02 março 2006

Casa de férias 6, variação



Sala às escuras, iluminada apenas pela luz de fora que entra pela janela. Bebem licor. Olham sempre para a janela, nunca um para o outro.
- Ouça... (pausa) Aquela coisa do poema não é para levar a sério.
- Ora, Groucho, deixe-se disso.
- Mas deixo-me disso porquê? Porque não me levou logo a sério ou porque...
- (interrompendo) Porque isso não interessa coisa nenhuma, se você se levou a sério ou não. Quando muito interessará numa alínea qualquer da psicologia da criação...
- ... ou da ilusão da criação...
- ... mas o que interessa é o que ficou escrito, e isso já não é nada consigo. Só com quem lê.
- Não é meu?
- Para algumas coisas laterais e civis, digamos assim, seria sem dúvida seu. Para o que interessa a quem lê, passou através de si, pouco mais.
- Mas ter passado através do Vergílio Ferreira não é a mesma coisa que ter passado através de outro, pois não?
— Não, seguramente não. (pausa) Coloque a hipótese de que «passar através de» dará o mesmo resultado que transcrever uma música para outros instrumentos ou outro tipo de agrupamentos.
— Hipótese perigosa, Sr. Mourão. Entrevejo uma origem metafísica, um uno, o um, qualquer coisa por esses lados... Nunca ouvi tal coisa no clube...
— Nem o ouvirá de mim, Groucho. Transcreve-se as coisas como são, e tudo o que sabemos do como está nas várias transcrições. Mas sobretudo, sublinhe coisas.
— Pluralidade irredutível...
— E estúpida alegre angustiante enigmática fascinante, essa treta toda até ao fim dos confins e ainda mais para lá... Bom, respira-se melhor assim, enquanto valer a pena respirar.
— O licor é bom...
— E a noite vai de feição, Groucho. Já viu o silêncio que há no prédio?