07 março 2006

1281

- De momento, o número que marcou não está disponível. Por favor, deixe a sua mensagem após o sinal.
- Groucho, sou eu outra vez. Afinal não me ligou. Ouviu a mensagem? Se calhar nem ficou gravada. Já me aconteceu, sabe? Começa-se a falar, a falar, a tentar encontrar as palavras, a sentir os silêncios, a preenchê-los, a preenchê-los, parece que quanto mais se fala mais eles aumentam e depois já não se consegue parar, fala-se, fala-se, e começa-se a repetir, a repetir, parece que não se sai do mesmo lugar. Não me diga que já não sentiu isto? Mas isso nem é o pior. O pior é que nessa ânsia de falar e de abolir o silêncio e de repetir e de encher tudo de sinais, sim, encher tudo de sinais, transformar cada palavra, cada gesto, cada objecto, num sinal, nessa ânsia de falar diz-se o que não se queria dizer, percebe? O que não se queria dizer não enquanto desconhecimento do que se queria dizer e se descobre no acto de dizer, não, nada disso, mas sim o que não se queria mesmo dizer e só a ânsia de falar e de abolir o silêncio e de repetir e de encher tudo de sinais nos leva a dizer, percebe? A palavra tem uma agenda escondida. Um inconsciente? Não, não é bem um inconsciente, porque a linguagem sabe bem o que faz. É da sua natureza. Ser assim, insidiosa, infiltrar-se. No aparelho fonador, no cérebro, nos dedos. E deitar tudo a perder. Falar através de nós. Não de uma forma mecânica, nada disso. É muito mais esperta do que isso. Começa branda e doce, ao ponto de se confundir connosco. Mas não. Está sempre à espreita. E quando damos por ela, pronto, já está, dissemos o que não queríamos dizer. É uma lógica implacável, sabe? Começa-se a falar, a falar, a tentar encontrar as palavras, a sentir os silêncios, a preenchê-los, a preenchê-los, parece que quanto mais se fala mais eles aumentam e depois já não se consegue parar, fala-se, fala-se, e começa-se a repetir, a repetir, parece que não se sai do mesmo lugar. Mas não. Avança-se, avança-se sempre. Sem saber para onde. Diga-me, isto também se passa consigo? Seria isto que eu lhe queria perguntar? Não, não era com certeza. Bom, nem sei bem o motivo da chamada. Mas ligue-me, ligue-me quando puder.