- Ó Quintais, bons olhos o vejam! Por cá, hoje?
- Uma aberta nas minhas obrigações paternais.
- Ainda bem, ainda bem. Já sabe da crise que por aqui vai?...
- O Groucho a banhos, não é? Enfim, as classes servis deixaram de o ser, que havemos nós de fazer?
- Ir sobrevivendo... Mudando de assunto. Imagine que fui ali espreitar o noticiário na RTPN e assisto a uma reportagem sobre um dicionário, supostamente acabado de sair, de expressões trasmontanas.
- E isso dá um dicionário?
- Seguramente. E se não der, dá-se um jeito, como calcula (a gente sabe bem como se inventa o objecto, não é?). Mas imagine: a jornalista vai para a rua perguntar aos indígenas o significado de palavras incluídas no dicionário. E ouve-se uma, duas palavras de facto desconhecidas por este cidadão que consigo cavaqueia. À terceira, ouve-se a rapariga (melhor: a jovem e promissora profissional da comunicação social) perguntar a um respeitável cidadão de Trás-os-Montes: «Bigorna. Sabe o que significa?»
- Bigorna? Não pode...
- Pois é. Pelos vistos é coisa que só existe por lá. Pelo menos, a jornalista assim pensa. Que me diz da amnésia tecnológica das novas gerações?
- É a lei da vida, suponho. Ainda se lembra do Spectrum? É capaz de vir a ser uma bigorna, daqui a poucos anos.
- Daqui a anos? Está muito generoso, Quintais, pois desconfio que já é bigorna há quase uma década.
- A obsolescência da cultura material – tópico obrigatório na modernidade, clivagem entre as sociedades «modernas» e as «primitivas» (muitas aspas nisto…). O Ruy Duarte de Carvalho escreve muito sobre isso, como sabe, tendo como referência o «despojamento tecnológico» dos Kuvale, para usar a expressão dele.
- Pois, mas olhe que há bigornas que nunca desaparecerão, com ou sem modernidade…
- Humm, refere-se àquela que a jovem jornalista transporta dentro do ouvido, suponho?
- Por exemplo. Não sei se a dos trasmontanos tem alguma diferença específica que justifique a sua inclusão em dicionário local… O colega, que é antropólogo, é que devia saber disto: Rio de Onor, Rio de Onor, bigornas à vista!
- Não diga a ninguém mas nunca lá pus os pés…
- Nem me diga isso… Já não há antropólogos, é o que é. Agora fazem todos trabalho de campo na urbe, e de preferência nas discotecas e bares da 24 de Julho. Compreendo-os muito bem.
- Pois, mas olhe lá: que tal era a bigorna facial da jornalista?
- Agora apanhou-me, carago…
- Olhe que no Morais, se bem me lembro, aparece como sentido figurado de bigorna…
- Só pode ser o nariz…
- Nem mais.
- Bigorna mui apresentável, a da repórter da bigorna. Mas sabe, deve ter sido lapso. Só pode. Ela devia ter acabado de ler o Houaiss, que, ao que sei, é a modos que o prontuário obrigatório dos alunos dos cursos de Comunicação Social (os da Nova, bem entendido!), e estava com a cabeça em «incude»…
- In… quê? Isso é porno-malandrice, Silvestre…
- Essa agora! Bem se vê que o meu amigo «não viu nada em Rio de Onor»… Português antigo, dicionarizado no Houaiss. Para que conste: lat. incus,údis 'bigorna'.
- E então o Silvestre sugere que a rapariga terá regionalizado incude, por não reconhecer o termo, acabando por confundi-lo (um acto falhado televisivo, género aliás abundante) com bigorna? Uma psicopatologiazinha da vida quotidiana? Complicadito…
- Nem mais, qual complicação. Bem vistas as coisas, aonde poderá haver incudes neste país senão em Trás-os-Montes? A Madeira está já acima da média europeia, o Alentejo afere-se pela tecnologia do Alqueva, o Algarve, bem vistas as coisas, nunca foi Portugal, os Açores, enfim, não admitem lá incudes, por razões de moral pública… Só mesmo Trás-os-Montes.
- Logo, o obsoleto (por exemplo, «incude») sofre um efeito de regionalização… Imaginário ou ideológico? O moderno (ou pós) não é aferível pelo regional nem pelo rural? Trás-os-Montes como «fundo de dicionário»? A capital, o Porto, Coimbra
of course, ficariam com a língua padrão e comum, as regiões com os «incudes» sobrevivos - enquanto houver Houaiss’s?
- Mais ou menos. Talvez pudéssemos equacionar a coisa assim: o espírito do mundo, incarnado na repórter da bigorna (esperemos que isto não seja materialismo grosseiro…), desconhece já a bigorna. Cuja sobrevive, enquanto signo, como «incude». Sobreviver como «incude», porém, significa sobreviver como
vetustas, efeito distintivo e tão capitalizável como a «comida típica» que a partir dos finais de 80 as elites urbanas começaram a procurar no interior – e a encontrá-la de facto lá, por efeito natural dessa procura, e só depois de tal procura a ter «produzido», ou recodificado em cozinha típica (muitas delas enfeitadas com coisas tão anciãs como incudes). Cozinha típica que aliás hoje se encontra ainda melhor nas cidades, que abundam nela.
- Logo, o «incude» é mais e melhor preservado na urbe que no campo. E lá vai Trás-os-Montes à viola de novo… Mas olhe, e que tal era o incude da repórter?
- Já respondi há pouco… Alto lá, Sr. Quintais, que detecto ranço falocêntrico na pergunta! Proponho que mudemos profilacticamente de assunto. Conhece aquele clip da Kylie Minogue realizado pelo Gondry em que ela se desmultiplica em 4? Fabulosa cantora, amigo Quintais! E perturbador contrafactual. Daqueles que não ocorrem em Trás-os-Montes…