sol,
Não esta atitude dos nervos,

Como se um intérprete obtuso agarrase
Os matizes da viola azul.

Não tem de ser esta rapsódia nem nenhuma outra,
Apenas a música das coisas como me são.



Variação do Groucho a partir de Wallace Stevens, O homem da viola azul (1937)
depois de uma longa conversa nocturna com o Sr. Mourão acerca de Vergílio Ferreira

01 março 2006

Casa de férias 6


Mesa encostada à janela, de noite. Bebem chá em silêncio.
Groucho levanta-se e vai lá dentro. Traz «O homem da viola azul», que coloca no parapeito da janela. Faz um gesto, como se fosse iniciar uma frase, mas continua calado. Bebe mais chá. Aponta o livro.

— Se tivesse de falar aos seus alunos sobre as “coisas como elas são”...
(interrompendo) Não tenho.
— Mas se tivesse...
— Não tenho, porque os alunos são tudo menos as coisas como elas são. (pausa) E era você quem queria falar.
— Pois, o kairos... Talvez noutra altura. (pausa longa) Acha que amanhã de manhã haverá silêncio que chegue?

Mourão encolhe os ombros. Acabam o chá. Groucho pega no livro, folheia, lê de onde a onde. Mourão pergunta, olhando para a janela.

— Sabe que faz hoje dez anos que morreu o Vergílio Ferreira?

Groucho fica a olhar para ele. Não diz nada.

Casa de férias 5


- Mas claro que pode falar, Groucho, porque não haveria de poder?
- Não é o poder da potência a que me refiro, é o poder do kairós...
- A oportunidade?
- Sim, a oportunidade. Mas um pouco mais do que isso, também. Alguma coisa parecida com a oportunidade coincidir com o destino.
- Percebo. Quer dizer, parece-me que o percebo.
- Por isso lhe perguntava se podia falar, uma oportunidade e um destino serão a coisa mais solitária do mundo, mas dirigida sempre àquilo que não somos nós.
- Mesmo que se trate de falar de um poema...
- Sobretudo se se trata de falar apenas de um poema.
- Ah, apenas... Nesse caso é preciso criar um silêncio muito grande, melhor logo à noite.

Casa de férias 4




(...) A manhã não é o sol,
É esta atitude dos nervos,

Como se um intérprete obtuso agarrase
Os matizes da viola azul.

Tem de ser esta rapsódia ou nenhuma outra,
A rapsódia das coisas como são.


Wallace Stevens, O homem da viola azul (1937)
Trad. de Maria Adelaide Ramos
Relógio D'Água, 2005

25 fevereiro 2006

Casa de férias 3


— Acha mesmo, Groucho? (pausa) Olhe que não sei...
— Não sabe ou não acha? Ou acha, mas não completamente?
— Bom...
— Era o que me parecia, resposta típica de um intelectual quando o intelecto é apanhado em território desconhecido.
— Vejo que lhe está a fazer bem o descanso, Groucho...
— Nem imagina quanto! (para o cão) Anda, vamos às compras.

23 fevereiro 2006

Multiplex 3 (take 3)

— Não olhe agora, Groucho, deixe-a sentar-se.
(pausa; continuam a tomar café)
— Olhe agora, Groucho, mas devagar, seja discreto que isto é uma terra pequena.
(Groucho olha, depois continua a tomar café)
— Não diz nada, Groucho?
— Digo que é um animal humano bonito. E dito isto, não percebo de todo a sua excitação.
— Mas não lhe parece uma presença arrebatadora? Não acha que em determinadas circunstâncias um homem pode abandonar tudo para a seguir? E note que eu penso que o contrário também pode acontecer, de uma mulher para um homem, ou entre homens ou entre...
(interrompendo) Percebo perfeitamente o seu ponto.
(pausa, Groucho toma o último gole de café)
.
— Mas que raio, Groucho, estou a tentar voltar à conversa de...
(interrompendo) Percebo perfeitamente o seu ponto, repito. É análogo daquela tese que diz que a beleza é uma armadilha da natureza para pôr um homem em pé.
— Mas que raio de metáfora machista é...
(interrompendo) E note que, tal como o Sr. Mourão, penso igualmente que a metáfora se pode aplicar a qualquer uma das combinações que enunciou. É um modo algo infeliz de dizer, mas apenas isso.
— E então em que ficamos, Groucho?
— Ficamos na mesma, senhor. Melhor, tenho de concluir em termos mais universais: Decididamente, os humanos não percebem nada.
— Arre, Groucho, você hoje está intratável.

Multiplex 3 (take 4)

— Groucho, podia explicar-se um pouco melhor?
— Mas é simples, senhor. Já trabalhei no cinema, sei como se produz a beleza, sei a diferença entre a imagem que fica na tela e as pessoas reais que...
(interrompendo) Mas aquela mulher no café, por exemplo, era real.
— Então tenho de dizer que essa realidade não me interessa.
— Porque?..
— Olhe, interessa-me a Gata Borralheira, é isso. Interessam-me as pessoas cansadas, sujas, um pouco vencidas pela vida. Interessa-me não a beleza, mas a cicatriz que torna a beleza humana.
— Groucho, você anda a ler demais!.. Mas mesmo nisso da Gata Borralheira, se não fosse o sapatinho, como é que o príncipe...
(interrompendo) É o que eu digo: como os humanos não percebem nada, precisam de umas próteses para o entendimento.
— Como metáforas à custa de sapatinhos, é isso?
— Ou tesão à custa de imagens, dá no mesmo. Mas depois esquecem-se que as metáforas são metáforas, e de repente acham que estão no estado de natureza.
— Chiça, homem, lá se vai o encanto todo da Scarlett!.. E eu aqui a pensar que o clown metafísico era eu...
— Lamento. (pausa) Podemos ir agora jantar? Descansadamente, sem olhar para outras mesas?..

22 fevereiro 2006

Multiplex 3 (take 2)


— Decididamente, os homens não percebem nada.
— Não o sabia tão descrente da humanidade, Groucho.
— Referia-me apenas aos machos da humanidade, senhor.
— Conte lá, Groucho, alivie a sua alma.
— Lembra-se quando ela lhe diz que os homens costumavam julgar que ela tinha alguma coisa de especial?
— Sim, ele pergunta-lhe: e tem? E ela responde que nunca nenhum lhe pediu o dinheiro de volta. É um dialogo típico para introduzir a mulher fatal, qual é o problema?
— O problema é a afirmação dela, Sr. Mourão. É um aviso claro, é uma forma de dizer que ela não tem nada de especial, que quer o que é suposto as mulheres quererem, pelo menos a maioria delas.
— E isso que as mulheres querem, na sua douta opinião, é o quê, Groucho?
— Não ironize à minha custa, senhor, estou só a falar do filme... No final, ela quer ter o filho, um marido, e um pequeno mundo deles. E isso ela já sabe desde o início, quer dizer, ela sabe que foi sempre isso que quis.
— Mas uma mulher daquelas, Groucho...
— Uma mulher daquelas é apenas o espelho infantil dos machos, mas que se vai recusando a ser apenas isso. Por isso ela avisa.
— Já não há mais espaço para a mulher fatal, é o que me está a dizer?
— Decididamente, os homens não percebem nada, é o que lhe estou a dizer.
— Nesse caso, nunca perceberam.
— Também serve.

21 fevereiro 2006

Multiplex 3 (take 1)


— Menos comentários desta vez, Groucho?
— Só mesmo à saída, uma senhora muito alta e indignada, dizendo ao marido: «É indecente, ele devia ter sido castigado!».
— Difícil aceitar a roleta russo da existência...
— Não me diga que também acha que o filme é mesmo sobre a sorte ou o azar de um match-point?
— Que ele quer vencer, é claro, mas em que a sorte ajuda bastante. Mas já vejo que tem outra leitura.
— É verdade que ele vence, mas não sei se aquele ponto é de match ou apenas de partida.
— Mas o título, Groucho...
— Pois... Mas veja bem a última cena, todos reunidos em torno do novo bebé, e ele de fora, como que separado de tudo.
— Remorsos, mas com dinheiro à vista, diria eu.
— Dostoievskiano, prefiro eu dizer. A cena mais dostoievskiana de todas, mais do que aquele diálogo com os fantasmas dos mortos saído directamente do Crime e Castigo.
— Não percebo.
— A grande descoberta de Dostoievski, Sr. Mourão, é a de que os remorsos ou a culpa nos separam de tudo, nos emparedam dentro das nossas pobres categorias. Não é uma questão de bem e mal, é uma questão de não haver terreno comum que permita que nos possamos reconhecer. Ele ganhou, e por isso mesmo perdeu, não pode partilhar com ninguém o que fez, não pode aspirar a que ninguém o reconheça naquilo que fez.
— Vive num inferno, quer você dizer.
— Quero dizer que o inferno é isso e nada mais que isso. E que a roleta russa não é para aqui chamada.
— E disse isso à senhora muito alta e indignada, como você lhe chamou?
— Não, deixá-la primeiro aprender a roleta russa, esta conversa só pode vir depois.

20 fevereiro 2006

Desdobrando a adivinha

Caro Senhor
Abel Barros Baptista:

Agora que todo este episódio chegou a bom termo, permita-me, não que tente adivinhar a sua adivinha, mas que a desdobre para começar a pensar. Caso em que ponho à sua consideração este outro exemplo, outro porque diferente e não mero acrescento. Trata-se de um autor que muito se baldou para as imunidades da língua — aliás, ao ponto de fazer disso uma das suas marcas autorais — mas que de repente encontra um vírus quiçá demasiado forte. Há um novo professor na aldeia, estamos a muitos anos do processo de Bolonha, and it goes like this:


"Dizia que a aprendizagem se devia fazer escrevendo logo na lousa palavras inteiras designando objectos conhecidos. Escrever por exemplo «pedra», «tijolo», «enxada», «exploração capitalista».
— É um método muito bom
era um método muito bom, as crianças entravam logo no seu mundo, uma enxada eles sabiam o que era. Mas ele tinha outro método que era o mesmo, trabalhado com palavras de impacto muito mais forte. Lá estava ele com o seu impacto, eu ouvia em cima, era uma barulheira infernal. (...)
— É muito positivo — dizia-me ele depois. — As crianças riem, como é próprio da ignorância, mas fixam logo a palavra, nunca mais a esquecem.
Eu também as não esqueci, diziam assim: «cu», «merda», «puta», «car(v)alho», «cagar», «porra», «fo...-se». Eu digo «fo...-se» com pontinhos e «car(v)alho» com um parêntese porque sou ainda um subdesenvolvido moral, mas o professor escrevia por inteiro.
— É muito positivo — dizia-me ele
e havia toda uma desmitificação a fazer dessas palavras. Achei, todavia, que a última que eu disse com pontinhos era muito forte e complicada e perguntei porque é que a ensinava, ele explicou que
— É por causa do hifen."
Vergílio Ferreira, Signo Sinal, 1979, pp. 52-53


Digamos que há aqui, de facto, um problema de “hífen”, de ligação entre a permanência ou a insistência de alguma “condição humana” e a linguagem que a enuncie nas novas “condições simbólicas” em que o termo vanguarda já só quer dizer “o senhor que se segue”. Claro, terá que ser senhor, e ser reconhecido como o que se segue. Mas enquanto houver mundo, é de crer que essa abundância não nos faltará. Por outro lado, nem de vanguarda aqui se tratará, mas da linguagem que pertence a este real, tendo-lhe sempre pertencido. Esta e outras — daí o problema, se o for.
Mas pensemos.

Saudações casmurras

18 fevereiro 2006

Reencaminhando a chamada

— Está? Sr. Mourão?..
— Olá, Groucho. Espere só um pouco, deixe-me vir aqui mais para dentro para o quentinho.
— Sábado desagradável, de facto. Já me tinha esquecido de que podia chover e ventar tanto.
— Veja lá, não poupe no gás, aqueça-me essa casa.
— Já sabe da questão das cartas falsas, senhor?
— Recebi há pouco um fax do Sr. Baptista com as missivas em causa.
— Um bocado intrigante, não acha?
— Devo confessar que fiquei um pouco espantado, é verdade. Sobretudo porque por uns breves momentos me perguntei se não tinha sido mesmo eu a escrever a carta...
— Hum, a questão do pastiche perfeito, estou a ver.
— Eu sei que não fui eu, ou melhor, creio saber que não fui eu, mas a verdade é que com a dose necessária de fel (o que me acontece por vezes, tenho de admitir), aquela seria a minha carta.
— Não é do seu punho, mas está na lógica do seu punho...
— E estando na lógica do meu punho, até que ponto não pertence ao meu punho?
— Problema profundo. Que pena não...
(interrompendo) Pior ainda quanto à suposta carta do Sr. Baptista.
— Pior?
— Claro, Groucho. Como não sou o Sr. Baptista, não sei de ciência razoavelmente certa que não foi ele a escrever a carta, e como também aqui o estilo confere...
— Claro, o pastiche parece-nos tanto mais perfeito quanto não seja o pastiche de nós.
— Se não fosse o Sr. Baptista assegurar-me não ser o autor da carta, não duvidaria por um instante da sua assinatura.
— Era o que eu ia dizer há bocado, esse é um dos problemas profundos a que o clube daria guarida de bom grado. É uma pena aquilo estar deserto...
— Não só é uma pena, Groucho, como estas cartas devem estar relacionadas com esse deserto.
— Também presume da autoria das cartas, como o Sr. Baptista?
— Também, Groucho. E encontro-lhes mesmo um motivo: estando o clube deserto, o suposto autor reinventa as vozes, a ver se atrás delas se perfila gente.
(esperançoso) E acha que dará resultado?
— Isso agora...

Passeio quase nocturno: o castelo (3)



— Mas que se passa com esta cidade? Há obras por todo o lado, santo deus.
— É o progresso, Groucho, e desta vez vem programado ou tem nome de programa.
— Ah, essa coisa grega...
— Cuidado aí com essas correntes, chegue-se mais para cá.
— Arre, sente-se bem que chegamos à beira-rio, que humidade!
— Aperte bem o cachecol, veja lá. Apesar do diferendo, acho que ninguém no clube me perdoaria se viesse a adoecer nestas férias.
(esperançoso) Acha mesmo?
— Acho, Groucho, acho mesmo. Mas voltando à história. Temos então que a câmara cá da terra tinha uma maioria confortável e parecia lançada para um novo mandato. E tanto assim era, que pela oposição se apresentou desportivamente um bom candidato perdedor.
— Estou a ver... Pessoa séria, não conhecida na política, que não quer mesmo ganhar, mas que faz o frete ao partido de se queimar naquelas eleições.
— Nem mais. Acontece que a maioria, quase a terminar o mandato, se lembra de propor um grande desígnio para o futuro. Faz contas e mais contas e chega à seguinte conclusão: se em todos os documentos oficiais da câmara, a designação da cidade, em vez de ser Viana do Castelo, passasse a um singelo Viana, poupar-se-iam muitos milhares de contos.
— Sério?!
— Foi o que disseram, e se calhar as contas até estavam bem feitas, sei lá. Além do mais, diziam eles, tratava-se simplesmente de tornar oficial a designação corrente cá do burgo.
— Hum... E depois, que aconteceu?
— A oposição tomou como lema da sua campanha “Por uma Viana com Castelo”, foi o que aconteceu.
— E ganharam?
— Oh-Oh, ganharam sim senhor. Por meia dúzia de votos, contadinhos até às quinhentas da noite, mas ganharam.
— Hum... (pausa longa) De facto... (pausa) Olhe cá uma curiosidade: quando disse Oh-Oh a sua entoação mudou...
— É uma expressão daqui, Groucho, estava a imitar as gentes de Viana.

17 fevereiro 2006

Ecografia























- Aquém não há quem!
- Nem além há!
- Sem ninguém, ninguém vem!
- Quem vem?
- Vem alguém sem ninguém.
- Vem?
- Sim, vem assim.
- Assim, com a água?
- Com a mágoa?
- Com o som do sim.
- O eco que ecoa.
- E canta.
- Eco ecoador.
- Cantador.
- Que coa.
- Os passos.
- A dor.
- Que bate contra a parede!
- Que cai no chão!
- E ressoa no tecto!
- A sala vazia.
- Quem está?
- Quem está lá?
- Aí, quem está?
- Quem está aí, está?
- E aquém?
- Quem?

Ecolália























- Uma estrela cadente rasgava os céus!
- Rasgava os céus!
- Como se o fizesse apenas pra mim!
- Apenas pra mim!
- E soubesse o que me ia no peito!
- O que me ia no peito!
- O ar estalava à luz escura da noite!
- À luz escura da noite!
- O motor da carne em combustão interna!
- Em combustão interna!
- No zimbório negro um raio de luz!
- Um raio de luz!
- Uma linha de choupos no alto do monte!
- No alto do monte!
- 80 decibéis a vibrar nos tímpanos!
- A vibrar nos tímpanos!
- Ao fundo do cenário as luzes da ponte!
- As luzes da ponte!
- Rasgava os céus uma estrela cadente!
- Uma estrela cadente!
- Trela cadente!
- Ela cadente!
- Cadente!
- Dente!
- Ente!
- Te!

Passeio quase nocturno: o castelo (2)




— Cuidado aí, isto anda tudo em obras, talvez seja melhor mudarmos de passeio.
— Vêm lá dois cães, será seguro?
— Estão com trela, mas vamos aqui pelo meio. Sabe que já não me lembro bem de quando foi a história, mas terá sido pouco antes ou pouco depois do fim do reinado cavaquista.
— Assim tão recente? E mete política dessa?.. Pff...
— Refere-se a umas eleições autárquicas, Groucho, mas não é uma história de política dessa.
— Como não? Lá no clube quase nunca se falava dessas coisas, e com razão, é um real tão pequenino, esse...
— Eu sei, Groucho, eu sei, também concordo que um dos meios de lidar com essa pequenez é não lhe dar precisamente todo o espaço do discurso.
— Ora aí está... Hum, eram grandes conversas aquelas...
— Saudades, não é, Groucho?
— Tenho de confessar que sim. Apesar de tudo...
— Claro, apesar de tudo. É preciso dar tempo... às vezes não resolve nada, mas deve-se dar sempre uma oportunidade ao tempo.
(quase desdenhoso) Pois, e dizer com ar grave: o tempo, esse grande escultor.
(pausa)
— Olhe, Groucho, acabamos de passar a entrada do castelo.
— Era aquilo?
— Precisamente.
— E funciona alguma coisa lá, agora?
— Oh, nem sei bem. A última vez que lá estive, já foi há uns anos, estavam umas salas a ser recuperadas para auditório dos serviços de turismo ou qualquer coisa do género.
— Apoio lojístico, portanto. Algum relevo arquitectónico?
— Que eu saiba não, mas não sou de fiar nessas coisas. O que me parece é que se de repente aquilo desaparecesse, se se evaporasse no ar em recolhido silêncio, ninguém daria conta... é isso que torna interessante a história que lhe estava a contar. Não é exactamente uma história política, e muito menos de política dessa, é antes uma história da força da existência do mapa contra a simples existência do território.
— Outra vez a antecipar as conclusões, senhor?.. (pausa) Bom, conte lá então...
— Sim, Groucho, mas tenha cuidado aí, está tudo esburacado.

(continua)

16 fevereiro 2006

Passeio quase nocturno: o castelo (1)




— Está bem agasalhado, Groucho? Olhe que isto já desceu aos cinco graus...
— Sente-se, lá isso é verdade. Andemos, andemos.
— Vamos ali contornar o castelo e depois continuamos pela beira-rio.
— Não parece grande, o castelo.
— E não é, além de não ter grande interesse. Mas há uma história curiosa que o envolve, e que é o reverso dessa verdade insofismável de que o mapa não é o território ou de que a palavra pedra não fere.
— O reverso de uma verdade insofismável, senhor? Como assim?
— Então, Groucho, o contrário, o oposto...
— Eu sei o que quer dizer reverso! Agora reverso de uma verdade insofismável...
— Visto da perspectiva completamente oposta, onde mora uma outra verdade que também se pretende insofismável.
— Mas podem ser ambas, ou afinal nenhuma delas é porque existe a outra?
— Acho que depende da história que você quiser contar, Groucho. Era o que eu ia fazer, contar-lhe uma história, uma pequena história...
— As minhas desculpas, senhor. Mas também me parece que começou logo pela conclusão, não pela história em si mesma.
— Mas já vê, Groucho, quando se começa pela conclusão e se conta depois a história, isso quer dizer desde logo que a conclusão não será assim tão conclusiva...
— Põe o desejo de conclusão à frente porque não sabe bem onde a história vai dar, é isso?
— Nem mais. O desejo de conclusão é só para ter por onde começar, que a gente bem sabe como se começa, agora como acabará...
— Bom, parece-me que o senhor é tão digressivo como os outros cavalheiros do clube. Volte lá à história, agora fiquei curioso.
— Está a ver, Groucho, as vantagens da digressão?
— Ou os incovenientes de ir aqui consigo...
— Pois, mas cuidado aí, isto anda tudo em obras, talvez seja melhor mudarmos de passeio.

(continua)

15 fevereiro 2006

Nar siso























- Fiquei a pensar, sabe?
- Sabe?
- Naquilo que me disse.
- Medisse.
- As palavras.
- Lavras.
- Na boca da parede.
- Oca da parede.
- Por pouco.
- Oco.
- Pensei que falava sozinho.
- Sei que falava sozinho.
- E que alucinara o que ouvira.
- Ou vira.
- Mas não. Afinal havia resposta.
- Vi a resposta.
- Primeiro, mal se distinguia.
- Extinguia.
- Depois, tremulava.
- Emulava.
- Ou antes, tremeluzia.
- Me luzia.
- Por fim, quase ressoava.
- Suava.
- Parecia-me água.
- Mágoa.
- A esvair-se.
- Ir-se.
- Um som surdo.
- O som surdo da loucura?
- Merda!
- Herda?
- Quem está?
- Ah!

Multiplex 2



—Então, Groucho, que tal a experiência de ir ao cinema na província?
— Deveras edificante. O jovem ao meu lado, acompanhado duma namorada silenciosa, riu nos sítios certos: quando eles se beijaram, quando a mulher os vê beijarem-se, e por aí fora...
— Era de esperar...
— Era. Mas no fim aconteceu uma coisa curiosa.
— Sim?
— Foi mesmo no fim, quando ele fecha o armário onde está a fotografia das montanhas e a roupa do último dia que passaram no paraíso...
— Groucho, você é um poeta!
— ... um poeta crítico, quando muito, que aquilo era mesmo o paraíso perdido, antes de eles lá chegarem já tudo aquilo tinha acabado.
— Acabado?
— É, aquilo começa já depois do fim, aquelas montanhas já estão para cá da fronteira. Mas indo ao ponto: quando o filme acaba, o jovem suspirou.
— Suspirou?!
— Suspirou. E disse à namorada: deve ser fodido ficar sozinho.
— Vencido pela morte, estou a ver...
— Como todo o amor que é amor, claro.

14 fevereiro 2006

Multiplex 1



— Obrigado, mas hoje não.
— Olhe que estava a pensar numa coisa simples, Groucho, um restaurante calmo ali para a parte velha, também não posso ficar até muito tarde...
— É, mas hoje não é um bom dia, agradeço-lhe de qualquer modo.
— Parece-me muito desamparado, Groucho...
— Isto passa, senhor. E não pense que me vou meter em casa num dia destes.
— Ai é?! mas então?..
— Vou para o meio da gente. Onde houver mais gente, é para lá mesmo que vou.
— Aqui é no shopping, Groucho.
— Era de esperar. Vou comer fast, bem no meio deles, talvez depois um filme qualquer, para continuar no meio deles...
Deles?
— Ora, sabe bem o que quero dizer...
— ?!
(com enfado) Dia de S. Valentim, não é?..
— Groucho, você deixa-me preocupado...
— Mas não há razão, é só mais um pouco de vida real. E apetece-me cinema com gente, está dito.
(entredentes) Oxalá não te arrependas. (normal) Seja, Groucho, um bom resto de noite.
— O mesmo, Sr. Mourão.
(afastam-se em direcções diferentes, Groucho muito apressado)

Casa de férias 2




— Já arranjou um cão, Groucho?!..
— Parece que é do prédio, vai andando por aí. Não o conhecia?
— Eu não, mas também faz tempo que não vinha por cá. Você até me fez um favor ao aceitar o convite, uma casa sem uso vai-se degradando.
— Por falar nisso, há novas do clube?..
— Cada vez mais deserto, Groucho... Aquela história de você ter raptado a menina Clara era treta, a verdade é que uma a um vão migrando, e nem se percebe bem porquê. Acho que até já puseram seriamente a hipótese de reclamar a herança do clube, veja lá.
— Herança? O quê, a mobília e os comes e bebes?
— Eu sei lá, Groucho. Mas acho que aquilo já está bastante despido, se calhar já levaram tudo, com ou sem herança. O Sr. Portela foi lá e só encontrou paredes e ecos.
— Vai ver que é o próximo a desertar.
— Também me parece. Olhe que o cão já bebeu a água toda.
(olham ambos para o cão; o cão deita-se sossegadamente)
— E o cão tem nome, Groucho?
— Já perguntei no prédio, mas ninguém se rala com isso, pelos vistos.
— Mas como é que você o chama?
— Ora, digo anda cá. E outras vezes ele já está aí, é ele que me chama a mim.
— Estou a ver.
— É bonito um cão sem nome, sabe? Tenho para mim que é um cão com um problema a menos.
— Como assim, Groucho?
— Oh, não interessa. O importante agora é que tenho de ir ali ao supermercado ver se lhe arranjo alguma comida. Você até que tinha alguma razão acerca dos encantos da vida real.
— Tinha?
— É, quanto mais metablogue de um lado, mais empiria do outro.
— Groucho, você está mesmo a precisar de férias, homem!..
— Por isso mesmo. (dirigindo-se ao cão) Anda, vamos às compras.

Migração























- Não entendo.
- Não entendo?
- Não.
- Não?
- Não entendo a migração.
- Não entendo a migração?
- Sim, a migração.
- Sim, a migração?
- A migração, a sala vazia.
- A migração, a sala vazia?
- O eco que isto faz.
- O eco que isto faz?
- Sim, o eco.
- Sim, o eco?
- O eco perguntador.
- O eco perguntador?
- É tudo muito estranho.
- É tudo muito estranho?
- A caixa acústica.
- A caixa acústica?
- A caixa acústica do peito, a ressonância.
- A caixa acústica do peito, a ressonância?
- Passou-se qualquer coisa!
- Passou-se qualquer coisa?
- Passou-se qualquer coisa para isto se passar!
- Passou-se qualquer coisa para isto se passar?
- Pare com essa merda!
- Pare com essa merda?
- Bate na parede e volta.
- Bate na parede e volta?
- O som.
- O som?
- O som bate na parede e volta.
- O som bate na parede e volta? Mas um blogue não tem paredes.
- Quem está aí?
- Quem está aí?
- Sim, aí, a escutar.
- As paredes não têm ouvidos.
- Quem disse?
- Quem disse?

13 fevereiro 2006

Casa de férias 1

— E é isto, Groucho. Acha que fica bem instalado?
— Mais que bem, senhor...
— Parece-me um pouco desanimado... Não é o que esperava?
— Bem, devo confessar que quando me falou de casa com vista de mar imaginei logo uma vivenda abrindo directamente para a areia e muito azul à volta...
— Mas eu depois avisei-o, Groucho, lamento se...
— Não, não, está muito bem assim, e não me enganou de todo, é exactamente como tinha dito.
— Mas...
— É só que é demasiado real, sei lá...
— Demasiado real?!..
— Quando me disse um sótão num bairro social, com vista sobre a parte velha, o porto, guindastes...
— E o mar, Groucho, o mar! Já reparou que o mar ocupa mais de metade da janela? Você senta-se aqui na mesa a ler ou a escrever ou só a pensar, e o mar é toda esta metade da janela. Uma casa assim é um achado, Groucho!
— E eu só tenho que agradecer. Mas não pensei que o bairro social fosse assim tão social, nem os guindastes tão guindastes...
— É só o primeiro impacto, Groucho. E depois vai ver que a vida real tem o seu encanto. Em todo o caso, terá sempre o mar.
— Também são apenas férias, não é nada de permanente...
— Era o que eu lhe dizia, Groucho: o mar são as férias da vida, nem há outra razão para ele ter de existir assim tão largamente.

12 fevereiro 2006

Contacto 2

— Posso convidá-lo para um almoço, senhor? Fora do clube, já se vê.
— Tenho uma ideia melhor, Groucho. Agora que é mais dono do seu tempo, porque não vem até cá acima? Terei muito prazer em recebê-lo, ofereço-lhe hospitalidade incondicional, estará como em sua casa.
— Convida-me para sua casa?!
— Melhor ainda, Groucho. Braga não tem assim tanto interesse, e casas com família já se sabe que é família a mais. Mas ofereço-lhe uma casa com vista de mar, estará à sua vontade, este Fevereiro vai solarengo, serão umas férias merecidas...
— Não tenho palavras para lhe agradecer, senhor.
— Estariam a mais, Groucho. A hospitalidade não precisa dessas, das outras conversaremos.
— Então está assente, é só fazer a mala.
— Não esqueça agasalho para os passeios nocturnos, esfria bastante.

Contacto 1

— Estou?
— É o Sr. Luís Mourão?
— O próprio.
— O Sr. Luís Mourão que entrou para os casmurros?
— Sim, mas?..
— É o Groucho, senhor.
— Ah, Groucho!.. Prazer em ouvi-lo, mas...
— O seu nome vem na lista telefónica, senhor. Os Casmurros negaram-me o seu contacto, mas o seu nome vem na lista. Aliás, não há outro Luís Mourão, foi fácil.
— Estou a ver, Groucho. E assim de repente até fico perplexo por só haver um Luís Mourão em tanto telefone, não fazia ideia.
— È natural, não vamos à lista ver o nosso próprio número de telefone, mas realmente é como lhe digo, foi fácil, tão fácil que até acho que há no caso alguma coisa de justiça poética...
— Oh, Groucho, deixe lá as missivas do Sr. Silvestre, aquilo é um falar de muita mágoa vestido a rigor másculo. A verdade é que estão todos abalados, por si e pela menina Clara, foi um golpe muito forte, é preciso dar tempo...
— Não sei, senhor. Pela menina Clara ainda compreendo, era a única mulher do clube; mas por mim é mesmo raiva, a forma como sempre me trataram, Groucho isto, Groucho aquilo, e depois ficavam que tempos sem dar cavaco...
— Que palavra azarenta.
— Desculpe?!
— Nada, Groucho, nada. Continue.
— Enfim, uma desconsideração, foi o que foi. E depois aquelas pilhérias e anedotas!.. O senhor, ao que julgo saber, não é tanto dado a essas coisas, pois não?
— Essa é uma conversa muito longa, Groucho. Mas de facto a minha reserva de anedotas é muito diminuta, só sei mesmo uma anedota, estou vivo.
— Desculpe?!
— A anedota é só isso: Estou vivo. É só assim, Groucho: Estou vivo.
— Ah... É do tipo clown metafísico...
— Pois.

08 fevereiro 2006

OPA OPA, compra que é branco!















... não é contra ninguém... não foi solicitada, mas também não é hostil... seguramente a melhor... positiva, possível e difícil de bater... a operação é muito grande e envolve muitas cautelas... estamos a ser observados pelos nossos concorrentes... este é um campeonato muito caro... a operação ascende a cerca de 12 mil milhões de euros... a operação foi desenhada para ganhar à primeira volta... uma grande aposta do grupo... um sinal de confiança no país... se ganharmos será por mérito próprio... é de certa forma uma alternativa ao investimento internacional... uma proposta que vai permitir clarificar por muitos anos o futuro da maior empresa portuguesa... é juntar à maior empresa nacional, o maior grupo português... imprimir uma liderança accionista... enfrentar os desafios estratégicos do futuro... é uma estratégia muito diferente da que tem sido seguida...