30 junho 2005

Alvoroço no condomínio, 1

LQ – Está lá fora.
OMS – Quem?
LQ – O homem.
OMS – Qual homem?
LQ – O homem das termas.
OMS – O que é que ele quer?
LQ – Quer conversa.
OMS – O Sr Baptista que o receba. Eu tenho mais que fazer.
(Entra o Sr Baptista)
LQ – Diz que são assuntos do nosso interesse.
ABB – Quem diz?
LQ – O homem.
ABB – Qual homem?
LQ – Foda-se! que esta conversa já me chateia. Olhe, fale com o Sr Serra, que vem a chegar.
PS – O que é que se passa?
ABB – Pelos vistos, o homem diz que são assuntos do nosso interesse.
PS – Qual homem?
ABB – Isso perguntei eu.
OMS – O homem das termas, porra! Então não se vê mesmo que é o homem das termas.
PS – Quem é o homem das termas?
OMS – Ora! não querem ver?!
(Entram o Sr Portela e o Sr Oliveira)
MP – Que agitação é esta logo pela manhã?
ABB – Não é agitação nenhuma. Para começar, deixe-se de hipérboles!
FMO – Estou a ver que não dormiram bem.
OMS – Mas quem é que não dormiu bem, quem, hein?
FMO – Assim não vamos a lado nenhum.
LQ – É tudo por causa do homem.
MP – Qual homem?
LQ – O homem das termas, que está lá fora.
MP – Mas quem é o homem das termas?
PS – Foi o que eu perguntei.
(Entra o Sr Rubim)
GR – Está lá fora.
OMS – Quem? O homem. Qual homem? O homem das termas. O que é que ele quer? Quer conversa. Quem? O homem. Qual homem? O homem das termas. O que é que ele quer? Quer conversa.
GR – O que é lhe deu?! Acorda sempre assim?!
FMO – Assim não vamos a lado nenhum.
MP – Quem quer um chá?

Hogarth, pintando a musa cómica

Alvoroço no condomínio, 2

MP – Já falei com ele. E acho que é um caso sério
ABB – Mas sério como? O que vem a ser “sério”? E, aliás, se vamos por aí, o que vem a ser “caso”?
OMS – A função metalinguística não, por favor! Função por função, comecemos pela conativa.
MP – Já não se pode ter uma conversa.
FMO – É só jargão nesta botica.
LQ – Jargão e os Argot-nautas!
PS – Concentrem-se, caramba, concentrem-se!
GR – É o que eu acho: falta concentração a esta malta.
MP – Bom, o certo é que eu acho que temos um caso sério.
ABB – Explique-se, explique-se.
OMS – Estamos todos à espera.
MP – A violação do correio não é a única questão pendente.
GR – Pendente, não. Candente.
ABB – Não o sabia tão especioso, Sr Rubim.
GR – Especioso, não. Cioso. E esta palavra é minha, atenção!
FMO – Concentrem-se, caramba, concentrem-se!
PS – Essa frase é minha!
LQ – É, não. Era! A linguagem pertence à tribo.
OMS – Estou a ver que nunca mais saímos daqui.
MP – A violação do correio não é a única questão pendente.
ABB – Avance, homem, avance. Que diálogos senis estes em que você nos mete!
OMS – Também digo. Eu calo-me já, se me continua a encher a boca com buchas destas.
FMO – Então, e a minha deixa?
PS – A sua não sei, mas a minha era essa.
GR – A violação do correio não é a única questão candente, dizia o Sr Portela.
MP – Está a pôr-me palavras na boca.
LQ – A pôr, não. A tirar.
MP – Eu disse pendente.
FMO – A linguagem pertence à tribo.
LQ – Essa frase é minha!
PS – E essa é minha!
ABB – O caso é verdadeiramente sério.
MP – Eu bem dizia.

olho

Alvoroço no condomínio, 3

PS – Sabem o que ele diz?
GR – Estão a falar do homem das termas?
FMO – Cale-se e deixe ouvir. Chega sempre atrasado.
GR – Olhe que isso não vai passar em branco.
MP – Calma, senhores, calma.
PS – Diz que já nos topou a todos.
ABB, FMO, MP, OMS, GR – Topou?!
LQ – Temos coro, agora, é?
FMO – Cale-se e deixe ouvir.
LQ – Estou a ver que sempre encontrou a sua deixa…
FMO – Olhe que isso não vai passar em branco.
OMS – Mas ninguém arranja umas falas melhores para o Sr Oliveira?
MP – Tanta hostilidade só pode ser nervosismo.
OMS – O Sr faz diagnósticos, é? Olhe que a dinâmica grupal é imprevisível.
PS – Posso continuar?
LQ – Estamos todos à espera.
OMS – Essa frase era minha, mas pelo que vale…
PS – Bom, o homem das termas diz que já nos topou a todos. E que isto agora vai funcionar ao contrário.
ABB – Ao contrário?! Explique-se, explique-se.
PS – Ao princípio não percebi muito bem.
ABB – Já conhecemos essa sua lentidão.
MP – Contenção nos insultos.
ABB – O Sr está a sobre-interpretar, com certeza. Alguém insultou alguém?
MP – Não me sub-interprete, Sr Baptista.
OMS – Sujeito Verbo Complemento. É um caso claro de ética e gramática.
FMO – Concentrem-se, caramba, concentrem-se!
LQ – Mais falas do diálogo anterior é que não! Isso é mesmo perder a cabeça!
GR – Sempre a chistar, o Sr Quintais. E sempre a chispar, o Sr Silvestre. Psicologia de bolso. Qualquer titereiro topa isto.
PS – Foi exactamente essa a frase do homem das termas: qualquer titereiro topa isto. Ao princípio não percebi muito bem.
ABB – Avance, Sr Serra, avance, que o concílio já está ilustrado.
FMO – Isto é só arcaísmos, não é…
LQ – Arca-ísmos de Noé.
FMO – Cale-se e deixe ouvir.
LQ – E não se arranjam falas melhores para o Sr Oliveira?
PS – Foi só quando ele me mostrou o folhedo que trazia nas mãos que eu percebi o alcance da frase que disse a seguir.
FMO – Que frase?
PS – Que agora íamos ser nós a trabalhar para ele. Que já tinha tudo estudado. O Casmurro ia passar para as mãos do Estilista.
ABB – Estilita, o da coluna?
PS – Não, Estilista, Groucho Estilista.
OMS– Está o chá entornado.
MP – Ah está? Mas ainda agora o pus a aquecer.
OMS – Era figurado.
MP – Quem? O Estilita?
OMS – Não! O chá entornado!
ABB – Metáfora seguida de metonímia seguida de sinédoque. Metaforonimissinedoquimose.
(O Sr Baptista toma notas, afanosamente)
PS – E não é Estilita, é Estilista.
LQ – Safa! Que manhã desperdiçada.
(O Sr Quintais sai. Cai o pano.)

partitura

Alvoroço no condomínio, 4

PS – De quem é este pano?
GR – Meu não é.
FMO – Só se for do Sr. Quintais.
(O Sr. Quintais entra.)
FMO – Então o Sr. entra ou sai?
LQ – Isso queria eu saber.
OMS – Isto é absurdo! Solecismo e solipsismo é o que eu tenho a dizer. Bolas e futebolas!
ABB – Onde é que nós íamos afinal?
PS – Íamos no Estilista, que se apoderava do Casmurro e nos punha a trabalhar para ele.
MP – Ao menos o Sr. Serra mantém a cabeça fria. Quer dizer, orienta-se. Não perde o fio à meada.
PS – Trago aqui o folhame que ele me mostrou. Avisou-me que estas eram só as primeiras sete. «There’s more where these came from», ipsis verbis, sem tirar nem pôr.
ABB – Então, já faz ameaças, ahn?! Não lhe bastou violar ontem a caixa do correio?
GR – E depois, o que disse mais?
PS – Resmoneou qualquer coisa em jeito de despedida, entre o bigode e o charuto, e foi-se embora. A única frase que ouvi foi «I miss the spa».
OMS – E as folhinhas são esses papeluchos que traz aí amarrotados?
PS – Sim, mas o melhor é ler isto tudo de seguida.
FMO – Devagar, que isto vai-me saber bem. A catástase aproxima-se.
(Cai o pano. Ouvem-se os papeluchos em voz off)

[Papelucho 1]
O ecdótico catacrético paronomásico atrabilioso
O responsável pela edição crítica para o assistente de investigação:
— Foi o senhor que digitou o manuscrito dactilografado?
— Não, eu apenas digitalizei. O dactilógrafo é que manuscreveu.
— Mas olhe que o espólio está muito necessitado de filologia.
— Pois é, deram-lhe muitos pontapés com as mãos.
— A ecdótica foi toda anedótica. E que lição tirar daqui agora?
— Depende da resolução: o óptico é inimigo do bom.
— E qual é a sua leitura?
— 300 pontos por polegada.

Caderninhos de retórica de ABB, fl. 48v
posted by Groucho, o Estilista

[Papelucho 2]
publicar 1. forma rebuscada de reciclar papel 2. produção da esfera pública 3. todos autores, todos leitores 4. sinónimo de “to post” (v.) 5. o que fazem as trombetas da fama
povo 1. multidão de gente 2. classe inferior 3. espectro do Estado (v.) 4. arcaísmo usado em expressões como “do povo”, “pelo povo”, “para o povo” 5. agente duplo da História
poesia 1. está na rua (v.) 2. arte de fazer versos 3. estado comovido de alma 4. cheiro do dinheiro (v.) 5. acção
post 1. posta de prosa ou linguado 2. posta de pescada pescada num blog (v.) 3. prefixo em expressões como “post-restante” para referir o post que sobra, e “post-ila” para referir o caderninho dos posts 4. pau fixado verticalmente no chão 5. “vai num post e vem no outro” (uso idiomático)

Dicionário de Soundbytes, por OMS,
posted by Groucho, o Estilista


[Papelucho 3]
O nome de guerra do bloguista é muitas vezes o seu calcanhar daquilo. O pseudónimo trai-lhe a intenção e desmascara-lhe a anonímia. Ao confundir a fala e a escrita o bloguista oferece o flanco à seta que há no nome. A escrita é o acto de fala que o deixa lívido. A letra vívida consome-lhe a presença no filamento da lâmpada. São letras de contacto que o movem na lente desfocada dos dias. É a luz da sua própria fraqueza que lhe arde no ponto cego da retina. No diário em linha dá passos em falso. Tomba. O zumbido da voz digital posterga-lhe o ser postiço. Prostra-o. O nome de guerra mata-o. O remetente destinatário. O amador na cousa amada. Circuito curto para o circuito.

Nick, o bloguista 2, por PS
posted by Groucho, o Estilista


[Papelucho 4]
decidiu começar ao acaso. um jogo que gostava de fazer. fechou os olhos e abriu negrume:
frag. 30 fotofilia
Sabes que o que está na imagem nunca pode ter existido daquele modo: é o olhar que dilata o instante ao ponto de lhe obliterar o futuro e o passado. Essa momentânea suspensão do tempo pode ser semelhante ao olhar com que espreitamos o mundo, se o conseguirmos despir do hábito e da rotina, que, no entanto, parecem servir para nos protegermos da força com que a vida se manifesta dentro dos dias. Organizamos o tempo para abolir esse apelo do presente e construir a identidade que nos deixa dormentes. A fotografia parece captar essa consciência fugidia do instante, dando-lhe uma duração e uma intensidade aparentemente impossíveis de apreender de outro modo. Mas afinal produz o que pretende captar, fazendo de conta que agarra a luz.

Juca Gaspar, uma novela aeroportuária duvidosa, por MP
posted by Groucho, o Estilista

[Papelucho 5]
Liriconírico
— Abriu-se um buraco no céu da boca. Por onde desceste até à garganta. Que era uma árvore virada ao contrário. Ramos na terra, raízes no ar.
— Mas esse sonho foi o sonho de ontem! Conta-me o sonho que tiveste esta noite!
— Abriu-se um buraco no céu da boca. Por onde desceste até à garganta. Que era uma árvore virada ao contrário. Ramos na terra, raízes no ar.
— Mas esse sonho foi o sonho de ontem! Conta-me o sonho que tiveste esta noite!
— Abriu-se um buraco no céu da boca. Por onde desceste até à garganta. Que era uma árvore virada ao contrário. Ramos na terra, raízes no ar.
— Mas esse sonho foi o sonho de ontem! Conta-me o sonho que tiveste esta noite!
Adorno não concluiu este apontamento erótico — ao que se crê, adornou por motivos eróticos.

Os protocolos de Adorno, por FMO
posted by Groucho, o Estilista

[Papelucho 6]
Clones na bruma
Abri a televisão e fui desfiando canais: num canal estava a dar um clone a perorar. Noutro canal estava a dar outro clone a piorar. Noutro clonal estava a dar outro. Recorde-se o adágio de Benjamim: não há paciência.

Exercícios de auto-etnografia, por LQ
posted by Groucho, o Estilista

[Papelucho 7]
«Varrer o cotão filológico e os saltimbancos letrados» – declarou o insigne expressamente. Varrê-los e varrê-los bem, escreveu dentro do saco de plástico. Estranhei esta filosofia da navalhada sem contexto, mas o peso da melancolia não deixa ânimo para brincadeiras.

Os dias da Clepsydra, por GR
posted by Groucho, o Estilista

(Sobe o pano.)
ABB – Está a arranjar lenha para se queimar.
OMS – Eu faço-lhe já a cama.
FMO – Isto é o que se chama um post nas costas.
LQ – E é o que eu chamo um caso de observador-observado.
ABB – O que o senhor chama não é para aqui chamado.
PS – A questão é: como descalçar a bota?
MP – Como tirar a pedra do sapato?
GR – E quem é que lhe chega às solas, quem? Quem lhe chega à coluna?
(Cai o pano.)
ABB – Não cai o pano, merda nenhuma, que isto é sério! O Sr Quintais já tem a acta?
(Cai o pano.)

ouvido

29 junho 2005

Um dia no Casmurro, 2 (que blogro é este?)

No sábado foi uma correria todo o dia, de teclado em teclado e de servidor em servidor. Era vê-los a digitarem, possessos, esconjurando a líbido literária que lhes tolhera os membros durante as meras 3 horas e 48 minutos que a moratória durou. Que animal esfaimado pode andar assim com o cio da letra? E é nestas mãos trucidárias que eu me vejo a ventriloquar e a ler, empalado entre um caderninho de retórica, um dicionário de encher a boca e uma novela de aeroporto e alguidar. Não fossem as águas tépidas das caldas e libertava-me hoje mesmo deste jugo parasitário e exprimista da escritaria instantânea. Acocoro-me e deixo-vos espreitar a caixa do correio pela segunda vez. Onde encontrarem o meu nome, sabei que não sou reponsável pela barafunda. Escusado será dizer que tudo isto vos é revelado em surdina. Aos Casmurros, nem palavra. Chiu!, Chiu!, que ouvi agora mesmo um rumor qualquer ali atrás. Baixem a cabeça, depressa, que eles vão a passar!


De: ABB
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 10:44 AM
Para: Casmurro
Assunto: incontinências da aurora

Caros casmurros:
Proponho que aproveitemos o sábado para dia de reflexão. A brincadeira de ontem marca de certo modo o fim da fase selvagem. A fase das incontinências da aurora, digamos assim. O Sr Silvestre e eu temos exagerado na postagem e se em princípio isso não impede ninguém de postar igualmente, o certo é que se todos andassem ao mesmo ritmo isto seria impossível. Não sei se já não está impossível.

De: SS
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 12:21
Para: Casmurro
Assunto: Contradição performativa
Caros casmurros
Deste lado, confesso, não sem algum embaraço, que já tenho "isto" adicionado aos Favoritos. Significa isto leitura diária obrigatória. Compro o bluff, para salvar o apreciado Groucho, e lanço esta singular bóia de salvação. Vale o que vale, como se pudesse valer outra coisa...

De: FMO
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 12:36
Para: Casmurro
Assunto: RE: incontinências da aurora
Simples: o Sr Baptista e o Sr Silvestre passam a postar ao ritmo dos mortais e a coisa resolve-se por si... Ao trocar ontem umas ideias com o Groucho sobre a especificidade do meio (coisa para continuar), ele próprio se referiu à necessidade de reduzirmos os posts em quantidade e em tamanho. Já deu para ver que cada cavalheiro vai encontrando o seu estilo; e não me parecem estilos incompatíveis, pelo contrário. Talvez possamos tb. aproveitar sempre que possível para reforçar as séries narrativas, temáticas etc.

De: ABB
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 12:51
Para: Casmurro
Assunto: RE: RE: incontinências da aurora
Não me parece tão simples assim. O que o Sr. chama «ritmo dos mortais» é na verdade vários ritmos. E não pode haver ritmo único, uns postam mais outros menos. Tem que ser mesmo assim. Em qualquer caso, tem que haver moderação a partir de agora da parte dos mais frenéticos, e possivelmente mais alguma participação da parte dos mais absentistas. Concordo em absoluto que é preciso reduzir os posts em quantidade e em tamanho. Coisas grandes não funcionam, muitas coisas grandes funcionam muito menos.
Quanto às séries, um ponto importante neste momento é a figura do Groucho. Quem se puser à conversa com ele deve seguir o fio anterior de modo coerente. Se ele vai para as termas, vai para as termas.

De: FMO
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 13:03
Para: Casmurro
Assunto: RE: RE: RE: incontinências da aurora

Admito vários ritmos, mas o que assinalava era o ritmo que o próprio blog pede, independentemente das contingências de cada um. Os mesmos posts num ritmo menos intenso. Isto beneficiaria a exposição dos próprios posts; muitos tinham merecido mais tempo de antena.

De: ABB
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 13:14
Para: Casmurro
Assunto: RE: RE: RE: RE: incontinências da aurora
Não me parece inexorável que os posts mais antigos desapareçam: estão lá, podem ser lidos e acho que muitos os vão lendo ou procurar. Por outro lado, querer dar mais tempo a alguns posts é que pode ir contra a natureza do blogue, que deve ser ágil, actualizado com muita frequência, variado, rico, etc. Se se abre a página e o mesmo post permanece à cabeça muito tempo, o blog esfria. Acho que foi preciso nestas duas primeiras semanas acumular muito material, tornar isto movimentado. Que isso sacrifique algumas prosas, que perecem ou passam despercebidas, é inevitável. O conflito dá-se, aqui como noutros lados, entre a série e a sua velocidade, por um lado, e os átomos de que se compõe, por outro.

De: MP
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 15:40
Para: Casmurro
Assunto: RE: RE: RE: RE: RE: incontinências da aurora

Concordo com o Sr Baptista. E acho também que o frenesi de postar (longos ou curtos) não tem nada de grave... A alternância na extensão dos textos, nos tons e nas séries só torna o Casmurro mais casmurro. Acho que não nos devemos sentir obrigados a publicar a um ritmo constante. Proponho uma divisa paradoxal: ocioso, frenético, errático, epigramático e prolixo (a juntar à do Groucho, pobre coitado). Também acho bem a ideia de continuar as séries a partir do ponto anterior. Pelas minhas contas o número de posts variou entre os 7 e os 15 por dia: é vitalidade a mais, e é assim que deve ser, bute aí.

De: HCM
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 6:06 PM
Para: Casmurro
Assunto: OH...

Só espero que seja brincadeira! Confesso que às vezes o tempo não abunda, o que dificulta a leitura dos posts mais longos, mas é um prazer imenso ler-vos.

De: Groucho
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 18:14
Para: HCM
Assunto: Re: OH...

Prezada H
Encarregam-me os cavalheiros de agradecer a sua mensagem tão simpática e de esclarecer que, com efeito, foi brincadeira, como bem suspeitou. São uns rapazolas, mas não fazem por mal. Atentamente,
Groucho.

alfabeto manual

Um dia no Casmurro, 1 (que blogro é este?)

25 de Junho amanheceu quente e tranquilo. Nada fazia prever o tumulto na redacção. Cheguei por volta das oito, como é meu hábito, e quando abri a caixa do correio saltaram dezenas de mensagens, cabeça de palhaço de ponta e mola. Confesso que não estava preparado, embora o silêncio atroador das 24 horas anteriores devesse ter parecido premonitório mesmo a um áugure surdo e desprovido de dons naturais. Faltou-me o ar. Agora que penso nisso, percebo melhor o abalo que me levou a banhos. O Sr. Oliveira, o Sr. Baptista e o Sr. Silvestre que me perdoem, mas isto não se faz. Nenhuma noite na ópera e nenhum dia nas corridas me poderiam ter preparado para um dia no Casmurro. Com a minha idade, um choque destes. Só o duche escocês me tem aliviado a lombalgia. Rememoro esse dia funesto apenas a bem da psicoterapia, por conselho do Dr. Lumbago, adepto de «emplastros mentais», e para benefício dos queridos leitores, para que conheçam melhor o ambiente de trabalho maníaco-opressivo destes dexistencialistas. Lede, lede, lede, e compadecei-vos do meu destino de sofismador em contrato de leasing acelerado e sem seguro de vida. Começo in medias res, como manda o grande Hor Ácio, mas depois tudo se recompõe e se reordena. Conto com a vossa discrição: tudo isto é escrito em voz baixa e é só para os vossos olhos. A minha sorte está nas vossas mãos.


De: MF
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 1:00 AM
Para: Casmurro
Assunto: Encerramento
Caros Casmurros,
terei de concordar convosco que o motivo do encerramento do vosso blog é, de facto, contraditório. É com espanto, denunciando também, talvez, ingenuidade, que descubro que afinal pretendiam ser lidos... E eu que andei a ler-vos à socapa, temendo ser descoberta e considerada intrusa. Afinal, lembro-me de ter lido há já algum tempo que o vosso blog era um espaço reservado... rezava o vosso primeiro post: "o clube dos sete".
Autorizava esta minha interpretação o facto de o blogcasmurro não permitir comentários e de não ter, sequer, um contador de visitas que vos desse conta da adesão do público. Contradições... Mas, se o motivo do encerramento é, de facto, o exposto, talvez devessem rever a vossa posição: há quem vos leia! Vá lá, não sejam casmurros...

De: MP
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 22:13
Para: Casmurro
Assunto: Re: Re: Contradição performativa
Pelos vistos, o Casmurro está em greve de zelo até ao fim do dia. Estive sem aparecer desde ontem e que azáfama pràqui vai. Que frenesim na redacção!!! Eu a foçar todo o dia e estes gajos a dar ao dedo e a pintar a manta... Escreve, não-escreve, lê, não-lê, que drama, que blogro!...

De: OMS
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 21:32
Para: Casmurro
Assunto: Re: Contradição performativa

Na frase que enviou aos casmurros, falta a sequência: «Por essa razão, e contrariando os nossos mais íntimos propósitos, decidimos adiar o fecho deste clube de casmurros para uma ocasião menos próxima».

De: HB
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 21:09
Para: Casmurro
Assunto: Não escrevem mais?

Não escrevem mais? Como assim, não escrevem mais? Publicidade enganosa, hein? Isso não se faz. Estou a coleccionar as lições de retórica do Sr. Groucho e por momentos vi a vida a andar para trás...
E que tal os caderninhos de Poética do Sr.Groucho? Isso é que era, oh se era...

De: IM
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 8:39 PM
Para: Casmurro
Assunto: fiquem!!!
Foram-se mesmo embora??? Mas eu leio... todos os dias...

De: LCC
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 8:29 PM
Para: Casmurro
Assunto: ah, não!
Ah, não! O quê????? Não escrever mais????? Mas acabei de descobrir hoje que vocês existem!!!!

De: ABB
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 6:12 PM
Para: Casmurro
Assunto: Importante!

Atenção, meus caros:
Às 20 horas -- hora de Lisboa, que me desculpem os de Coimbra -- será postado o texto que anuncia que não escrevemos mais. À meia-noite, o Sr. Silvestre postará o contratexto anunciando que afinal escrevemos mais. Atenção, que isto agora é que é importante: nesse intervalo, ninguém posta nada. OK?

De: ABB
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 11:20
Para: Casmurro
Assunto: Contradição performativa

Eis a proposta definitiva do nosso último anúncio. A ideia é postar hoje, pelo que se agradece celeridade na reacção interna.
«Descobrimos agora — o espanto denunciando a ingenuidade — que ninguém lê isto. Os poucos que restavam foram-se embora ontem: demasiado idiossincrático, segundo uns; muito pouco sério, segundo outros; que levavam mais tempo a ler que nós a escrever, diziam todos. Já que assim é, não escrevemos mais. Ainda hão-de querer e não ter, seus ingratos.
Os Casmurros»

28 junho 2005

Vermeer, a leiteira

engoliu a saliva, contraiu os lábios, respirou fundo

engoliu a saliva, contraiu os lábios, respirou fundo. uma aguda consciência do espaço interior da sua própria boca precedia sempre a entrada para o consultório. a língua traçava e retraçava a forma dos dentes, antecipando o movimento manual do destartarizador metálico e a rotação eléctrica da escova. não estava nervosa. as mãos suavam ligeiramente. pelas suas contas, deveria ser a próxima a entrar. inexplicavelmente, não se conseguia concentrar na leitura. fechou o livro e leu, distraidamente, a nota da contracapa:

Em negrume, Sam Brackett (1964-2005) leva a auto-alienação ao limite. Brackett talvez peça demais, por isso está sempre na fronteira da loucura. Alguns dos seus fragmentos são quase insuportáveis. A impossibilidade de existir como se imagina que seria possível existir não se deve apenas àquilo que constrange os indivíduos de fora, mas deve-se sobretudo àquilo que os constrange de dentro: a morte que transportam consigo e o mal que fazem a si mesmos e aos outros. Toda a sua escrita se alimenta desta contradição entre a natureza essencial da humanidade e o desejo imaginário de ser ou de ter sido ou de vir a ser. É como se a linguagem servisse apenas para agravar o sofrimento humano e tornar ainda mais palpável a sua condição solitária e vegetativa. Como se os seres humanos não se conseguissem nunca verdadeiramente tocar, mas apenas ferir-se e mutilar-se mutuamente. E quando dão por si já os vermes os ceifaram. A revolta de Brackett contra o destino biológico parece ser também contra a linguagem, que é ao mesmo tempo o instrumento da dor que se inflige e da dor que se sofre. A linguagem transforma homens e mulheres em carrascos e vítimas da natureza que transportam dentro de si. Mas talvez isto seja uma leitura demasiado negra de negrume. Há apesar de tudo redenção no inteligir a ininteligibilidade, como afirmou certo dia Estevão Andorinha.

post

estrutural

post

feminismo

post

colonial

post

modernismo

Another [I. Pedrosa] clone?

Caro Groucho,
Em S. Pedro do Sul, presumo, o que muito nos favorece já que as colónias termais cá da terra são um dos poucos dados de civilização de que nos podemos fazer valer. De resto, a barbárie espreita (espreita-nos) por todo o lado. Assim fossem tão bem comportadas as fronteiras entre civilização e barbárie - recorde-se do adágio de Benjamin: não há registo de civilização que não seja em simultâneo um registo de barbárie (parafraseando de memória).
Nunca foram tão bárbaros os civilizados cá do burgo, tão sem cerimónia, tão sem reserva ou comedimento (admiráveis virtudes burguesas, pois). Veja você, p.ex., que, por um destes dias (no prazenteiro fim-de-semana passado), abri a televisão e fui desfiando canais: no primeiro estava a magnífica Inês Pedrosa a perorar, no segundo estava a magnífica Inês Pedrosa a perorar, no terceiro estava a magnífica Inês Pedrosa a perorar, no quarto idem, etc., até ao infinito de uma série que só por obsolescência tecnológica não consegui captar.
Memorável o depoimento sobre a ecologia: quem lhe ensinou a fechar as torneiras lá em casa foi a filha infante (veja como são os intelectuais), a "natureza" não a seduz, nunca a seduziu, a não ser que seja "natureza humana", essa sim, dessa tudo diz, tudo pode dizer.
Igualmente memorável (em que canal?) o depoimento sobre uma peça de teatro à volta de uma grávida em monólogo: assinalei o seu rebarbativo entusiasmo pela tal da natureza humana, suas hesitações, antecipações, depressões.
Depois deixei de ouvir.
O que me fascinou, ou melhor, intrigou, é que a senhora Pedrosa estava a falar em todos os canais e, veja bem, em directo! Ou seja, para cenário de horror, nem o Edgar A. Poe faria melhor com a sua atracção fatal e oitocentista por duplos. Sabe, meu caro Groucho, o gótico está em todo o lado. Dir-se-ia que estamos perante um exemplo empiricamente denso do que chamaria de "A idade da Reprodução Clónica". Recorde-se da sua fraternal e extraordinária amiga performer, Laurie Anderson, "Another [I. Pedrosa] clone?".
Termais cumprimentos e bom regresso.

27 junho 2005

Groucho Bar

tocámos a pista às 17h47

tocámos a pista às 17h47, hora local. o voo estava dentro do horário previsto. trouxe o carrinho até ao cais do comboio do terminal 2. à saída do túnel, soube-me bem voltar ver a silhueta da cidade. por onde já não passava desde o Verão passado. telhados, paredes, portas, janelas das casas desfilavam em planos sucessivos e a velocidades variáveis. como se se desintegrassem para de novo coalescerem nos edifícios de que faziam parte. o castanho escuro, o cinzento e o ocre dos tijolos entrecortados pelos verdes das árvores. ao abrandar, as catenárias pareciam marcar os limites dos fotogramas da projecção que ocorria para lá da janela, iluminada pelo sol baixo do final da tarde. saí na Estação Central. o largo e a avenida pareceram-me imediatamente familiares. retirando o cartão que trazia na carteira, confirmei a morada. «please, take me to this address.» não era longe do centro da cidade. à medida que o táxi avançava, num trajecto perpendicular aos canais, a minha atenção fixava-se nas fachadas dos edifícios, nos néons e nos muitos tróleis que enchiam de cor as filas de trânsito. um dos desenhos intermitentes fixou a minha atenção enquanto esperávamos a abertura do semáforo. por detrás das pessoas que, na esquina, atravessavam a rua apressadamente, vislumbrei inadvertidamente o Groucho Bar, onde no dia seguinte tinha encontro marcado. a minha atenção deambulou depois ao acaso até chegar a casa.

coração

bocejou pela terceira vez

bocejou pela terceira vez. tocava-se já a última peça do concerto dessa noite. o cansaço do dia acumulava-se. o terceiro andamento do concerto em Fá Maior, na primeira parte, fora o único momento em que saíra do torpor que lhe tomara conta dos membros e dos sentidos, praticamente desde que se sentara no lugar, K23. entrara na sala dez minutos antes do início. no palco, fortemente iluminado, já estava toda a orquestra. abriram-lhe os ouvidos, aqueles minutos de afinação. sentir novo chão debaixo dos pés. como se só agora tivesse aterrado. a percepção do real sempre atrasada. sopros e cordas, a procurarem a vibração certa, numa massa de som que ora enchia o volume da sala, ora se rarefazia e soçobrava num único instrumento. parede ainda batida pelo sol. água quente do duche. pouco mais de meia hora antes de chamar o táxi de novo. entra o primeiro violino. vénia. aplausos. de novo as cordas se tentam harmonizar. o corpo sempre adiantado. gargarejo. água de colónia. ele, que raramente se via ultrapassado pelos acontecimentos. entra, pouco depois, o maestro, que vai dirigir e estar ao piano ao mesmo tempo. «já cheguei. está tudo bem. não te preocupes. amanhã falamos. com mais calma.» percussão, sopros e piano entrecortavam num ritmo assombroso o pano sonoro das cordas. ainda mais uma chamada para atender. que compassos frenéticos. cabrão do Bráulio. «good evening, ladies and gentleman» - o maestro, sorridente, anunciava a primeira peça, descrevendo cada um dos andamentos. veremos o que sai do inquérito. trombones, timbales e pratos marcam, furiosos, aquela espécie de dança estrepitosa.

25 junho 2005

Phillips, Um Humumento: página 6

chegou antes da hora marcada

chegou antes da hora marcada. a consulta era só às onze e meia. uma coisa rotineira: destartarização, flúor, dois dedos de conversa. cáries, não havia, com certeza. a água fria às vezes causava impressão. teria de voltar a selar aquele pré-molar? deixara o Tiago no infantário às dez. não valia a pena voltar a casa. caminhar um bocado. um café. depois a consulta. abriu o livro que começara a ler ontem à noite. um texto saído em 2002 ou 2003. a Teresa é que lhe falara naquilo. não conhecia o autor. negrume, de Sam Brackett. traduzido pela primeira vez. recomeçou no fragmento 29.

frag. 29: grafofilia
Escrever não é natural, a não ser como uma espécie de segunda natureza que se desenvolve de modo imperceptível no centro do sistema de signos com que organizas aquilo que a linguagem te faz ser ou querer ser. É preciso arruinares o que julgas que és, o que julgas que queres ser, o que julgas que é possível ser ou querer ser. Tentas imaginar contra a gangrena que te coloniza a imaginação, o vírus da linguagem a replicar-se nas tuas células. Tentas escrever sem ser vítima dos símbolos, sem sucumbires à descrição que fazes do mundo. Escrever serve também para isso. Se se aprende a controlar, é o analgésico mais duradouro e um motor de emoções e sentimentos quase inesgotável. Permite produzir tristeza sem tristeza, alegria sem alegria, amor sem amor, raiva sem raiva, isto é, permite transformar em puros fenómenos de consciência os estados físicos e químicos do cérebro e do corpo. Por isso é tão paradoxal quando vista sob o ponto de vista biológico: tirando intensidade a tudo parece tornar tudo mais intenso. Ao tentares não transcrever o código genético com que a linguagem tenta a todo o instante reproduzir-se dentro de ti, retro-alimentas apenas o circuito cortical-subcortical. Submetes-te ao poder da sintaxe, na vã esperança de abrires uma brecha por onde se possa respirar. Espreitar. Pôr a cabeça de fora da cabeça. Comer a letra.

Freud, homem nu, vista de trás

David acabara de entrar na sala

David acabara de entrar na sala e colocara o quadro sobre o sofá, diante de Juca. que lhe deu uma vista de olhos, quase sem se deter, enchendo o copo ao mesmo tempo. era uma decepção. talvez pelo excesso de expectativa. rectângulo preto, rectângulo vermelho, tela branca. os limões a rolar no passeio. não conseguia encontrar na pura exterioridade daquela obra a ressonância simbólica que estava habituado a consumir em casa dos seus clientes. além disso, 80 por 80 cm pareciam-lhe dimensões irrisórias. não duvidava, todavia, de que continuaria a valorizar-se a uma taxa anual superior aos melhores papéis. «a really valuable asset, Djuca» - comentou David Lot. «and a great painting too» - acrescentou Keith, que tinha acabado de escrever um paper para o seminário de pintura modernista de John Russell. Juca mexeu as pedras de gelo. «oh yes, i’m sure this was a good move. somehow you have to stop the money from vanishing.» uma alusão que David e Keith apenas puderam adivinhar. David estava vagamente ao corrente de um golpe financeiro de contornos imprecisos, que trouxera Juca ao seu encontro. uma comissão de cinco por cento numa transacção daquelas era informação bastante. «A certain Mr Gaspah wants to speak to you» - Keith a passar-lhe o telefone, já lá iam umas semanas.

23 junho 2005

Tudo muito injusto

Em Ceilão, um jovem de bicicleta cruza-se comigo a toda a velocidade. Um minuto depois, com a bicicleta à mão, já estava junto a mim, "poor boy, no money". Tinha uma bicicleta nova em folha, maravilhosa, com mudança de velocidades e tudo. E era bem parecido, jovem, entusiasta. Fiquei muito contente de poder ajudá-lo.
Se eu ao menos pudesse um dia mendigar de automóvel e encontrar uma alma compassiva...
Henri Michaux, Un Barbare en Asie

21 junho 2005

O chapéu do senhor Malinowski

O herói fundador de uma disciplina pretensamente científica seria afinal, e tão-só, um magnífico comediante. Refiro-me ao inefável Malinowski, o Conrad da antropologia. Em 1930, Malinowski escrevia a Russell nos seguintes termos:
"Caro Russell
Na ocasião da minha visita à sua Escola, deixei o meu único chapéu castanho apresentável na sua sala de visitas. Interrogo-me se desde então terá tido o privilégio de cobrir os únicos miolos em Inglaterra que eu, sem relutância, julgo melhores que os meus; ou será que foi utilizado em algumas experiências juvenis de física, tecnologia, arte dramática, ou simbolismo pré-histórico; ou será que naturalmente desapareceu da sala.
Se nenhum destes eventos, ou deveríamos chamar-lhes antes hipóteses, se verificam ou tiveram lugar, poderá ter a amabilidade de mo trazer embrulhado numa folha de papel pardo ou de outro modo resguardado para Londres e avisar-me por postal de modo a poder reclamá-lo?
Lamento que a minha distracção, que é característica de uma alta inteligência, o tenha exposto a toda a inconveniência incidental ao acontecimento.
Espero revê-lo muito em breve. Sinceramente, B. Malinowski."
Como diria o mestre Groucho, não se desvie nunca do acidente. Pode ser que, equivocamente, ainda venha a constituir um credo com um gordo contingente de crédulos: sérios e aprumados, como convém. Aproveite, pois, enquanto se não vê o impostor de intenções escusas que você é!

A fronteira

A fronteira é invisível, mas uma vez atravessada nada nos reconduzirá ao lugar abandonado. V. Kafka, Conrad, Bowles.

Harpo-Kraus

- Carríssimo Groucho, leu o senhor Drummond via senhor Abel afirmar as qualidades acidentais do amor?
- Sim, e não fiquei nada convencido!
- Mas gosta que o convençam?
- Sim, muito, mas, regra geral, ninguém o consegue. Só o Harpo, que é um fervoroso adepto do Karl Kraus.
- Do Kraus? Como assim? Sempre o achei pouco dado à acidez.
- Sim, de facto, ele não sofre de tal maleita. Mas veja como ele persegue as raparigas. Deixa-as passar primeiro, e depois segue-lhes no encalço com uma determinação retórica pouco vista e muito apreciada. Quando lhe perguntei a razão de tal gesto, ele simplesmente levou a mão ao bolso e pediu de empréstimo um aforismo do Kraus rabiscado num miserável papel que por ali andaria há anos e que teria certamente o poder de um taslismã: "No amor, o anfitrião é o que deixa o outro passar primeiro". Aliás, ele anda cheio de aforismos do Kraus nos bolsos, e dispara com o homem sempre que pode. Sabe-se lá porquê.
- Terá ele carta de condução?
- Não, mas conduz.
- Gosta pois de máquinas que representam sem concessões o lado nocturno da técnica?
- É esse o ponto, já que me ofereceu em tempos um papelote com o Kraus que o enuncia muito claramente: "A técnica: automóvel no verdadeiro sentido da palavra. Uma coisa que se movimenta não apenas sem cavalos mas também sem pessoas. O motorista ligou o motor à manivela e foi atropelado pelo carro. E assim se vai continuando."
- Essa mania do Kraus parece-me em desuso. Tudo muito datado, não?
- Sim, concordo, o Harpo é muito dado ao bolor de Viena. Mas capitaliza persuasões, sempre que quer. Pelo menos comigo. Seja como for, já lhe recomendei o meu "dicionário de Soundbytes".

20 junho 2005

Hockney, Arnold, David, Peter, Lisa e Little Diana

saltaram os três para a água

saltaram os três para a água. João, Tiago e Sara. uma última vez, antes que o professor os fizesse mergulhar passando pelo arco, exercício com que costumava acabar a aula. era um chape chape contínuo, com as vogais a surfarem em todas as direcções. «aaaaahhhh! eeeeeehhhhhhhh! oh! oah oaehhh! eiiiih! oooaaahhhiii!», «espeeeera, João, espeeeera», «aaaaahhhh! eeeeeeiiiiiiaaaahhhhhhhh! oh! oah oaehhh! eiiiih! oooaaahhhiii!» «Tiago, tens de fazer assim. olha. os braços bem esticados. só mais uma vez.» o Tiago batia os pés energicamente e avançava, com os dois braços agarrados à prancha e a cabeça para baixo, para a última volta à piscina. só quem estivesse do lado de dentro das portas de vidro conseguia ouvir a algazarra das vinte e três crianças que, àquela hora, acabavam a aula das 18 e 15. do lado de fora dos painéis de vidro que cercavam o tanque, era mais forte o ruído abafado da música do ginásio, martelando no piso de cima. os sons da água agitada e das vozes que se seguiam aos primeiros pulos e braçadas, e a reverberação de tudo isto nas paredes e no tecto, eram a singular e inesgotável orquestração da alegria do mundo. ar e água misturavam-se fortíssimos e inconfundíveis, oscilação aleatória golfando também na voz e na respiração, antes que o ritmo disciplinado dos percursos e dos exercícios sossegasse o frenesim aquático. o cheiro a cloro parecia-lhe hoje menos forte do que o habitual. o branco das lâmpadas fazia sobressair o azul do revestimento do tanque quase como se estivesse lá fora ao ar livre. mães e pais alinhavam-se no corredor de acesso aos balneários. alguns, de roupão na mão, aguardavam para levar os filhos ao duche. aí vem ele, sempre a correr. hoje era dia de ter vindo com o pai.

19 junho 2005

Grosz, eclipse do sol

ocupou o lugar 5H

ocupou o lugar 5H. preferia sempre a janela. antecipara a viagem, uma semana depois de saber que a sua actividade dos últimos dois anos ia voltar a estar nas páginas dos jornais a partir de quinta-feira, informação que lhe chegara, de fonte segura, directamente da redacção do jornal que investigava o caso há cerca de três meses. caso que, a seu ver, não passava de mais uma tempestade num copo de água. depois de cinco anos a trabalhar com as carteiras de títulos de um principais bancos, o ciclo de produção de notícias era-lhe bastante familiar. especulação para vender papéis. nem o seu livro os tinha demovido. enquanto se ganha e se dá a ganhar, nada transparece. chegam as perdas, e o cerco começa a apertar-se. notícias políticas ou financeiras, a engrenagem parecia ser exactamente a mesma. os inimigos brotam como cogumelos no sopé húmido e sombrio da encosta, cercando o tronco da árvore. sabia os riscos que corria e por isso decidira não se sujeitar a meses de ameaças e chantagens, cuja natureza os últimos dias lhe tinham permitido antever com bastante precisão. que brutalidade, meu Deus! o avião fazia-se à pista. Juca ajustou o cinto e abriu o livro que trouxera consigo. na pressa com que fizera as malas, nem se dera conta do volume que enfiara na bagagem de mão. os poemas da minha vida, escolhidos pelo Rato Mickey. abriu ao acaso e leu, na página 27, «scripta volant» de Alvor Preto (1964-1999):

escutar o verme que me corrói
mantê-lo a funcionar mais vezes seguidas
e durante mais tempo
como o fogo dentro de um motor a trabalhar
deixá-lo ser levado pela linguagem
seguir os fios do pensamento até estes se quebrarem
no paradoxo que se instala no seio da razão
seguir a teia da linguagem
até ao lugar onde a emoção ainda não existe
segui-la até à forja
que é uma forja ao contrário
onde a criação vem depois do objecto temperado
e apenas se compreende ao olhar para trás
que o processo é a fonte do processo
escrever sem saber aonde chegar
uma estátua de sal


devia ter trazido outro livro, pensou. terminara a subida, e anunciava-se uma refeição ligeira. não comia desde as sete da manhã.

17 junho 2005

estava na hora de ir buscar a criança

estava na hora de ir buscar a criança. acabou de comer a maçã já no elevador. um copo de água. a carteira. as chaves. o estacionamento abrasava àquela hora. o carro, agora sem a sombra do prédio, irradiava as ondas de calor. o pensamento, como os gestos, um sempre a seguir ao outro. o cansaço, que lhe parecia mais um reflexo do asfalto quente, embotava-lhe os sentidos. quase consciente da coreografia quotidiana, accionou o controlo remoto, abriu a porta, e observou com estranha minúcia os movimentos com que se apoderava do assento do carro, uma perna a seguir à outra, os joelhos a juntarem-se para se ajustar ao banco, o gesto de puxar e fixar o cinto, uma mão no volante, outra na alavanca das mudanças, uma perna sempre mais esticada do que a outra, quando rodava a chave na ignição, quando carregava no pedal da embraiagem, quando fixava o retrovisor. o próprio sufoco parecia automatizado. não pôde deixar de quase notar o desfasamento que havia sempre em tudo isto: ora percebendo antes dos gestos, como que antecipando os reflexos musculares, ora percebendo depois dos gestos, descrevendo-os para si mesma, catadupa de recordações de curta duração sempre a gerar novos registos. espécie de gps que em vez de descrever a sua posição a gerava, produzindo as coordenadas que triangulavam os movimentos relativos da mecânica corporal e os movimentos desta no mapa do mundo. a chama do sol no braço esquerdo. o primeiro semáforo vermelho.

van Eyck, Adão e Eva

16 junho 2005

Vá à ópera!

- Amigo Groucho, recordar-se-á por certo da máxima atribuída a Adorno, segundo creio, de que andar distraído é ver o essencial, não?
- Trata-se de um apócrifo ou de uma sobre-interpretação já que o Adorno nunca se distraía. Dir-se-ia que a coisa é antes do Benjamin, esse era sem dúvida um grande distraído. Aliás, o fragmento como procedimento metodológico é um talento de distraídos e de melancólicos. Nada que me diga respeito. O meu magistério exige o contrário de tudo isso: concentração absoluta de forma a manietar o adversário, a consumi-lo, sublinhe-se. Tréguas é que não, e de espécie alguma. Os distraídos arriscam-se a levar por tabela. Eu e o Adorno, estamos bem um para o outro. Electivamente?
- Bem, concordo consigo. Não tenho carta de condução, como sabe. "Aversão profunda à promiscuidade", diz ali o Sr. Abel. Razão cautelar do distraído para quem já lhe chega a profusão de acidentes com consequências diabólicas que o cercam cada vez que se distrai, diria eu.
- Não tema os acidentes. Eles são a única porta de saída. Não é o essencial que você tanto ama que importa salvar. Antes as consequências não ponderadas do acidente. Uma verdadeira cultura da irresponsabilidade é o que nos prende à vida e, já agora, à arte. Sem isso, meu amigo, não passamos de ouriços a jogar espinhosamente à retranca.
- Ora nem mais! Sabia que o Virilio projectou um "museu do acidente"?
- Não, não sabia. Deve ser difícil arranjar critérios museológicos válidos para tal coisa, não? Pôr a vida (holisticamente considerada) num museu?
- Improvável tarefa, certamente! Hoje por pouco não era atropelado. Vinha com um bebé. E fui depois insultado. Chamaram-me "pai", o que apreciei. Apreciei menos o mimo de "mau pai".
- Responde-lhe um mestre em truísmos: não se distraia, esqueça o essencial, vá à ópera!

15 junho 2005

de Hooch, pátio

«cherry stones have to be taken out first»

«cherry stones have to be taken out first. eight pounds of cherries. four pounds of sugar. just let it boil for a while. not too long» - explicava David Lot, de avental diante do fogão. o Keith abrira-me a porta quando cheguei. «hi, Djuca, good to see you. please, come in. David’s in the kitchen». não contavam comigo tão cedo. o cheiro da compota chegava à entrada. «yes, i like the smell, it’s kind of bittersweet, don’t you think?» -disse ele. eu estava ansioso para pôr os olhos no quadro. David, nas calmas, despejava o doce do tacho para quatro boiões alinhados na banca. «so, what’s up Djuca? are you OK?» - ainda de costas para mim. «everything’s fine, yes, better than i expected, you know.» ele a lamber a compota que escorria pelo bordo dos frascos. de repente, os ramos da cerejeira a vergarem sob o peso das cerejas. era só esticar o braço e puxá-las, aos pares. as mais maduras a tintarem-me os dedos. pareceu-me reconhecer a canção que se ouvia em fundo, vinda da sala. «now i’m older my heart colder.» Arcade Fire, talvez.

A elegia e o podre

Adepto de nomadismos, de um tempo lento, de despojos, do que é afinal sem uso, reconheço a minha casmurrice: não tenho sequer carta de condução, mas gosto de máquinas, e sobretudo de caminhar ao longo de longuíssimas e impraticáveis estradas.
Vivo do outro lado do rio de uma cidade que recorta a sua sombra maligna sobre a tela azul de um céu que tem sido sempre de verão desde que me proponho caminhar por esta estrada que, inevitavelmente, tem o nome de uma mulher assassinada por razões de Estado, ou melhor, assassinada porque (segundo a mitografia) as razões de Estado se sobrepõem sempre às razões de sangue. Aqui tudo nos reconduz a Maquiavel e a Shakespeare. Nada melhor do que a tragédia de um nome para acentuar a gravidade de uma aporia que me persegue enquanto caminho: distância e proximidade.
Caminho ao longo da estrada e o que vejo ninguém vê: despojos do consumo esplendem ao sol e metamorfoseiam-se em ruínas que gostaria de descrever em detalhe. Mas, para já, contento-me com a elegia e com o podre que torna tais ruínas objectos de pensamento (voláteis objectos de pensamento, dir-se-ia).
Ninguém vê o que vejo ou a densidade do que se acerca veloz: automóveis circulam e lançam sobre mim brilhos mercuriais, intensidades sem resgate. Há aí um desejo de violência e morte. Uma vontade de fins que me parece estranhamente salutar. Talvez tudo venha a acabar num fatal acidente tecnológico. Penso nisto enquanto caminho.
Declaração de proximidade e distância em relação a este tempo em que o etnógrafo ocupa uma posição liminar, isto é, betwixt and between. Sim, há muito a aprender com Victor Turner. Mas também com Walser, Ballard, e Virilio.

14 junho 2005

Sherman, páginas centrais

com nove passos atravessou a sala

com nove passos atravessou a sala. sentiu o fole dos pulmões engolir o ar. coada pela vidraça, que rasgava a parede de alto a baixo, a luz amarelada do sol de Junho incidia sobre a axila recém-depilada. o braço, flectido, elevava-se um pouco acima da cabeça, a mão apoiava-se na parede. ângulos cuja relação relativa era difícil de desenhar com exactidão. inclinação a escavar o espaço. «nem sequer me despedi» - disse. «mas já falaste com ele?» - foi o que lhe pareceu ouvir. «nem sei para onde foi» - respondeu, afastando-se da parede. a silhueta surgia agora a contraluz, aproximando-se do centro da vidraça. uma cólica contraiu-lhe o abdómen, pela segunda vez nessa tarde.

Verdades caseiras

If we wanted home truths, we should have stayed at home.
Clifford Geertz, Anti anti-relativism


Com tanto caravelismo e ecuménicos abraços à solta, parece que a suspensão de juízos acerca de jogos de linguagem alheios se tornou, ironicamente, fonte de inquietação no presente. Inquietação que percorre os ditirambos do cardeal tornado agora papa e dos seus prosélitos lusos ou outros. Inquietação de humanistas, dir-me-ão. Mas parece-me também evidente que a modernidade é o legado não dos humanistas do século XVI, mas dos racionalistas do século XVII. Ou seja, a modernidade começa quando Montaigne é substituído por Descartes.
Que humanismo é este que fala da ditadura do relativismo e consagra as consabidas "verdades" nas quais fomos navegando em mares de barbárie jamais navegados? Não será por certo uma fraterna e tranquila homenagem aos canibais como aquela que encontramos nos Ensaios, mas antes uma ferramenta com a qual fazemos coisas. Importa descrevê-las, identificá-las. Continuar a descrevê-las e a identificá-las. É isso que os antropólogos (talvez os únicos verdadeiros herdeiros de Montaigne, hoje) fazem através de formas de "antropologia simétrica", como lhe chamou há uns anos Bruno Latour, que consistem em etnografar os modos em que se desdobram as racionalidades euro-americanas na prática: etnografamos, por exemplo, laboratórios de ciência (e isso não é heterodoxia, mas tão-só uma forma de "ciência normal"). Darei notícia disso aqui, motive-me q.b. a desinformação generalizada e a hipocrisia epistémica (entre outras) que por aí andam.

13 junho 2005

Malevitch, composição

tac, tactac: um, doistrês limões

tac, tactac: um, doistrês limões mesmo à minha frente. caíam da árvore instantes antes de as nossas trajectórias se cruzarem. o maior ainda rolava no passeio quando passei por ele. resisti ao súbito impulso para o apanhar e morder. o pé de camurça castanha a desviar-se da casca amarela. umdois carros. pássaros. a casa de David Lot já se via ao virar a esquina. ia chegar antes da hora marcada, mas estava ansioso para ver a obra que ele arrematara para mim, poucas semanas antes desta embrulhada toda. que sorte do caraças. atravessar assim o começo da tarde. com 17 milhões de dólares suprematistas. ali à minha espera.

12 junho 2005

«era cedo ainda quando cheguei a casa»

«era cedo ainda quando cheguei a casa» - disse, cerca de 7 horas depois, ao ser contactado pelo telefone pela editora do noticiário das 23h, que se preparava para o pôr no ar em directo. acedera a responder a algumas perguntas apenas porque Augusta Conceição era uma velha amiga. impusera apenas como condição não haver qualquer referência ao seu paradeiro final. que o voo se destinava a Frankfurt era o único rasto que queria deixar. «já sabe que o presidente do banco acabou de pedir a demissão?» - disparou Augusta assim que o sinal entrou no ar. «não, isso é novidade para mim» - respondeu Juca Gaspar. «Bráulio Boavida alegou, na sua declaração de demissão, que a extensão das perdas era muito maior do que se imaginara. tem algum comentário a fazer?» Juca respondeu secamente, sem hesitar: «a extensão das perdas é sempre maior do que se pode imaginar, mas porque não referiu ele a extensão dos ganhos?» - uma ligeira irritação, que não deixou de ser captada pelos ouvidos mais atentos, marcou a pequena inflexão final.

Escher, outro mundo

«fora do cão, o livro. dentro do cão, o escuro»

«fora do cão, o livro. dentro do cão, o escuro» - declarou, enigmático, antes de se dirigir para a porta 22 em direcção ao A310. para frustração dos repórteres que se acotovelavam à entrada da sala de embarque, e que nem chegaram a ligar os gravadores, limitando-se a rabiscar. enquanto os fotógrafos, boquiabertos, percebiam que poucos flashes tinham chegado a disparar. havia mesmo quem não tivesse ainda tirado a câmara do saco. malograva-se assim a tentativa de documentarem a anunciada partida para o exílio de Juca Gaspar, corretor recentemente caído em desgraça, não sem antes publicar o best-seller Índice Volátil: Memórias de um Corretor - «para que todos fiquem a saber porque decidi tomar este voo», declarara dias antes à Gazeta Financeira.