21 fevereiro 2006

Multiplex 3 (take 1)


— Menos comentários desta vez, Groucho?
— Só mesmo à saída, uma senhora muito alta e indignada, dizendo ao marido: «É indecente, ele devia ter sido castigado!».
— Difícil aceitar a roleta russo da existência...
— Não me diga que também acha que o filme é mesmo sobre a sorte ou o azar de um match-point?
— Que ele quer vencer, é claro, mas em que a sorte ajuda bastante. Mas já vejo que tem outra leitura.
— É verdade que ele vence, mas não sei se aquele ponto é de match ou apenas de partida.
— Mas o título, Groucho...
— Pois... Mas veja bem a última cena, todos reunidos em torno do novo bebé, e ele de fora, como que separado de tudo.
— Remorsos, mas com dinheiro à vista, diria eu.
— Dostoievskiano, prefiro eu dizer. A cena mais dostoievskiana de todas, mais do que aquele diálogo com os fantasmas dos mortos saído directamente do Crime e Castigo.
— Não percebo.
— A grande descoberta de Dostoievski, Sr. Mourão, é a de que os remorsos ou a culpa nos separam de tudo, nos emparedam dentro das nossas pobres categorias. Não é uma questão de bem e mal, é uma questão de não haver terreno comum que permita que nos possamos reconhecer. Ele ganhou, e por isso mesmo perdeu, não pode partilhar com ninguém o que fez, não pode aspirar a que ninguém o reconheça naquilo que fez.
— Vive num inferno, quer você dizer.
— Quero dizer que o inferno é isso e nada mais que isso. E que a roleta russa não é para aqui chamada.
— E disse isso à senhora muito alta e indignada, como você lhe chamou?
— Não, deixá-la primeiro aprender a roleta russa, esta conversa só pode vir depois.