Desdobrando a adivinha
Caro Senhor
Abel Barros Baptista:
Agora que todo este episódio chegou a bom termo, permita-me, não que tente adivinhar a sua adivinha, mas que a desdobre para começar a pensar. Caso em que ponho à sua consideração este outro exemplo, outro porque diferente e não mero acrescento. Trata-se de um autor que muito se baldou para as imunidades da língua — aliás, ao ponto de fazer disso uma das suas marcas autorais — mas que de repente encontra um vírus quiçá demasiado forte. Há um novo professor na aldeia, estamos a muitos anos do processo de Bolonha, and it goes like this:
"Dizia que a aprendizagem se devia fazer escrevendo logo na lousa palavras inteiras designando objectos conhecidos. Escrever por exemplo «pedra», «tijolo», «enxada», «exploração capitalista».
— É um método muito bom
era um método muito bom, as crianças entravam logo no seu mundo, uma enxada eles sabiam o que era. Mas ele tinha outro método que era o mesmo, trabalhado com palavras de impacto muito mais forte. Lá estava ele com o seu impacto, eu ouvia em cima, era uma barulheira infernal. (...)
— É muito positivo — dizia-me ele depois. — As crianças riem, como é próprio da ignorância, mas fixam logo a palavra, nunca mais a esquecem.
Eu também as não esqueci, diziam assim: «cu», «merda», «puta», «car(v)alho», «cagar», «porra», «fo...-se». Eu digo «fo...-se» com pontinhos e «car(v)alho» com um parêntese porque sou ainda um subdesenvolvido moral, mas o professor escrevia por inteiro.
— É muito positivo — dizia-me ele
e havia toda uma desmitificação a fazer dessas palavras. Achei, todavia, que a última que eu disse com pontinhos era muito forte e complicada e perguntei porque é que a ensinava, ele explicou que
— É por causa do hifen."
era um método muito bom, as crianças entravam logo no seu mundo, uma enxada eles sabiam o que era. Mas ele tinha outro método que era o mesmo, trabalhado com palavras de impacto muito mais forte. Lá estava ele com o seu impacto, eu ouvia em cima, era uma barulheira infernal. (...)
— É muito positivo — dizia-me ele depois. — As crianças riem, como é próprio da ignorância, mas fixam logo a palavra, nunca mais a esquecem.
Eu também as não esqueci, diziam assim: «cu», «merda», «puta», «car(v)alho», «cagar», «porra», «fo...-se». Eu digo «fo...-se» com pontinhos e «car(v)alho» com um parêntese porque sou ainda um subdesenvolvido moral, mas o professor escrevia por inteiro.
— É muito positivo — dizia-me ele
e havia toda uma desmitificação a fazer dessas palavras. Achei, todavia, que a última que eu disse com pontinhos era muito forte e complicada e perguntei porque é que a ensinava, ele explicou que
— É por causa do hifen."
Vergílio Ferreira, Signo Sinal, 1979, pp. 52-53
Digamos que há aqui, de facto, um problema de “hífen”, de ligação entre a permanência ou a insistência de alguma “condição humana” e a linguagem que a enuncie nas novas “condições simbólicas” em que o termo vanguarda já só quer dizer “o senhor que se segue”. Claro, terá que ser senhor, e ser reconhecido como o que se segue. Mas enquanto houver mundo, é de crer que essa abundância não nos faltará. Por outro lado, nem de vanguarda aqui se tratará, mas da linguagem que pertence a este real, tendo-lhe sempre pertencido. Esta e outras — daí o problema, se o for.
Mas pensemos.
Saudações casmurras
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