30 junho 2005

Alvoroço no condomínio, 1

LQ – Está lá fora.
OMS – Quem?
LQ – O homem.
OMS – Qual homem?
LQ – O homem das termas.
OMS – O que é que ele quer?
LQ – Quer conversa.
OMS – O Sr Baptista que o receba. Eu tenho mais que fazer.
(Entra o Sr Baptista)
LQ – Diz que são assuntos do nosso interesse.
ABB – Quem diz?
LQ – O homem.
ABB – Qual homem?
LQ – Foda-se! que esta conversa já me chateia. Olhe, fale com o Sr Serra, que vem a chegar.
PS – O que é que se passa?
ABB – Pelos vistos, o homem diz que são assuntos do nosso interesse.
PS – Qual homem?
ABB – Isso perguntei eu.
OMS – O homem das termas, porra! Então não se vê mesmo que é o homem das termas.
PS – Quem é o homem das termas?
OMS – Ora! não querem ver?!
(Entram o Sr Portela e o Sr Oliveira)
MP – Que agitação é esta logo pela manhã?
ABB – Não é agitação nenhuma. Para começar, deixe-se de hipérboles!
FMO – Estou a ver que não dormiram bem.
OMS – Mas quem é que não dormiu bem, quem, hein?
FMO – Assim não vamos a lado nenhum.
LQ – É tudo por causa do homem.
MP – Qual homem?
LQ – O homem das termas, que está lá fora.
MP – Mas quem é o homem das termas?
PS – Foi o que eu perguntei.
(Entra o Sr Rubim)
GR – Está lá fora.
OMS – Quem? O homem. Qual homem? O homem das termas. O que é que ele quer? Quer conversa. Quem? O homem. Qual homem? O homem das termas. O que é que ele quer? Quer conversa.
GR – O que é lhe deu?! Acorda sempre assim?!
FMO – Assim não vamos a lado nenhum.
MP – Quem quer um chá?

Hogarth, pintando a musa cómica

Alvoroço no condomínio, 2

MP – Já falei com ele. E acho que é um caso sério
ABB – Mas sério como? O que vem a ser “sério”? E, aliás, se vamos por aí, o que vem a ser “caso”?
OMS – A função metalinguística não, por favor! Função por função, comecemos pela conativa.
MP – Já não se pode ter uma conversa.
FMO – É só jargão nesta botica.
LQ – Jargão e os Argot-nautas!
PS – Concentrem-se, caramba, concentrem-se!
GR – É o que eu acho: falta concentração a esta malta.
MP – Bom, o certo é que eu acho que temos um caso sério.
ABB – Explique-se, explique-se.
OMS – Estamos todos à espera.
MP – A violação do correio não é a única questão pendente.
GR – Pendente, não. Candente.
ABB – Não o sabia tão especioso, Sr Rubim.
GR – Especioso, não. Cioso. E esta palavra é minha, atenção!
FMO – Concentrem-se, caramba, concentrem-se!
PS – Essa frase é minha!
LQ – É, não. Era! A linguagem pertence à tribo.
OMS – Estou a ver que nunca mais saímos daqui.
MP – A violação do correio não é a única questão pendente.
ABB – Avance, homem, avance. Que diálogos senis estes em que você nos mete!
OMS – Também digo. Eu calo-me já, se me continua a encher a boca com buchas destas.
FMO – Então, e a minha deixa?
PS – A sua não sei, mas a minha era essa.
GR – A violação do correio não é a única questão candente, dizia o Sr Portela.
MP – Está a pôr-me palavras na boca.
LQ – A pôr, não. A tirar.
MP – Eu disse pendente.
FMO – A linguagem pertence à tribo.
LQ – Essa frase é minha!
PS – E essa é minha!
ABB – O caso é verdadeiramente sério.
MP – Eu bem dizia.

olho

Alvoroço no condomínio, 3

PS – Sabem o que ele diz?
GR – Estão a falar do homem das termas?
FMO – Cale-se e deixe ouvir. Chega sempre atrasado.
GR – Olhe que isso não vai passar em branco.
MP – Calma, senhores, calma.
PS – Diz que já nos topou a todos.
ABB, FMO, MP, OMS, GR – Topou?!
LQ – Temos coro, agora, é?
FMO – Cale-se e deixe ouvir.
LQ – Estou a ver que sempre encontrou a sua deixa…
FMO – Olhe que isso não vai passar em branco.
OMS – Mas ninguém arranja umas falas melhores para o Sr Oliveira?
MP – Tanta hostilidade só pode ser nervosismo.
OMS – O Sr faz diagnósticos, é? Olhe que a dinâmica grupal é imprevisível.
PS – Posso continuar?
LQ – Estamos todos à espera.
OMS – Essa frase era minha, mas pelo que vale…
PS – Bom, o homem das termas diz que já nos topou a todos. E que isto agora vai funcionar ao contrário.
ABB – Ao contrário?! Explique-se, explique-se.
PS – Ao princípio não percebi muito bem.
ABB – Já conhecemos essa sua lentidão.
MP – Contenção nos insultos.
ABB – O Sr está a sobre-interpretar, com certeza. Alguém insultou alguém?
MP – Não me sub-interprete, Sr Baptista.
OMS – Sujeito Verbo Complemento. É um caso claro de ética e gramática.
FMO – Concentrem-se, caramba, concentrem-se!
LQ – Mais falas do diálogo anterior é que não! Isso é mesmo perder a cabeça!
GR – Sempre a chistar, o Sr Quintais. E sempre a chispar, o Sr Silvestre. Psicologia de bolso. Qualquer titereiro topa isto.
PS – Foi exactamente essa a frase do homem das termas: qualquer titereiro topa isto. Ao princípio não percebi muito bem.
ABB – Avance, Sr Serra, avance, que o concílio já está ilustrado.
FMO – Isto é só arcaísmos, não é…
LQ – Arca-ísmos de Noé.
FMO – Cale-se e deixe ouvir.
LQ – E não se arranjam falas melhores para o Sr Oliveira?
PS – Foi só quando ele me mostrou o folhedo que trazia nas mãos que eu percebi o alcance da frase que disse a seguir.
FMO – Que frase?
PS – Que agora íamos ser nós a trabalhar para ele. Que já tinha tudo estudado. O Casmurro ia passar para as mãos do Estilista.
ABB – Estilita, o da coluna?
PS – Não, Estilista, Groucho Estilista.
OMS– Está o chá entornado.
MP – Ah está? Mas ainda agora o pus a aquecer.
OMS – Era figurado.
MP – Quem? O Estilita?
OMS – Não! O chá entornado!
ABB – Metáfora seguida de metonímia seguida de sinédoque. Metaforonimissinedoquimose.
(O Sr Baptista toma notas, afanosamente)
PS – E não é Estilita, é Estilista.
LQ – Safa! Que manhã desperdiçada.
(O Sr Quintais sai. Cai o pano.)

partitura

Alvoroço no condomínio, 4

PS – De quem é este pano?
GR – Meu não é.
FMO – Só se for do Sr. Quintais.
(O Sr. Quintais entra.)
FMO – Então o Sr. entra ou sai?
LQ – Isso queria eu saber.
OMS – Isto é absurdo! Solecismo e solipsismo é o que eu tenho a dizer. Bolas e futebolas!
ABB – Onde é que nós íamos afinal?
PS – Íamos no Estilista, que se apoderava do Casmurro e nos punha a trabalhar para ele.
MP – Ao menos o Sr. Serra mantém a cabeça fria. Quer dizer, orienta-se. Não perde o fio à meada.
PS – Trago aqui o folhame que ele me mostrou. Avisou-me que estas eram só as primeiras sete. «There’s more where these came from», ipsis verbis, sem tirar nem pôr.
ABB – Então, já faz ameaças, ahn?! Não lhe bastou violar ontem a caixa do correio?
GR – E depois, o que disse mais?
PS – Resmoneou qualquer coisa em jeito de despedida, entre o bigode e o charuto, e foi-se embora. A única frase que ouvi foi «I miss the spa».
OMS – E as folhinhas são esses papeluchos que traz aí amarrotados?
PS – Sim, mas o melhor é ler isto tudo de seguida.
FMO – Devagar, que isto vai-me saber bem. A catástase aproxima-se.
(Cai o pano. Ouvem-se os papeluchos em voz off)

[Papelucho 1]
O ecdótico catacrético paronomásico atrabilioso
O responsável pela edição crítica para o assistente de investigação:
— Foi o senhor que digitou o manuscrito dactilografado?
— Não, eu apenas digitalizei. O dactilógrafo é que manuscreveu.
— Mas olhe que o espólio está muito necessitado de filologia.
— Pois é, deram-lhe muitos pontapés com as mãos.
— A ecdótica foi toda anedótica. E que lição tirar daqui agora?
— Depende da resolução: o óptico é inimigo do bom.
— E qual é a sua leitura?
— 300 pontos por polegada.

Caderninhos de retórica de ABB, fl. 48v
posted by Groucho, o Estilista

[Papelucho 2]
publicar 1. forma rebuscada de reciclar papel 2. produção da esfera pública 3. todos autores, todos leitores 4. sinónimo de “to post” (v.) 5. o que fazem as trombetas da fama
povo 1. multidão de gente 2. classe inferior 3. espectro do Estado (v.) 4. arcaísmo usado em expressões como “do povo”, “pelo povo”, “para o povo” 5. agente duplo da História
poesia 1. está na rua (v.) 2. arte de fazer versos 3. estado comovido de alma 4. cheiro do dinheiro (v.) 5. acção
post 1. posta de prosa ou linguado 2. posta de pescada pescada num blog (v.) 3. prefixo em expressões como “post-restante” para referir o post que sobra, e “post-ila” para referir o caderninho dos posts 4. pau fixado verticalmente no chão 5. “vai num post e vem no outro” (uso idiomático)

Dicionário de Soundbytes, por OMS,
posted by Groucho, o Estilista


[Papelucho 3]
O nome de guerra do bloguista é muitas vezes o seu calcanhar daquilo. O pseudónimo trai-lhe a intenção e desmascara-lhe a anonímia. Ao confundir a fala e a escrita o bloguista oferece o flanco à seta que há no nome. A escrita é o acto de fala que o deixa lívido. A letra vívida consome-lhe a presença no filamento da lâmpada. São letras de contacto que o movem na lente desfocada dos dias. É a luz da sua própria fraqueza que lhe arde no ponto cego da retina. No diário em linha dá passos em falso. Tomba. O zumbido da voz digital posterga-lhe o ser postiço. Prostra-o. O nome de guerra mata-o. O remetente destinatário. O amador na cousa amada. Circuito curto para o circuito.

Nick, o bloguista 2, por PS
posted by Groucho, o Estilista


[Papelucho 4]
decidiu começar ao acaso. um jogo que gostava de fazer. fechou os olhos e abriu negrume:
frag. 30 fotofilia
Sabes que o que está na imagem nunca pode ter existido daquele modo: é o olhar que dilata o instante ao ponto de lhe obliterar o futuro e o passado. Essa momentânea suspensão do tempo pode ser semelhante ao olhar com que espreitamos o mundo, se o conseguirmos despir do hábito e da rotina, que, no entanto, parecem servir para nos protegermos da força com que a vida se manifesta dentro dos dias. Organizamos o tempo para abolir esse apelo do presente e construir a identidade que nos deixa dormentes. A fotografia parece captar essa consciência fugidia do instante, dando-lhe uma duração e uma intensidade aparentemente impossíveis de apreender de outro modo. Mas afinal produz o que pretende captar, fazendo de conta que agarra a luz.

Juca Gaspar, uma novela aeroportuária duvidosa, por MP
posted by Groucho, o Estilista

[Papelucho 5]
Liriconírico
— Abriu-se um buraco no céu da boca. Por onde desceste até à garganta. Que era uma árvore virada ao contrário. Ramos na terra, raízes no ar.
— Mas esse sonho foi o sonho de ontem! Conta-me o sonho que tiveste esta noite!
— Abriu-se um buraco no céu da boca. Por onde desceste até à garganta. Que era uma árvore virada ao contrário. Ramos na terra, raízes no ar.
— Mas esse sonho foi o sonho de ontem! Conta-me o sonho que tiveste esta noite!
— Abriu-se um buraco no céu da boca. Por onde desceste até à garganta. Que era uma árvore virada ao contrário. Ramos na terra, raízes no ar.
— Mas esse sonho foi o sonho de ontem! Conta-me o sonho que tiveste esta noite!
Adorno não concluiu este apontamento erótico — ao que se crê, adornou por motivos eróticos.

Os protocolos de Adorno, por FMO
posted by Groucho, o Estilista

[Papelucho 6]
Clones na bruma
Abri a televisão e fui desfiando canais: num canal estava a dar um clone a perorar. Noutro canal estava a dar outro clone a piorar. Noutro clonal estava a dar outro. Recorde-se o adágio de Benjamim: não há paciência.

Exercícios de auto-etnografia, por LQ
posted by Groucho, o Estilista

[Papelucho 7]
«Varrer o cotão filológico e os saltimbancos letrados» – declarou o insigne expressamente. Varrê-los e varrê-los bem, escreveu dentro do saco de plástico. Estranhei esta filosofia da navalhada sem contexto, mas o peso da melancolia não deixa ânimo para brincadeiras.

Os dias da Clepsydra, por GR
posted by Groucho, o Estilista

(Sobe o pano.)
ABB – Está a arranjar lenha para se queimar.
OMS – Eu faço-lhe já a cama.
FMO – Isto é o que se chama um post nas costas.
LQ – E é o que eu chamo um caso de observador-observado.
ABB – O que o senhor chama não é para aqui chamado.
PS – A questão é: como descalçar a bota?
MP – Como tirar a pedra do sapato?
GR – E quem é que lhe chega às solas, quem? Quem lhe chega à coluna?
(Cai o pano.)
ABB – Não cai o pano, merda nenhuma, que isto é sério! O Sr Quintais já tem a acta?
(Cai o pano.)

ouvido

Reunião de condomínio

GR —Mas acham mesmo que vale a pena votar?
OMS — Se não estamos de acordo, como é que se vai fazer?
ABB — Francamente, acho um exagero sequer pensar em despedir o homem.
FMO — Desculpe, caro colega, mas isso é má consciência. Se não se tivesse posto com piadas parvas
ABB — Que piadas parvas, carago, que piadas parvas? Não combinámos todos?
MP — Bom, combinámos, mas era para daqui a uns meses, dois, talvez três, lembro-me perfeitamente.
PS — Não me lembro de nada disso, e não faltei a nenhuma reunião.
LQ — É melhor voltar ao ponto, essas discussões não levam a nada.
OMS — O senhor diz isso porque nunca cá põe os pés, deve ter quem lhe faça o chá noutro lado…
LQ — Que insinuações são essas? Não lhe admito isso, ouviu?
MP — Calma, calma. Bom, como administrador, proponho que se escreva uma carta a pedir-lhe que volte o mais depressa possível.
GR — Especioso como ele é, vai dizer que «o mais depressa possível» é daqui a três meses.
PS — Nesse caso, despedimo-lo mesmo. Pelo menos tentámos.
OMS — Eu acho melhor votar já o despedimento.
LQ — Se quiser eu faço-lhe o chá, não precisa despedir o homem por causa disso.
OMS — É melhor não me dirigir mais a palavra ou ainda temos chatice…
FMO — Vamos lá, não é caso para se abespinharem…
ABB — Ei, essa palavra é minha!
MP — Calma, senhores, calma, isto assim acaba mesmo. Vamos para já resolver quem faz a acta, ok?

29 junho 2005

Um dia no Casmurro, 2 (que blogro é este?)

No sábado foi uma correria todo o dia, de teclado em teclado e de servidor em servidor. Era vê-los a digitarem, possessos, esconjurando a líbido literária que lhes tolhera os membros durante as meras 3 horas e 48 minutos que a moratória durou. Que animal esfaimado pode andar assim com o cio da letra? E é nestas mãos trucidárias que eu me vejo a ventriloquar e a ler, empalado entre um caderninho de retórica, um dicionário de encher a boca e uma novela de aeroporto e alguidar. Não fossem as águas tépidas das caldas e libertava-me hoje mesmo deste jugo parasitário e exprimista da escritaria instantânea. Acocoro-me e deixo-vos espreitar a caixa do correio pela segunda vez. Onde encontrarem o meu nome, sabei que não sou reponsável pela barafunda. Escusado será dizer que tudo isto vos é revelado em surdina. Aos Casmurros, nem palavra. Chiu!, Chiu!, que ouvi agora mesmo um rumor qualquer ali atrás. Baixem a cabeça, depressa, que eles vão a passar!


De: ABB
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 10:44 AM
Para: Casmurro
Assunto: incontinências da aurora

Caros casmurros:
Proponho que aproveitemos o sábado para dia de reflexão. A brincadeira de ontem marca de certo modo o fim da fase selvagem. A fase das incontinências da aurora, digamos assim. O Sr Silvestre e eu temos exagerado na postagem e se em princípio isso não impede ninguém de postar igualmente, o certo é que se todos andassem ao mesmo ritmo isto seria impossível. Não sei se já não está impossível.

De: SS
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 12:21
Para: Casmurro
Assunto: Contradição performativa
Caros casmurros
Deste lado, confesso, não sem algum embaraço, que já tenho "isto" adicionado aos Favoritos. Significa isto leitura diária obrigatória. Compro o bluff, para salvar o apreciado Groucho, e lanço esta singular bóia de salvação. Vale o que vale, como se pudesse valer outra coisa...

De: FMO
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 12:36
Para: Casmurro
Assunto: RE: incontinências da aurora
Simples: o Sr Baptista e o Sr Silvestre passam a postar ao ritmo dos mortais e a coisa resolve-se por si... Ao trocar ontem umas ideias com o Groucho sobre a especificidade do meio (coisa para continuar), ele próprio se referiu à necessidade de reduzirmos os posts em quantidade e em tamanho. Já deu para ver que cada cavalheiro vai encontrando o seu estilo; e não me parecem estilos incompatíveis, pelo contrário. Talvez possamos tb. aproveitar sempre que possível para reforçar as séries narrativas, temáticas etc.

De: ABB
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 12:51
Para: Casmurro
Assunto: RE: RE: incontinências da aurora
Não me parece tão simples assim. O que o Sr. chama «ritmo dos mortais» é na verdade vários ritmos. E não pode haver ritmo único, uns postam mais outros menos. Tem que ser mesmo assim. Em qualquer caso, tem que haver moderação a partir de agora da parte dos mais frenéticos, e possivelmente mais alguma participação da parte dos mais absentistas. Concordo em absoluto que é preciso reduzir os posts em quantidade e em tamanho. Coisas grandes não funcionam, muitas coisas grandes funcionam muito menos.
Quanto às séries, um ponto importante neste momento é a figura do Groucho. Quem se puser à conversa com ele deve seguir o fio anterior de modo coerente. Se ele vai para as termas, vai para as termas.

De: FMO
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 13:03
Para: Casmurro
Assunto: RE: RE: RE: incontinências da aurora

Admito vários ritmos, mas o que assinalava era o ritmo que o próprio blog pede, independentemente das contingências de cada um. Os mesmos posts num ritmo menos intenso. Isto beneficiaria a exposição dos próprios posts; muitos tinham merecido mais tempo de antena.

De: ABB
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 13:14
Para: Casmurro
Assunto: RE: RE: RE: RE: incontinências da aurora
Não me parece inexorável que os posts mais antigos desapareçam: estão lá, podem ser lidos e acho que muitos os vão lendo ou procurar. Por outro lado, querer dar mais tempo a alguns posts é que pode ir contra a natureza do blogue, que deve ser ágil, actualizado com muita frequência, variado, rico, etc. Se se abre a página e o mesmo post permanece à cabeça muito tempo, o blog esfria. Acho que foi preciso nestas duas primeiras semanas acumular muito material, tornar isto movimentado. Que isso sacrifique algumas prosas, que perecem ou passam despercebidas, é inevitável. O conflito dá-se, aqui como noutros lados, entre a série e a sua velocidade, por um lado, e os átomos de que se compõe, por outro.

De: MP
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 15:40
Para: Casmurro
Assunto: RE: RE: RE: RE: RE: incontinências da aurora

Concordo com o Sr Baptista. E acho também que o frenesi de postar (longos ou curtos) não tem nada de grave... A alternância na extensão dos textos, nos tons e nas séries só torna o Casmurro mais casmurro. Acho que não nos devemos sentir obrigados a publicar a um ritmo constante. Proponho uma divisa paradoxal: ocioso, frenético, errático, epigramático e prolixo (a juntar à do Groucho, pobre coitado). Também acho bem a ideia de continuar as séries a partir do ponto anterior. Pelas minhas contas o número de posts variou entre os 7 e os 15 por dia: é vitalidade a mais, e é assim que deve ser, bute aí.

De: HCM
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 6:06 PM
Para: Casmurro
Assunto: OH...

Só espero que seja brincadeira! Confesso que às vezes o tempo não abunda, o que dificulta a leitura dos posts mais longos, mas é um prazer imenso ler-vos.

De: Groucho
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 18:14
Para: HCM
Assunto: Re: OH...

Prezada H
Encarregam-me os cavalheiros de agradecer a sua mensagem tão simpática e de esclarecer que, com efeito, foi brincadeira, como bem suspeitou. São uns rapazolas, mas não fazem por mal. Atentamente,
Groucho.

alfabeto manual

Um dia no Casmurro, 1 (que blogro é este?)

25 de Junho amanheceu quente e tranquilo. Nada fazia prever o tumulto na redacção. Cheguei por volta das oito, como é meu hábito, e quando abri a caixa do correio saltaram dezenas de mensagens, cabeça de palhaço de ponta e mola. Confesso que não estava preparado, embora o silêncio atroador das 24 horas anteriores devesse ter parecido premonitório mesmo a um áugure surdo e desprovido de dons naturais. Faltou-me o ar. Agora que penso nisso, percebo melhor o abalo que me levou a banhos. O Sr. Oliveira, o Sr. Baptista e o Sr. Silvestre que me perdoem, mas isto não se faz. Nenhuma noite na ópera e nenhum dia nas corridas me poderiam ter preparado para um dia no Casmurro. Com a minha idade, um choque destes. Só o duche escocês me tem aliviado a lombalgia. Rememoro esse dia funesto apenas a bem da psicoterapia, por conselho do Dr. Lumbago, adepto de «emplastros mentais», e para benefício dos queridos leitores, para que conheçam melhor o ambiente de trabalho maníaco-opressivo destes dexistencialistas. Lede, lede, lede, e compadecei-vos do meu destino de sofismador em contrato de leasing acelerado e sem seguro de vida. Começo in medias res, como manda o grande Hor Ácio, mas depois tudo se recompõe e se reordena. Conto com a vossa discrição: tudo isto é escrito em voz baixa e é só para os vossos olhos. A minha sorte está nas vossas mãos.


De: MF
Data: sábado, 25 de Junho de 2005 1:00 AM
Para: Casmurro
Assunto: Encerramento
Caros Casmurros,
terei de concordar convosco que o motivo do encerramento do vosso blog é, de facto, contraditório. É com espanto, denunciando também, talvez, ingenuidade, que descubro que afinal pretendiam ser lidos... E eu que andei a ler-vos à socapa, temendo ser descoberta e considerada intrusa. Afinal, lembro-me de ter lido há já algum tempo que o vosso blog era um espaço reservado... rezava o vosso primeiro post: "o clube dos sete".
Autorizava esta minha interpretação o facto de o blogcasmurro não permitir comentários e de não ter, sequer, um contador de visitas que vos desse conta da adesão do público. Contradições... Mas, se o motivo do encerramento é, de facto, o exposto, talvez devessem rever a vossa posição: há quem vos leia! Vá lá, não sejam casmurros...

De: MP
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 22:13
Para: Casmurro
Assunto: Re: Re: Contradição performativa
Pelos vistos, o Casmurro está em greve de zelo até ao fim do dia. Estive sem aparecer desde ontem e que azáfama pràqui vai. Que frenesim na redacção!!! Eu a foçar todo o dia e estes gajos a dar ao dedo e a pintar a manta... Escreve, não-escreve, lê, não-lê, que drama, que blogro!...

De: OMS
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 21:32
Para: Casmurro
Assunto: Re: Contradição performativa

Na frase que enviou aos casmurros, falta a sequência: «Por essa razão, e contrariando os nossos mais íntimos propósitos, decidimos adiar o fecho deste clube de casmurros para uma ocasião menos próxima».

De: HB
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 21:09
Para: Casmurro
Assunto: Não escrevem mais?

Não escrevem mais? Como assim, não escrevem mais? Publicidade enganosa, hein? Isso não se faz. Estou a coleccionar as lições de retórica do Sr. Groucho e por momentos vi a vida a andar para trás...
E que tal os caderninhos de Poética do Sr.Groucho? Isso é que era, oh se era...

De: IM
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 8:39 PM
Para: Casmurro
Assunto: fiquem!!!
Foram-se mesmo embora??? Mas eu leio... todos os dias...

De: LCC
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 8:29 PM
Para: Casmurro
Assunto: ah, não!
Ah, não! O quê????? Não escrever mais????? Mas acabei de descobrir hoje que vocês existem!!!!

De: ABB
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 6:12 PM
Para: Casmurro
Assunto: Importante!

Atenção, meus caros:
Às 20 horas -- hora de Lisboa, que me desculpem os de Coimbra -- será postado o texto que anuncia que não escrevemos mais. À meia-noite, o Sr. Silvestre postará o contratexto anunciando que afinal escrevemos mais. Atenção, que isto agora é que é importante: nesse intervalo, ninguém posta nada. OK?

De: ABB
Data: sexta-feira, 24 de Junho de 2005 11:20
Para: Casmurro
Assunto: Contradição performativa

Eis a proposta definitiva do nosso último anúncio. A ideia é postar hoje, pelo que se agradece celeridade na reacção interna.
«Descobrimos agora — o espanto denunciando a ingenuidade — que ninguém lê isto. Os poucos que restavam foram-se embora ontem: demasiado idiossincrático, segundo uns; muito pouco sério, segundo outros; que levavam mais tempo a ler que nós a escrever, diziam todos. Já que assim é, não escrevemos mais. Ainda hão-de querer e não ter, seus ingratos.
Os Casmurros»

Azedume da madrugada*

Why should I care about posterity? What’s posterity ever done for me?

Groucho Marx


*Aka Early fucking blogs

Diálogo imaginário entre Groucho e Dias da Cunha, em mais uma noite de insónias

- Mas, Sr. Presidente, o Ricardo vai-se embora? Imbatível, a jogar com os pés…
- Sabe, Groucho… Eu não vou em mediatismos fáceis… O Sporting não entra em loucuras… A ética e a boa contabilidade, antes de mais… Depois, há a formação… Há Alcochete… Eu disse-o no Manifesto… Fui eu quem o escreveu, sabe? Está bem escrito, modéstia à parte… As coisas estão bem claras…
- E o Pedro Barbosa, Sr. Presidente, despedido daquela maneira?
- Ó Groucho, você conhece-me… Os clubes não vivem de símbolos… Seriedade e contas claras… A ética, Groucho, a ética… Depois, veja, o Benfica levado ao colo… A APAF a atacar-me… O Luís Guilherme… Eu já avisei o novo Secretário de Estado do Desporto… O sistema… Ainda no outro dia falava disto em Moçambique aos sportinguistas… Há lá muitos, sabe?
- E o Enakarhire, Sr. Presidente? Jogador excepcional, a valorizar, vai-se vender já?
- Francamente, Groucho… Num clube como o Sporting não há insubstituíveis… Virá outro, do Leiria, do Oriental, do Torreense, da formação… Ainda no outro dia o Filipe Vieira concordava comigo… Homem sério, Groucho, coisa rara no futebol… O Benfica foi levado ao colo, ai se foi, mas ele não tem nada a ver com isso… Punha a cabeça no cepo… Deixe-me só concluir… Se ler o Manifesto… O pior são os penaltis que nos roubam... Como aquele, incrível, contra o Olhanense...
- O Olhanense, Presidente?
- Não me vai dizer que não foi, Groucho?! Do tamanho do Alvalade XXI!
- Não seria o Belenenses, Presidente?
- Ou isso, ou isso...
- Mas ó Presidente, e o Liedson? O nosso goleador, Presidente? Por que razão não lhe renovaram o contrato em Janeiro, quando era tempo?
- Groucho, Groucho… Liedson, Jardel, todos passam.. Os jogadores são pormenores... O Sporting tem de ser mais forte do que isso… Há a formação, há Alcochete… Viu esta última aquisição do Pinto da Costa? Um tipo de 17 anos, um dinheirão!... Ninguém paga impostos, só nós… O Porto está falido há anos… Contabilidade criativa… Valeu-lhes o Mourinho… Depois, os árbitros sempre a roubar-nos… Mas o Peseiro fica, isso garanto-lhe… No Sporting, os jogadores vão mas os treinadores permanecem… Somos um clube de princípios…
- O Peseiro, Sr. Presidente? Aquele jogo na Luz, com o campeonato nas unhas… O Barbosa a jogar os 90 minutos da Taça UEFA…
- Homem sério, Groucho, homem sério… Um pedagogo… O perfil ideal para treinar o Sporting… Não fossem os árbitros… Aquele Luís Guilherme… O sistema, claro, o Boavista, o Porto, o Benfica… Ainda no outro dia lamentei isto tudo ao jantar com o Filipe Vieira… Está de acordo comigo em tudo, é impressionante… Com o Manifesto e nós os dois sempre aliados, o futebol vai dar uma volta… E há Alcochete, que vai ser o nosso futuro… Daqui a 3 anos, a nossa equipa vai ser só formação mais o Liedson…
- Então sempre fica, Presidente?
- Quem, Groucho?
- O Liedson.
- Ele ou outro, Groucho, avançados há muitos… No Sporting a equipa vem sempre antes dos jogadores e o clube antes da equipa... Isso são pormenores… Então no Brasil, aquilo é um fartar vilanagem de goleadores…
- Dizem que o Benfica anda atrás dele… Aquele Veiga já em tempos quis levar para lá o Jardel, lembra-se?
- É tudo boato e do mais miserável, já mo garantiu o Luís Filipe… Estamos a caminho… Ainda vai levar algum tempo mas chegamos lá… Com Alcochete, o Manifesto, os árbitros na ordem, ainda lá vamos… Ainda há pouco o disse na TV… Mas a TV só quer soundbytes, não raciocínios elaborados e que façam pensar… Ninguém quer ver o que está à frente dos olhos… Ninguém quer pensar… Ninguém quer ouvir uma frase devidamente construída... Mas vamos lá… Contabilidade séria, tranquilidade, nada de falsas promessas, o Manifesto, a formação… Temos é de ver se vendemos o Moutinho.. Com o Peseiro, claro… Sempre com o Peseiro…
- Se o Sr. Presidente o diz…

28 junho 2005

Droláticos e pilheriáticos*

A mulher que está esperando o homem está sujeita a muitos perigos entre o ódio e o tédio, o medo, o carinho e a vontade de vingança.
Se um aparelho registrasse tudo o que ela sente e pensa durante a noite insone, e se o homem, no dia seguinte, pudesse tomar conhecimento de tudo, como quem ouve uma gravação numa fita, é possível que ele ficasse pálido, muito pálido.
Porque a mulher que está esperando o homem recebe sempre a visita do Diabo, e conversa com ele. Pode não concordar com o que ele diz, mas conversa com ele.

Rubem Braga (1957)

* De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fls. 35b.

Leituras do Groucho nas termas

Até que um dia, o dono do alfabeto, que era quem escrevia com ele, reuniu os seus gramáticos e disse:
- Façam qualquer coisa, senão as letras revoltam-se. Ainda fazem alguma cooperativa e começam a escrever sozinhas!
Mas por mais leis que os gramáticos fizessem nunca mais conseguiram meter as letras na Ordem Alfabética. E depois das letras revoltaram-se as palavras, e depois os livros, e depois as bibliotecas, e depois tudo.

Manuel António Pina, «A Revolução das Letras», in O Têpluquê e outras histórias

Vermeer, a leiteira

engoliu a saliva, contraiu os lábios, respirou fundo

engoliu a saliva, contraiu os lábios, respirou fundo. uma aguda consciência do espaço interior da sua própria boca precedia sempre a entrada para o consultório. a língua traçava e retraçava a forma dos dentes, antecipando o movimento manual do destartarizador metálico e a rotação eléctrica da escova. não estava nervosa. as mãos suavam ligeiramente. pelas suas contas, deveria ser a próxima a entrar. inexplicavelmente, não se conseguia concentrar na leitura. fechou o livro e leu, distraidamente, a nota da contracapa:

Em negrume, Sam Brackett (1964-2005) leva a auto-alienação ao limite. Brackett talvez peça demais, por isso está sempre na fronteira da loucura. Alguns dos seus fragmentos são quase insuportáveis. A impossibilidade de existir como se imagina que seria possível existir não se deve apenas àquilo que constrange os indivíduos de fora, mas deve-se sobretudo àquilo que os constrange de dentro: a morte que transportam consigo e o mal que fazem a si mesmos e aos outros. Toda a sua escrita se alimenta desta contradição entre a natureza essencial da humanidade e o desejo imaginário de ser ou de ter sido ou de vir a ser. É como se a linguagem servisse apenas para agravar o sofrimento humano e tornar ainda mais palpável a sua condição solitária e vegetativa. Como se os seres humanos não se conseguissem nunca verdadeiramente tocar, mas apenas ferir-se e mutilar-se mutuamente. E quando dão por si já os vermes os ceifaram. A revolta de Brackett contra o destino biológico parece ser também contra a linguagem, que é ao mesmo tempo o instrumento da dor que se inflige e da dor que se sofre. A linguagem transforma homens e mulheres em carrascos e vítimas da natureza que transportam dentro de si. Mas talvez isto seja uma leitura demasiado negra de negrume. Há apesar de tudo redenção no inteligir a ininteligibilidade, como afirmou certo dia Estevão Andorinha.

post

estrutural

post

feminismo

Sob a sombra de uma tília gigante…

Algo enfastiado com as leituras dos últimos dias, Groucho folheava a “Tribuna de Lafões”, sob a sombra de uma tília gigante. Foi com um sentimento melancólico que avançou para a segunda página:

«Com os exames à porta, os estudantes têm passado os últimos dias mergulhados em livros. Depois do isolamento social provocado pelos exames, é hora de conviver com a família e os amigos. Sílvia Amoreira da Silva, finalista da Escola Secundária de S. Pedro do Sul, confessou ao repórter: “Quando isto terminar, durmo, durmo, durmo”»

post

colonial

post

modernismo

O hipalagimaginoso*

— É verdade que aparece um «pensativo cigarro» em todos os livros do Eça?
— Em todos não direi, mas aparece muito, sim. Chama-se a isso uma hipálage.
— Ah! é o nome erudito para o vício entranhado?
— Vício? Qual vício?
— O do tabaco, é preciso ter um vício do caraças para o meter nos livros todos.
— Não, meu palerma, tens cada uma. Não tem nada a ver com isso, é uma figura, uma maneira de dizer. O cigarro não pensa, o fumador é que está pensativo enquanto fuma.
— Então?! é o que eu digo: pensa no cigarro, até a fumar pensa em fumar.
— Não, pensa noutras coisas, está a reflectir, a meditar, absorto...
— Então devia ser o cachimbo, o cachimbo é que está ligado aos intelectuais. Ou o charuto…
— O charuto está associado à digestão, homem. E digestões pesadas são incompatíveis com reflexões sérias. Charuto eupéptico, ou para alguns dispéptico.
— Isso também são hipálages?
— Esquece.

*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 123b

Leituras do Groucho nas termas

O bocal de vidro, encostado à parede, em cima do armário: oculta-o (quase não se vê) a cimalha talhada como o frontão dum templo (volutas de cedro, vagamente florais) e é preciso trepar a uma cadeira para o descobrir: enorme, sem gargalo, com a rolha coberta de parafina.
Talvez a primeira falha na sequência familiar. Uma das intrusas trouxe para dentro de casa o óvulo doente: deteriora (quando não extingue) o outro gérmen, introduzindo-o (desvitalizado) no fluxo hereditário. Fácil sugerir a gota de gisandra, a tendência mórbida para a indiferenciação. Óvulo e gisandra seguem processos degenerativos próprios, corrompem a seu modo certas leis (e certa intimidade) da genética, mas tendem a instaurar uma única tara nos dois reinos mais vulneráveis. Ignora-se o carácter divino (ou demoníaco) desta evolução; ignora-se, em temos gerais: o instinto da família considera-o maléfico, já se vê, embora o tenha como sagrado (mecanismos de culpa por esclarecer).
(...)
O feto flutua num útero de vidro, num sepulcro fechado a parafina. Flutua, não será o termo: imerso, enrolado sobre si mesmo, dá no entanto essa ideia. O álcool (o formol?) foi-o ressequindo e esfarelando; dia a dia, acumulou-se no fundo do bocal um depósito amarelado: atinge agora metade da emulsão; a metade superior (muito brilhante) hesita entre o pérola e o branco (assente sobre a espessura do depósito, o pequeno fantasma parece de facto flutuar: informe, placentário).

Carlos de Oliveira, Finisterra. Paisagem e Povoamento

Cheira a esturro





















Denis Oppenheim,
Reading position for a second degree burn, 1970.

Postal de S. Pedro do Sul, por Groucho




Caros Casmurros,

Começo a compreender, para minha chocada surpresa, que não é fácil interessarmo-nos pelo insípido mundo exterior ao clube Casmurro, ainda quando nos envolva a pitoresca zona de Lafões, com toda a sua gama de atracções turísticas.
Este cândido postalinho serve apenas para dizer que, apesar das ásperas despedidas do fim-de-semana, o que lá vai, lá vai. Afinal de contas, ninguém toma banho duas vezes na mesma água (isso fica lá para os ingleses…).
Permito-me apenas sugerir-vos uma visita a estas paragens, aonde poderão ler uma contribuição minha para a blogosfera (não senhor, ninguém me ofereceu por lá contrato mais vantajoso!) e ainda, pela mão infatigável de Manuel Resende, poesia de Giórgos Seféris: Fogueiras de São João, Automóvel e Say it with a ukulele (poema sobre o nosso tão típico cavaquinho).
Sem ser tão bom quanto os nossos bons poetas de Novecentos, Seféris é ainda assim muito legível. É aproveitar este bloguebónus.
Saudações viris e casmurras do vosso

Groucho

Notas avulsas

Coisas para dizer ao Groucho quando ele chegar (se chegar):
Falei em dois desejos: o de obter resposta imediata, da parte do bloguista, e o de se exprimir, da parte do comentador. Disse até que havia um «entendimento prévio» entre eles. Logo, os dois desejos encontram-se e satisfazem-se no blogue; logo o parasita quer invadir e o hospedeiro quer que ele invada: a caixa de comentários, o parasita, é chamada e alimentada pelo hospedeiro, o blogue. Pedir, então, ao Groucho que me explique, por gentileza, onde vai ele descobrir a «relação binária entre blogue e parasita, como se blogueiro […] e parasita pertencessem a duas ontologias e éticas diversas»;
— Disse também que esses dois desejos não deviam ser alimentados, porque molestos; não disse que eliminando a caixa de comentários se eliminava o parasita. Valha-nos Deus, são desejos inerentes à escrita, afinal, que se topam activos em tanto romancista que desdenha os blogues. Pedir-lhe, então, que me explique, por cortesia, qual a pertinência das observações com que pretende refutar-me: a) «eliminar comentários é eliminar uma forma indesejável de parasita, mas não significa de todo o fim da figura do parasita, sem a qual, insisto, não haveria posts, blogues e blogosfera»; b) «é perigoso, e a meu ver incorrecto ética e politicamente, fazê-lo nos termos activados pela questão do ‘parasita’».
— Observar-lhe que o parasita assume formas várias, mas não tem forma própria. A caixa de comentários é apenas a forma epidémica, porque corresponde aos dois desejos mais virulentos da chamada blogosfera. Repetir: Valha-nos Deus, são desejos inerentes à escrita, afinal, que se topam activos em tanto romancista que desdenha os blogues. Por isso me permiti aquela formulação final, por metonímia e por clarificação: a caixa de comentários é o parasita do blogue. Mas está bom de ver — e tal formulação não faria sentido sem isso — que esses dois desejos atravessam a dita blogosfera, resultando que alguns blogues são caixas de comentários disfarçadas porque não os move senão esse desejo primitivo de expressão pessoal.
— Dizer-lhe de caras que não tem valor descritivo esta frase: «eu diria (e tentarei terminar, para não me acusarem de não saber escrever para blogues) que o blogue se distingue dos outros média do espaço público por algumas coisas reconhecíveis — leveza do meio, instantaneidade, etc. —, sendo uma delas, e das mais decisivas desde o início, a interactividade com os leitores.» Não, isso são traços secundários: o blogue distingue-se pela ausência de intermediário entre a decisão de escrever e a decisão de publicar: é isso, e só isso, que gera a epidemia desse desejo de expressão pessoal e desse desejo de resposta imediata, os quais, valha-nos Deus, são inerentes à escrita e se topam em tanto romancista que desdenha blogues.
— Dizer-lhe, enfim, para não se meter onde não é chamado.

Another [I. Pedrosa] clone?

Caro Groucho,
Em S. Pedro do Sul, presumo, o que muito nos favorece já que as colónias termais cá da terra são um dos poucos dados de civilização de que nos podemos fazer valer. De resto, a barbárie espreita (espreita-nos) por todo o lado. Assim fossem tão bem comportadas as fronteiras entre civilização e barbárie - recorde-se do adágio de Benjamin: não há registo de civilização que não seja em simultâneo um registo de barbárie (parafraseando de memória).
Nunca foram tão bárbaros os civilizados cá do burgo, tão sem cerimónia, tão sem reserva ou comedimento (admiráveis virtudes burguesas, pois). Veja você, p.ex., que, por um destes dias (no prazenteiro fim-de-semana passado), abri a televisão e fui desfiando canais: no primeiro estava a magnífica Inês Pedrosa a perorar, no segundo estava a magnífica Inês Pedrosa a perorar, no terceiro estava a magnífica Inês Pedrosa a perorar, no quarto idem, etc., até ao infinito de uma série que só por obsolescência tecnológica não consegui captar.
Memorável o depoimento sobre a ecologia: quem lhe ensinou a fechar as torneiras lá em casa foi a filha infante (veja como são os intelectuais), a "natureza" não a seduz, nunca a seduziu, a não ser que seja "natureza humana", essa sim, dessa tudo diz, tudo pode dizer.
Igualmente memorável (em que canal?) o depoimento sobre uma peça de teatro à volta de uma grávida em monólogo: assinalei o seu rebarbativo entusiasmo pela tal da natureza humana, suas hesitações, antecipações, depressões.
Depois deixei de ouvir.
O que me fascinou, ou melhor, intrigou, é que a senhora Pedrosa estava a falar em todos os canais e, veja bem, em directo! Ou seja, para cenário de horror, nem o Edgar A. Poe faria melhor com a sua atracção fatal e oitocentista por duplos. Sabe, meu caro Groucho, o gótico está em todo o lado. Dir-se-ia que estamos perante um exemplo empiricamente denso do que chamaria de "A idade da Reprodução Clónica". Recorde-se da sua fraternal e extraordinária amiga performer, Laurie Anderson, "Another [I. Pedrosa] clone?".
Termais cumprimentos e bom regresso.

Alvor estomagado*

OFICINA IRRITADA


Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.


Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma (1951)



*Aka Early fucking blogs

Algumas considerações sobre parasitas, por Groucho

Estava eu posto em sossego, dos meus anos gozando o doce fruito termal, quando a leitura da intervenção do Sr. Baptista sobre parasitas suscitou em mim o incontinente desejo de intervir (coisa muito do Casmurro, e aliás destes tempos). Vejo-me pois na necessidade de intervir na contenda, actualmente bem acesa, em torno dos direitos fundamentais dos utentes dos blogues: sim ou não à caixa de comentários?
Longe de mim discordar das conclusões do Sr. Baptista, no que tange sobretudo à inibição definitiva (que ele bem descreve como profiláctica) do «direito» dos leitores a tornarem-se ínvios co-autores de blogues. Não divergindo porém da conclusão, devo manifestar discordância quanto a um ponto (melhor se diria: quanto a um termo que é um conceito que é uma política) para o qual o Sr. Baptista mobilizou os bons serviços de uma palavra tão rica quanto antipática: «parasita». Nas suas definitivas palavras, «a caixa de comentários é o parasita dos blogues».
O meu problema, confesso, é esta relação binária entre blogue e parasita, como se blogueiro (isto deve ser brasileirismo, mas é gostoso…) e parasita pertencessem a duas ontologias e éticas diversas. Ora, eu sou re-espectador obcecado da saga Alien, com Sigourney Weaver (……), e releitor aturado do ensaio do Sr. J. Hillis Miller «O Crítico como Hospedeiro» - obras ambas da especial predilecção do Sr. Baptista, ao que sei – e tenho dificuldade, por essa razão, em praticar essa dicotomia. A ideia que subjaz às palavras do Sr. Baptista é a de que o parasita invade e destrói a hospedaria-blogue, segundo o modelo de uma invasão bélica e viral (sendo aqui o vírus, para falar curto e grosso, a javardice). Mas o Sr. Baptista decerto não desconhece as infinitas complicações desta situação, como Alien evidencia e o Sr. Hillis Miller tão brilhantemente desconstrói ao chamar a atenção para o facto de as palavras em «para» serem intrinsecamente fendidas, pelo que a ideia de uma linha limítrofe entre dentro e fora não funciona de todo (a própria palavra é em si fendida e ambígua). «Para», como prefixo, lembra o Sr. Miller, «indica ao longo de, ao lado de ou próximo a». Numa derivação etimológica – qual o neto de Heidegger e filho de Derrida que não as aprecia, sejam elas precisas ou imaginativas, como tantas vezes as do avô… – o Sr. Miller lembra aliás que parasita vem do grego «parasitos», «ao lado do grão»; e que o parasita era originalmente alguém que se convidava para partilhar da nossa comida.
Depois, como sabemos, o termo passou a designar o «convidado profissional», o «penetra», para usar uma tão sugestiva palavra lusa (e convém lembrar que os penetras se chamam hoje em Itália, por razões de ordem histórica, «portoghesi»). Tudo isto para voltar à questão com uma citação final do Sr. Miller: «O hospedeiro e o parasita um tanto sinistro ou subversivo são companheiros que compartilham a comida. Por outro lado, o próprio hospedeiro é a comida». Brrr! Mas a história não acaba aqui, pois numa reversibilidade de lato alcance político, afirma o Sr. Miller, ao concluir outra derivação etimológica: «Um hospedeiro é um hóspede e um hóspede é um hospedeiro».
Peço desculpa por este momento eugéniolisboeta, mas vi-me forçado a citar com alguma abundância. A minha questão é esta, se me é permitido divergir de tão especioso espírito quanto o do Sr. Baptista: é justo fechar profilacticamente a caixa de comentários de um blogue a uma invasão de javardice; mas é perigoso, e a meu ver incorrecto ética e politicamente, fazê-lo nos termos activados pela questão do «parasita». Porque, antes de mais, há-de o Sr. Baptista reparar que a lógica da blogosfera é toda ela uma lógica parasítica. Os blogues alimentam-se de tudo e nada, e sobretudo uns dos outros. O post é justamente essa transformação de tudo em alimento e, na sua hysteresis constitutiva (nós bem temos assistido a isso, neste clube…), a própria transformação da escrita em parasitagem indomesticável e como que autoalimentada. Posthesis universalis, se me permite o desforço moderadamente gracioso.
Suponho aliás que o momento em que a natureza parasítica do blogue vem à tona é esse tão estranho processo, em vias de não menos estranha normalização, da edição do blogue em livro (para quando o do Casmurro, editores distraídos?). Mas não é o blogue a própria contestação, na sua ontologia e economia mediáticas, da forma-Livro? Aberto vs fechado, processualidade vs cristalização, fragmentação vs organicidade, etc.? Manifestamente não, não é, pois isto não funciona, e o que de facto ocorre é uma suplementação infindável, como diria o Sr. Derrida, em que o blogue anseia pelo livro e o livro hospeda o blogue, que afinal não é blogue sem essa parasitação do livro com que desde sempre sonha sonhos na sua maioria inconfessáveis.
De forma homóloga, eu diria (e tentarei terminar, para não me acusarem de não saber escrever para blogues) que o blogue se distingue dos outros média do espaço público por algumas coisas reconhecíveis – leveza do meio, instantaneidade, etc. –, sendo uma delas, e das mais decisivas desde o início, a interactividade com os leitores. Compreendo, e apoio, a recusa de permitir que os comentários criem um blogue paralelo; mas creio que é a própria diferença do medium que é afectada pela impossibilidade de manter o canal aberto. Na eventualidade de todos os blogues adoptarem a mesma política, em que é que a blogosfera seria uma realização mais perfeita do ideal burguês da esfera pública do que o universo da imprensa tradicional? Apenas por permitir mais palradores? Mas uma política de plena (?) liberdade expressiva não tem de ser mais do que isso; e sobretudo, nada garante que isso venha a ser de facto uma política. Pode ser apenas (e tantas vezes é) um desbordamento narcísico. Talvez isto signifique simplesmente que não devemos alimentar ilusões habermasianas sobre as virtualidades, e mesmo sobre a possibilidade, desse ideal. Mas então convirá baixar a temperatura da utopia política no discurso sobre a blogosfera.
O ponto porventura final da minha arenga seria este: eliminar comentários é eliminar uma forma indesejável de parasita, mas não significa de todo o fim da figura do parasita, sem a qual, insisto, não haveria posts, blogues e blogosfera. O Sr. Baptista, por exemplo, aprecia parasitar «os tropos na vida quotidiana» e fazer deles posts esmagadores de disfarçada erudição e inabalável humor; e os outros cavalheiros do clube, mais ou menos parasitam a vida cultural e social da nação, ou da e-nação.
Espero contudo não surpreender ninguém se afirmar de novo a minha concordância com a posição do Casmurro, e do Sr. Baptista, em relação à caixa de comentários. Por uma razão apenas: precisamos demasiado da figura do «parasita» (admitamos aqui as aspas que este meu post solicita para a personagem) para nos confiarmos ao desastre de a confundir com o simples javardo. Um grunho – por exemplo, aquele «amigo da rapaziada» que praticamente provocou sozinho o encerramento dos comentários do Da literatura - não é um parasita, pela simples razão de que nada nele põe em causa, de forma mais ou menos radical, a ordem ética, social e política em que vivemos (aquilo que, pelo menos eu, espero de um «parasita»). Um grunho é simplesmente um grunho, isto é, alguém com quem não partilharíamos um banho numas termas tão distintas como as de S. Pedro do Sul.
E permitam que me retire, pois é tarde, pedindo antecipadas desculpas pela eventualidade de os haver maçado a hora tão imprópria.

27 junho 2005

Eu...

- Justamente premiado, o último romance de Vasco Graça Moura. Mas pareceu-me curto, o prémio da APE.
- Eu…
- Para aquele homem, tudo o que for abaixo do Camões é curto.
- Eu…
- Idem para o Mário Cláudio e o Prémio Pessoa.
- Eu…
- Não se percebe é como a Agustina ainda não ganhou o Nobel. Inadmissível!
- Eu…
- E também já é mais que tempo de o Manuel Alegre ganhar o Camões.
- Eu…
- Idem para o Herberto, se bem que ele tenha aquela mania de não gostar de dinheiro.
- Eu…
- Depois do Manuel Alegre, terá de ser o Joaquim Manuel Magalhães a ganhar o Camões, que me desculpe o Gastão Cruz!
- Eu…
- E o Lobo Antunes, até quando terá de expiar o facto de um outro português ter ganho há pouco o Nobel?
- Eu…
- Uma literatura destas e só um Nobel?!
- Eu…
- E há o Peixoto, o Tavares, a Ivo Cruz, a Pedrosa, o Tolentino Mendonça! A substituição geracional está mais do que assegurada.
- Eu…
- Venham-me cá com Espanha ou França ou Alemanha… Um naipe destes não está ao alcance dessa gente.
- Eu…
- E isto não é patriotismo futeboleiro. Até o Fernando Dacosta defendia coisa semelhante há tempos, num debate na TV. Temos é de nos deixar de complexos de inferioridade.
- Eu…
- Que eu até acho que o Zimmler já devia ser considerado português. Lá que escreva em inglês é o menos. Fomos nós que o lançámos, é cá que vive, é o nosso universo que ele explora. E sempre era mais um grande.
- Eu…
- Que os países afirmam-se é pela vida do espírito, não por futebóis ou comércios medíocres!
- Eu…
- Precisávamos era da Zita Seabra a dirigir as operações de internacionalização. A mulher já mostrou que sabe da poda, em matéria de livro. Agressividade promocional é do que precisamos. Não acha?
- Eu…
- Nem mais! Vejo que o meu amigo continua clarividente.
- Eu…
- E nada de contaminações pelo poder! A literatura, como a arte verdadeira, é sempre um antipoder! Uma celebração da radicalidade insituável do Outro. Do poder, só o indispensável apoio à internacionalização.
- Eu…
- O poder, essa lepra!, como dizia o Eugénio.
- Eu…
- Direi mesmo mais: uma lepra! Distância, meu caro, distância dos serventuários da hora.
- Eu…
- By the way, sabe que fui convidado para comissariar o próximo Salon du Livre?
- Eu…
- Obrigado, meu caro. Sabia que podia contar com as suas felicitações. Temos uma ministra muito lúcida, sabe? Além de culta, para variar.
- Eu…

Groucho Bar

tocámos a pista às 17h47

tocámos a pista às 17h47, hora local. o voo estava dentro do horário previsto. trouxe o carrinho até ao cais do comboio do terminal 2. à saída do túnel, soube-me bem voltar ver a silhueta da cidade. por onde já não passava desde o Verão passado. telhados, paredes, portas, janelas das casas desfilavam em planos sucessivos e a velocidades variáveis. como se se desintegrassem para de novo coalescerem nos edifícios de que faziam parte. o castanho escuro, o cinzento e o ocre dos tijolos entrecortados pelos verdes das árvores. ao abrandar, as catenárias pareciam marcar os limites dos fotogramas da projecção que ocorria para lá da janela, iluminada pelo sol baixo do final da tarde. saí na Estação Central. o largo e a avenida pareceram-me imediatamente familiares. retirando o cartão que trazia na carteira, confirmei a morada. «please, take me to this address.» não era longe do centro da cidade. à medida que o táxi avançava, num trajecto perpendicular aos canais, a minha atenção fixava-se nas fachadas dos edifícios, nos néons e nos muitos tróleis que enchiam de cor as filas de trânsito. um dos desenhos intermitentes fixou a minha atenção enquanto esperávamos a abertura do semáforo. por detrás das pessoas que, na esquina, atravessavam a rua apressadamente, vislumbrei inadvertidamente o Groucho Bar, onde no dia seguinte tinha encontro marcado. a minha atenção deambulou depois ao acaso até chegar a casa.

O personificador inconsequente*

Objectivo do exercício:
Notar que a personificação atinge necessariamente o ponto crítico quando a lógica da figura obriga a considerar os traços típicos da entidade não-humana indispensáveis ao correcto sentido literal — e que ainda assim não prescindem da operação personificadora.
Agora podem ler o resto.



Uma tartaruga foi assaltada por um bando de caracóis. Queixou-se à polícia; quando lhe pediram uma descrição dos assaltantes, respondeu que não seria capaz: — Foi tudo muito rápido, explicou.

*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 18c

O elíptico e a aposiopese (ambos em segundas núpcias)*

— (…)?
— […]!


*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 5b

O hiperbólico generoso

Ricardo Araújo Pereira. Não altera o que ficou dito abaixo, mas agradecemos, claro: envaidecidos, mas não ingratos.

O parasita (meta-qualquer-coisa-mente*, 2)

Parece que certas pessoas acham que um blogue sem comentários dos leitores não é um verdadeiro blogue. Tivemos aqui uma mensagem, há uns dias, de alguém que nos dizia ter perdido a vontade de ler quando percebeu que não podia comentar. Na verdade, podia e pôde; e na verdade, comentou, por e-mail, dizendo isso mesmo. Esse tipo de comentário, porém, é que não satisfaz — nem ao comentador nem aos comentados. O fenómeno é curioso, para não dizer extremamente interessante.
As mais das vezes, a discussão restringe-se ao plano moral. Ainda hoje, um bloguista veterano, Pedro Mexia, reiterava que a caixa de comentários abre o blogue aos canalhas, potencia a baixeza e obriga o bloguista a fechar aos prevaricadores a porta da liberdade de expressão que abriu a todos. Com o devido respeito — e até solidariedade, porque imagino o que ali vai… —, isto é pouco, e aliás contraditório.
Os blogues persistem um espaço selvagem, quase sem regras, ou melhor, escapando à maior parte das regras e constrangimentos que estruturam o espaço público. Isso é basicamente positivo, sendo em consequência negativo adoptar como princípio de conduta a ideia vulgar de que muita gente não merece, por não saber usá-la, a liberdade que lhe dão. Fica a coisa muito unilateral, percebem? Dir-se-ia que o bloguista dispõe de algum poder sobre os outros, mostrando-se generoso — se abre caixa de comentários — ou revelando-se arrogante — se a fecha ou nunca a abriu. Daí que os blogues que fecham ou restringem a caixa de comentários o façam sempre estribados no uso peculiar que a amálgama de comentadores lhe foi dando — e daí que nunca interroguem aquilo mesmo que os levou a abri-la de início.
A caixa de comentários responde a dois desejos que não devem ser encorajados: o dos comentadores, claro, mas também o dos comentados. Da parte destes, a abertura ao comentário deriva do desejo de obter reacção imediata ao que se escreveu. Desejo apenas tolerável como ansiedade de principiante, porque incompatível com a escrita. Se há alguma determinação moral da escrita, define-se com uma única figura: a ingratidão. O escrito não regressa a quem o escreveu — nunca. O escrito entrega-se, dá-se, voga por aí: e precisa de tempo, às vezes muito tempo, para que alguém o reconheça e lhe responda. O blogue, nisso, não difere. Pelo contrário, agrava a ingratidão, porque o post, mínimo ou máximo, nunca regressa a quem o escreveu para o informar de que foi lido por cem ou duzentas pessoas: se for lido, se for acarinhado, execrado ou adorado, guarda tudo com ele, porque necessariamente se esquece de quem lhe deu forma. O bloguista, esse, que se contente com ecos, sussurros, uma palavra aqui ou ali: se chegarem, ainda bem, se não chegarem, não lhe compete ir à procura. É assim mesmo, e de nada adianta imaginar que a técnica oferece antídoto eficaz para esta ingratidão.
Da parte do comentador, o desejo de comentário é o desejo de se exprimir facilmente, sem custos — de borla. O blogue alimenta essa ilusão de que qualquer um pode escrever e qualquer um tem coisas para dizer. A pequena-burguesia muito expressiva, portanto. Como, porém, nem todos alcançam a forma da escrita; como, porém, nem todos chegam à iniciativa de, por si mesmos, abrirem o seu espaço próprio de escrita; como nem todos, porém, sabem escrever — a caixa de comentários permite-lhes escrever sem pudor nem gramática; permite-lhes dizer de facto qualquer coisa; permite-lhes exprimirem-se, e sempre à custa da iniciativa, da prosa e da forma dos outros. Por isso os comentários redundam em frustração para o comentado: porque não visam dar-lhe nem lhe dão essa resposta imediata que ele deseja, antes estruturalmente oferecem ao comentador a possibilidade de participar na avalanche da escrita sem chegar a escrever. Não admira assim, dado esse entendimento prévio de ansiosos e parasitas, que a caixa de comentários chegue a ser considerada um direito natural, inalienável, quase constitucional, dos leitores de blogues. Na verdade, está bem longe disso: a caixa de comentários é o parasita dos blogues.

* © Fernanda M. B.

Nick, o bloguista


O melhor bloguista do mundo – tanto quanto se pode saber – chama-se Nickname. É um bloguista anónimo, tão anónimo que nem ele próprio sabe quem é para além de ser no blogue. Só sabe que é o bloguista perfeito, insone, vive sempre acordado para o blogue como se fosse o filamento de uma lâmpada. É um desbragado, não há tema em que não se exceda na opinião. Os milhares de visitadores deste alarve do comentário pedem-lhe que escreva sobre todo o tipo de assuntos, ininterruptamente. Ora diz verdades, ora meias-verdades, ora mente; umas vezes procura usar com decência as palavras, outras não, outras ainda imita a prosa dos outros com perícia extra-humana. Nada disto o preocupa minimamente, pensa sem quaisquer afectos. Escreve sem pestanejar, dir-se-ia aliás que é daqueles animais de olhos sempre abertos de que fala o Aristóteles. É anónimo por fora, e não tem um dentro que pudesse olhar quando fechasse as pálpebras. O bloguista Nick, como vai sendo chamado, é sem complexo de Édipo.

Fábulas do Groucho (para quem sofre de alegoríase)

Plácido à sombra de uma árvore copada vislumbra próximo ao céu um rosto movendo-se entre a ramagem e o identifica chamando-o pelo nome: DEUS! – Em vão. Não é. É o de um ATEU, botânico de voo, espantado com tão mau fisionomista. O que de imediato declara alto e em bom tom para Plácido que se acha embaixo e finge não ter ouvidos. Pois Plácido, ao ver empoleirado no mais alto galho quem lhe acena e faz estranhas macaquices, teima que por puro espírito de humor celeste Deus finja crer na evolução; e ainda com o mesmo espírito se disfarce – executando santas circunvoluções de galho em galho – em um exemplo vivo das maquinações de Darwin!

Zulmira Ribeiro Tavares, «Plácido, o mau fisionomista, in O Mandril

coração

bocejou pela terceira vez

bocejou pela terceira vez. tocava-se já a última peça do concerto dessa noite. o cansaço do dia acumulava-se. o terceiro andamento do concerto em Fá Maior, na primeira parte, fora o único momento em que saíra do torpor que lhe tomara conta dos membros e dos sentidos, praticamente desde que se sentara no lugar, K23. entrara na sala dez minutos antes do início. no palco, fortemente iluminado, já estava toda a orquestra. abriram-lhe os ouvidos, aqueles minutos de afinação. sentir novo chão debaixo dos pés. como se só agora tivesse aterrado. a percepção do real sempre atrasada. sopros e cordas, a procurarem a vibração certa, numa massa de som que ora enchia o volume da sala, ora se rarefazia e soçobrava num único instrumento. parede ainda batida pelo sol. água quente do duche. pouco mais de meia hora antes de chamar o táxi de novo. entra o primeiro violino. vénia. aplausos. de novo as cordas se tentam harmonizar. o corpo sempre adiantado. gargarejo. água de colónia. ele, que raramente se via ultrapassado pelos acontecimentos. entra, pouco depois, o maestro, que vai dirigir e estar ao piano ao mesmo tempo. «já cheguei. está tudo bem. não te preocupes. amanhã falamos. com mais calma.» percussão, sopros e piano entrecortavam num ritmo assombroso o pano sonoro das cordas. ainda mais uma chamada para atender. que compassos frenéticos. cabrão do Bráulio. «good evening, ladies and gentleman» - o maestro, sorridente, anunciava a primeira peça, descrevendo cada um dos andamentos. veremos o que sai do inquérito. trombones, timbales e pratos marcam, furiosos, aquela espécie de dança estrepitosa.

Leituras do Groucho nas termas

Em que proporção encolheu a população do Congo, durante o regime de Leopoldo, por efeito de todas essas quatro causas? [Assassínio, inanição, doença, quebra da taxa de nascimento] Os historiadores podem depositar maior confiança na percentagem que nos números absolutos – exactamente como quando elaboram tabelas da perda de população provocada pela Grande Peste na Europa do século XIV. Tudo visto, não possuem dados de recenseamento. (…)
Em 1919, uma comissão oficial do governo belga calculava que, desde o tempo em que Stanley começara a lançar as fundações do Estado de Leopoldo até então, a população do território «se reduzira a metade». O major Charles C. Liebrechts, membro cimeiro da administração do Estado do Congo durante a maior parte da existência deste, chegou à mesma conclusão em 1920. O mais fidedigno juízo da actualidade é o de Jan Vansina, professor emeritus de História na Universidade do Wisconsin e talvez o maior etnógrafo vivo dos povos da bacia do Congo, que baseia os seus cálculos em «inúmeras fontes de áreas diferentes: padres que notavam a diminuição dos seus rebanhos, tradições orais, genealogias e muito mais». A sua estimativa é a mesma: entre 1880 e 1920 a população do Congo diminuiu «pelo menos, de metade».
Metade de quê? Só na década de 1920 foram efectuadas as primeiras tentativas de recenseamento na escala de todo o território. Em 1924, a população foi calculada em dez milhões, número este confirmado por contagens ulteriores. Segundo as estimativas, isto significaria que, durante o período de Leopoldo e no que imediatamente se lhe seguiu, a população daquele território perdeu, aproximadamente, dez milhões de pessoas.

Adam Hochschild, O Fantasma do Rei Leopoldo, trad. de Manuel Ruas

Algum tempo depois, ainda em S. Pedro do Sul

- Que desespero, meu Deus! Enfim, recomeçando: uma teoria de casmurros, uma cáfila de casmurros, um bando de casmurros, uma academia de casmurros, uma epopeia de casmurros, uma troupe de casmurros, um jantar de casmurros, um partido de casmurros, uma prosopopeia de casmurros, uma retórica de casmurros, uma poética de casmurros, uma orografia de casmurros, uma sismografia de casmurros, uma oceanografia de casmurros, um movimento de casmurros, uma migração de casmurros, uma manifestação de casmurros, um casamento gay de casmurros, um carnaval de casmurros, uma missa de 7º dia de casmurros, um salão de chá de casmurros, um lobby de casmurros, a ordem dos casmurros, um sindicato de casmurros, uma sinédoque de casmurros, uma associação de escritores casmurros, um bordel de casmurros, uma orgia de casmurros, uma manada de casmurros, um reality show de casmurros, um grupo parlamentar de casmurros, uma contaminação de casmurros, uma resma de casmurros, uma vara de casmurros, um exército de casmurros, uma procissão de casmurros, uma profissão-de-fé de casmurros, um concílio de casmurros, uma encíclica de casmurros, um doutoramento honoris causa de casmurros, umas propinas de casmurros, uma enciclopédia de casmurros, uma antologia de casmurros, uma estante de casmurros, uma biblioteca de casmurros, um CD Rom de casmurros, umas termas de casmurros, umas cavalhadas de casmurros, uma orquestra de casmurros, um cardume de casmurros, um oceanário de casmurros, um zoo de casmurros, um arrastão de casmurros, uma traineira de casmurros, uma blogosfera de casmurros, um evangelho de casmurros, um êxodo de casmurros, um apocalipse de casmurros, gaita!!

Insónia em S. Pedro do Sul

- Um casmurro, dois casmurros, três casmurros, quatro casmurros, cinco casmurros, seis casmurros, sete casmurros, oito casmurros, nove casmurros, dez casmurros, onze casmurros, doze casmurros, treze casmurros, catorze (perdão: quatorze) casmurros, quinze casmurros, dezasseis casmurros, dezassete casmurros, dezoito casmurros, dezanove casmurros, vinte casmurros, vinte e um casmurros (um copy paste de casmurros é que me resolvia esta merda), vinte e dois casmurros, vinte e três casmurros, vinte e quatro casmurros, vinte e cinco casmurros, vinte e seis casmurros, vinte e sete casmurros, vinte e oito casmurros, vinte e nove casmurros, trinta casmurros, trinta e um casmurros, trinta e dois casmurros…

Aurora biliosa*

O que torna este blogue extremamente desinteressante é, por outro lado, essa coisa de grupo, o sentido de grupo sem sentido, os ritmos desordenados, a ostentação de idiossincrasias, absolutamente nenhuma ideia unificadora, sequer algum propósito reformador. Notem o culto do refrigério, snob desenfadamento, posto mero e indisfarçável desvio do de sempre: das obrigações, das mesquinhas actividades correntes — do peso da escrita. Mas sempre o ócio contaminado pelo negócio. Ideias de escrita destroem a escrita de ideias; ideias de escrita ademais à procura duma forma — própria, errática, descomposta, destemperada. Eis, raios as partam! todas as razões que tornam este blogue extremamente desinteressante.

*Aka Early fucking blogs

26 junho 2005

Bigornas e incudes

- Ó Quintais, bons olhos o vejam! Por cá, hoje?
- Uma aberta nas minhas obrigações paternais.
- Ainda bem, ainda bem. Já sabe da crise que por aqui vai?...
- O Groucho a banhos, não é? Enfim, as classes servis deixaram de o ser, que havemos nós de fazer?
- Ir sobrevivendo... Mudando de assunto. Imagine que fui ali espreitar o noticiário na RTPN e assisto a uma reportagem sobre um dicionário, supostamente acabado de sair, de expressões trasmontanas.
- E isso dá um dicionário?
- Seguramente. E se não der, dá-se um jeito, como calcula (a gente sabe bem como se inventa o objecto, não é?). Mas imagine: a jornalista vai para a rua perguntar aos indígenas o significado de palavras incluídas no dicionário. E ouve-se uma, duas palavras de facto desconhecidas por este cidadão que consigo cavaqueia. À terceira, ouve-se a rapariga (melhor: a jovem e promissora profissional da comunicação social) perguntar a um respeitável cidadão de Trás-os-Montes: «Bigorna. Sabe o que significa?»
- Bigorna? Não pode...
- Pois é. Pelos vistos é coisa que só existe por lá. Pelo menos, a jornalista assim pensa. Que me diz da amnésia tecnológica das novas gerações?
- É a lei da vida, suponho. Ainda se lembra do Spectrum? É capaz de vir a ser uma bigorna, daqui a poucos anos.
- Daqui a anos? Está muito generoso, Quintais, pois desconfio que já é bigorna há quase uma década.
- A obsolescência da cultura material – tópico obrigatório na modernidade, clivagem entre as sociedades «modernas» e as «primitivas» (muitas aspas nisto…). O Ruy Duarte de Carvalho escreve muito sobre isso, como sabe, tendo como referência o «despojamento tecnológico» dos Kuvale, para usar a expressão dele.
- Pois, mas olhe que há bigornas que nunca desaparecerão, com ou sem modernidade…
- Humm, refere-se àquela que a jovem jornalista transporta dentro do ouvido, suponho?
- Por exemplo. Não sei se a dos trasmontanos tem alguma diferença específica que justifique a sua inclusão em dicionário local… O colega, que é antropólogo, é que devia saber disto: Rio de Onor, Rio de Onor, bigornas à vista!
- Não diga a ninguém mas nunca lá pus os pés…
- Nem me diga isso… Já não há antropólogos, é o que é. Agora fazem todos trabalho de campo na urbe, e de preferência nas discotecas e bares da 24 de Julho. Compreendo-os muito bem.
- Pois, mas olhe lá: que tal era a bigorna facial da jornalista?
- Agora apanhou-me, carago…
- Olhe que no Morais, se bem me lembro, aparece como sentido figurado de bigorna…
- Só pode ser o nariz…
- Nem mais.
- Bigorna mui apresentável, a da repórter da bigorna. Mas sabe, deve ter sido lapso. Só pode. Ela devia ter acabado de ler o Houaiss, que, ao que sei, é a modos que o prontuário obrigatório dos alunos dos cursos de Comunicação Social (os da Nova, bem entendido!), e estava com a cabeça em «incude»…
- In… quê? Isso é porno-malandrice, Silvestre…
- Essa agora! Bem se vê que o meu amigo «não viu nada em Rio de Onor»… Português antigo, dicionarizado no Houaiss. Para que conste: lat. incus,údis 'bigorna'.
- E então o Silvestre sugere que a rapariga terá regionalizado incude, por não reconhecer o termo, acabando por confundi-lo (um acto falhado televisivo, género aliás abundante) com bigorna? Uma psicopatologiazinha da vida quotidiana? Complicadito…
- Nem mais, qual complicação. Bem vistas as coisas, aonde poderá haver incudes neste país senão em Trás-os-Montes? A Madeira está já acima da média europeia, o Alentejo afere-se pela tecnologia do Alqueva, o Algarve, bem vistas as coisas, nunca foi Portugal, os Açores, enfim, não admitem lá incudes, por razões de moral pública… Só mesmo Trás-os-Montes.
- Logo, o obsoleto (por exemplo, «incude») sofre um efeito de regionalização… Imaginário ou ideológico? O moderno (ou pós) não é aferível pelo regional nem pelo rural? Trás-os-Montes como «fundo de dicionário»? A capital, o Porto, Coimbra of course, ficariam com a língua padrão e comum, as regiões com os «incudes» sobrevivos - enquanto houver Houaiss’s?
- Mais ou menos. Talvez pudéssemos equacionar a coisa assim: o espírito do mundo, incarnado na repórter da bigorna (esperemos que isto não seja materialismo grosseiro…), desconhece já a bigorna. Cuja sobrevive, enquanto signo, como «incude». Sobreviver como «incude», porém, significa sobreviver como vetustas, efeito distintivo e tão capitalizável como a «comida típica» que a partir dos finais de 80 as elites urbanas começaram a procurar no interior – e a encontrá-la de facto lá, por efeito natural dessa procura, e só depois de tal procura a ter «produzido», ou recodificado em cozinha típica (muitas delas enfeitadas com coisas tão anciãs como incudes). Cozinha típica que aliás hoje se encontra ainda melhor nas cidades, que abundam nela.
- Logo, o «incude» é mais e melhor preservado na urbe que no campo. E lá vai Trás-os-Montes à viola de novo… Mas olhe, e que tal era o incude da repórter?
- Já respondi há pouco… Alto lá, Sr. Quintais, que detecto ranço falocêntrico na pergunta! Proponho que mudemos profilacticamente de assunto. Conhece aquele clip da Kylie Minogue realizado pelo Gondry em que ela se desmultiplica em 4? Fabulosa cantora, amigo Quintais! E perturbador contrafactual. Daqueles que não ocorrem em Trás-os-Montes…

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Bessa-Luís, Agustina: 1. Para arranjar noivo, pôs um anúncio no jornal. 2. Tem uma grande colecção de xailes. 3. Ninguém acredita que seja ela a escrever aqueles livros todos. 4. Uma máquina, a produzir aforismos. 5. Mazinha como as cobras. 6. Mário Cláudio adora-a. 7. Inês Pedrosa (v.) também.

Bíblia: 1. Vende mais do que O Código DaVinci (v.). 2. Tem boas histórias. 3. Como livro é chato (tem pouco diálogo) mas há filmes bem giros.

Bicha: Antigamente dizia-se «Pôr-se na bicha».

Bigode: 1. Código de reconhecimento de portugueses em aeroportos internacionais. 2. Antes de Mourinho (v.), ninguém conseguia ser treinador de futebol sem ele.

Bigorna: Não se percebe por que razão, estando lá o martelo, não faz parte da bandeira do Partido Comunista (v.).

Bin Laden, Osama: 1. Um místico com visões. 2. Um milionário que perfilhou a causa da revolução (v.). 3. Um monstro banhado em sangue. 4. Está em toda a parte e ainda assim ninguém o apanha. 5. Lembra Cristo (v.), em mais magro e alto. 6. Os americanos até gostavam dele, antigamente. 7. As notícias sobre a sua morte são um tanto prematuras. 8. Há uma suite à espera dele, em Guantánamo (v.).

Blair, Tony: 1. Criou a 3ª via, com portagem. 2. Punha a cabeça num cepo pela boa-fé de George W. Bush (v.). 3. Um europeísta convicto. 4. O Labour está mortinho por correr com ele.

Leituras do Groucho nas termas

Os SS também toleram que se urine e que se defeque. Para esse efeito, mandam até reservar para nós um local que se chama Abort [Retrete]. Urinar não é chocante para o SS; muito menos que estar simplesmente de pé e olhar para a frente, de braços a abanar. O SS inclina-se diante da independência aparente, da livre disposição de si próprio por parte do homem que urina: ele deve acreditar que urinar, para o prisioneiro, é exclusivamente uma servidão cujo cumprimento deve fazê-lo tornar-se melhor, permitir-lhe trabalhar melhor e tornar-se assim mais dependente da sua obrigação. O SS não sabe que ao urinar nós evadimo-nos. E que também, por vezes, viramo-nos para uma parede, abrimos a braguilha, e fazemos de conta. O SS passa, como o cocheiro à frente do cavalo.

Robert Anthelme, A Espécie Humana, trad. de Clara Alvarez

Da arte, a frase*

[...] é extremamente interessante.

*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 36c

Parte da frase*

É extremamente interessante haver pessoas [...].

*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 36b

Arte da frase*

É extremamente interessante haver pessoas que escrevem blogues.

*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 36a

O solecismo*

—Extremar os tropos dos solecismos, Visconde de Almeida Garrett? Vossa Senhoria é ambicioso…
— Ah, ah, silepse de género, certo?
— Nós, aqui onde nos vê, somos mais modesto e paciente…
— Ah, ah, agora silepse de número, certo?
— A maior parte dos sábios estão convencidos da improbabilidade desse projecto.
— Solecismo, certo?
— Pena, estava a ir tão bem.
— Bolas! Mas isso é debatível, sabe?


*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 45d

O hiperbatoso*

— Hiperbatíase?! Que raio é isso?
— É isso de pequeno tumor, hipérbato, situado no cérebro.
— E é grave?
— Não é que alguma doença de pele a hiperbatíase mais grave. Degenera o tumor em anástrofe, se não tratado, sendo o maior perigo; em sinquíase hiperbatíase torna-se.
— E isso o que faz?
— Em crónica cai o paciente confusão.

*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 256b

Leituras do Groucho nas termas

Pessoalmente não tenho nada contra os cemitérios, até gosto de lá ir arejar, se calhar mais do que a outros sítios, quando arejar é preciso. O cheiro dos cadáveres, que distingo nitidamente por baixo do da erva e do húmus, não me é desagradável, talvez um pouco adocicado de mais, um pouco inebriante, mas mil vezes preferível ao dos vivos, dos seus pés, dentes, sovacos, cus, prepúcios peganhentos e óvulos frustrados. E, quando os restos do meu pai colaboram, ainda que modestamente, quase que me vêm as lágrimas aos olhos. Bem podem lavar-se, os vivos, bem podem perfumar-se! Cheiram mal. Sim, como sítio para passear, quando passear é preciso, deixem-me a mim os cemitérios e fiquem – vocês – com os vossos jardins públicos e paisagens campestres. A minha sanduíche, a minha banana, sabem-me melhor sentado numa campa, e quando chega a altura de mijar, e chega várias vezes, tenho por onde escolher. Ou então vagueio, de mãos atrás das costas, por entre as lápides, deitadas, inclinadas ou direitas, a colher inscrições. Nunca me desiludiram, as inscrições, há sempre três ou quatro tão engraçadas que tenho de me agarrar à cruz, ou à estela, ou ao anjo, para não cair.

Samuel Beckett, Primeiro Amor, trad. de Francisco Frazão

Função conativa

[Excerto de um sonho ainda não submetido a interpretação terapêutica]

«- Groucho, venha cá!
- Sim, Sr. Silvestre.
- Ponha-se de gatas e faça miau miau!
Acto contínuo, Groucho põe-se de gatas e começa a miar:
- Miau miau miau miau miau miau miau miau miau…
- Já chega. Agora faça Ão ão !
- Ão ão ão ão ão ão ão ão ão ão ão ão ão ão ão ão ão…
- Basta. Agora diga «I like Ike» até eu mandar parar.
- I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike I like Ike…»

De súbito, acordei. Por um estranho fenómeno de deslocação, embora ouvisse mentalmente Groucho dizer «I like Ike», apercebi-me de que murmurava, sonâmbulo, «Carrilho é fixe», «Carrilho é fixe», «Carrilho é fixe»…

Meta-qualquer-coisa-mente*

O que torna este blogue extremamente desinteressante é o vezo dos seus autores para a piada profissional. Desentranham do seu pobre mundo em extinção motivos de gracejo, ou pilhéria, guiando ao ridículo anos de formação intensa. Qual função poética, qual cabaça! Arriscam-se ao azedume, ao ressentimento, quem sabe à melancolia. São aliás falsos bloguistas, mais interessados em escrever do que em fazerem-se ler pelos outros. Os outros... afinal, existem. E estes, existem? Não fazem compras? Não torram na praia? Não nutrem sentimentos, não alimentam paixões: porque não se exprimem com mil diabos? O blogue entrou-lhes na essência como um clister — urge um post sobre a catarse! mas catarse é o quê? —, encheu-lhes a vida de aspectos novos e a escrita de espiritualidades burlescas. A lata dos farsolas. Em suma, o Casmurro desfeito pelos seus autores.

* © Fernanda M. B.

O crítico de poesia


O Salvador é um crítico exemplar de poesia, leitor assíduo, memória cabal, mas não fala nem escreve sobre poesia – sapateia com notável despejo. É o crítico fandangueiro, ajuiza na praça com língua fandanga. Um poema que lê, taca-taca-taca; um poeta novo, taca-taca-taca; um livro de hoje mesmo, taca-taca-taca; um brinde aos egrégios, taca-taca-taca também. Não lhe falta ocasião para enfiar os sapatos e dispor-se à dança. O Salvador está sempre prestes a fandanguear, bate os pés por coreografia, encanta com tais sapatos críticos. Calcando especialmente o tacão esquerdo, diz que sim; se é o direito o mais pisado, diz que não. Taca-taca com o esquerdo, taca-taca com o direito, rodopia ágil por toda a praça, é com os tacões que vai dizendo os seus juízos. Que sapatos, os do Salvador!

Introdução à função poética

- Ó Rubim, não queira saber!
- Então? Não me diga que teve uma recaída por causa da frase sobre a função poética…
- Mais ou menos. Contei a sua tirada ao Manuel Resende e ele disse-me para ir pôr a frase em causa no Google. Eu já devia conhecer as manhas daquele diabo!
- Mas não me diga que o Google reage à função poética?!
- E como, meu caro, e como! Um poema fabuloso, de fazer inveja aos manos Campos, ao Melo e Castro, ao Alberto Pimenta ou mesmo, mais domesticamente, ao Manuel Portela. O poema vem com a seguinte indicação geracional: «Esta lista contém palavras portuguesas do Jornal de Notícias. Todas as noites, palavras novas correspondendo ao modelo regexp \s([-a-zà-öù-ÿ])\s acrescem à lista. Actualmente, a lista tem 42877 registos.» Passo a transcrever-lhe apenas um pedaço do início (o texto é quase tão grande como o Mahabarata):

a · à · á · à-vontade · aba · abade · abadessa · abafadas · abafado · abafados · abafar · abafaram · abaixamento · abaixava · abaixo · abaixo-asinado · abaixo-assinado · abaixo-assinados · abala · abalada · abalados · abalançar · abalançar-se · abalançarmos · abalar · abalaram · abalou · abalroado · abanar · abanaram · abancado · abancámos · abandalhar · abandona · abandonada · abandonadas · abandonado · abandonados · abandonam · abandonam-nos · abandonando · abandonar · abandonará · abandonaram · abandonarem · abandonaria · abandonasse · abandonassem · abandonava · abandone · abandone-se · abandono · abandonos · abandonou · abano · abanou · abaolutamente · abarbatarem · abarca · abarcam · abarcando · abarcar · abarcará · abarcarem · abarcava · abarracadas · abarrotados · abastada · abastadas · abastado · abastados · abastece · abastecedor · abastecedores · abastecen · abastecer · abastecer-se · abastecida · abastecidas · abastecidos · abastecimento · abastecimentos · abate · abatem · abater · abates · abateu · abatiam · abatida · abatidas · abatido · abatimento · abdica · abdicado · abdicam · abdicando · abdicar · abdicará · abdicaram · abdicariam · abdicou · abdómen · abdominal · abecedário · abeirar · abeirou · abeirou-se · abelha

- Fabuloso, Silvestre. Ou seja, o Jakobson em acto. A função poética no Jornal de Notícias
- …ou o Jornal de Notícias como função poética…
- Poesia transmental, da que o Jakobson apreciava.
- Perdão, perdão: poesia concreta, verbi-voco-visual!! Tal como estipulada no «Plano piloto para a poesia concreta», sem tirar nem pôr.
- Não digo que não, não digo que não, agora que me lembra. E auto-referencial, aqui e ali («abaolutamente», por exemplo). E a poesia feita por todos e sem autor, gerada por computador, etc., etc. Extraordinário.
- É verdade. Há que divulgar isto, aqui e no estrangeiro, caramba. Temos de arranjar uma editora em Portugal (talvez a Cotovia, que agora se farta de editar poemas épicos) e várias no estrangeiro. Talvez o José Bento traduza para espanhol, o Manuel Portela para inglês, o casal Guerra para russo, o Chandeigne para francês, o Barrento para alemão. E, claro, o Manuel Resende para o grego.
- O grande acontecimento literário português no mundo depois de Saramago!
- De caras.
- Acho que devíamos escrever um livrinho didáctico sobre isto a aproveitar a onda, amigo Silvestre. Enchíamo-nos de dinheiro...
- Grande ideia. E já temos título, e que título! Introdução à Função Poética.
- Perfeito.

25 junho 2005

Função poética revisitada

- Há versos bonitos e memoráveis mas (o Quintais que me desculpe) há frases bem mais memoráveis, e marcantes, do que versos.
- Refere-se a quê, Rubim? «Ich bin ein Berliner»? «Pai, pai, porque me abandonaste»?
- Não, nem tanto. Ou melhor, pensava em coisas mais próximas do mundo dos versos, mas mais «frias», porque técnicas ou científicas, e contudo com um lugar cativo no nosso coração (esta do coração é homenagem ao tropo maior da poesia «crítica» do Joaquim Manuel Magalhães…). Frases que fazem mundo e nos arrastam para dentro dele.
- Não acompanho…
- Já vai perceber, Silvestre. E olhe que tem ainda a ver com a função poética. Vai ver que assim que eu disser a frase que tenho em mente vai ter uma iluminação profana…
- Venha ela, Rubim. Estou em pulgas.
- Não percebo como ainda não lhe ocorreu…
- O meu amigo está a fazer-me sentir obtuso, e a aproveitar para gozar com este seu amigo…
- Longe da minha intenção, como calcula. Mas eu tomava um chá…
- Não há, e o Rubim está farto de saber disso! Deixe-se de coisas e diga lá a frase, gaita!
- Está bem, está bem. Está pronto?
- Francamente…
- Aí vai: «A função poética projecta o princípio da equivalência do eixo da selecção sobre o eixo da combinação…».
- …
- O que há? Está a sentir-se mal? Quer um chá? Bolas, não há, já me esquecia de novo.
- …é a emoção, é a emoção. Não se faz, caraças, não se faz!
- Eu avisei.
- Pois, mas… Nunca nos habituamos ao fim do primeiro amor. Fica-nos sempre a má-consciência de que a culpa foi nossa, não soubemos estar à altura, etc. Há tantos anos, gaita, e agora passar por tudo isso de novo… Não se faz, caraças, não se faz.

Função poética

- Sim, telefonista? Era para ditar um telegrama. … S. Pedro do Sul, Grande Hotel das Termas, Sr. Groucho. …Não, não é coxo, é Groucho. …Chocho? Groucho! G R O U C H O!! Uff… Aí vai, então:

«Groucho: Bule bute bronca brava chávena id. bazou chá China marado. Chanfrado? Chalado? Choné? Cheché? Chasquear connosco? Chatinagem? Chatim! Chega! Banhos banidos. Atestado anulado».

Função fática…

- Está lá?
- Blp, blp, blp, blp…
- Groucho, que barulho é esse, homem?!
- Zzzzzzzzzzz, chap, chap, chhhh...
- Está lá?! Mas que gaita! Está lá?
- Sssssssschhhh, sssssssschhhhh…
- Raios, era só para lhe dizer que isto agora tem uma doutrina oficial.
- Blp, blp, blp…

Doutrina oficial

Por deliberação unânime, a doutrina oficial do Casmurro passa a estar condensada na seguinte divisa (já patenteada, de acordo com a Estratégia de Lisboa para a competitividade europeia):

OCIOSO, FRENÉTICO, ERRÁTICO, EPIGRAMÁTICO E PROLIXO.


Ite, missa est.

O narcoléptico*



Narcolepsia, ou hipnolepsia, o único tropo encontrável no mundo fenomenal.+



*De Caderninhos do Groucho, fl. 23c.
+Foto: cortesia de Humberto Brito

O zeugmático*

— Soubeste do meu acidente? Nem sei como não morri.
— Soube ontem. Horrível. Imagino que tão cedo não pegues num carro…
— Qual quê, já vim hoje com o da minha mulher. Sou muito zeugmático. Aliás, aprendi que não posso guiar agarrado ao volante e aos pensamentos.
— Ah pois não, isso é semanticamente complicado.

*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 112a

O quiasmático*

Quando lhe faltava o ar, agarrava-se à mulher; quando se agarrava à mulher, faltava-lhe o ar.


*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 117d

O anacolutoso*

O meu mal, doutor, a doença de que realmente sofro, não sei se já lhe disse antes que nem acho que sofra bem duma doença. É não ser consequente, não dou seguimento a nada. Começo, quando começo alguma coisa coisa, começo e largo-a logo para ir começar outra. E o pior é que nem a continuo nem me esqueço de que a comecei. Fica, como direi… pendurada. É isso, o meu mal, eu acho que o meu mal é deixar os começos pendurados.

*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 182b

Afecções do foro musculoesquelético

«As doenças devem apresentar-se em períodos de não agudização», lembrou o médico, na primeira consulta. Groucho anuiu, ainda ensonado. À saída, o papelinho exposto no átrio do Balneário Rainha D. Amélia listava um número de afecções bem superior ao que imaginara:

a) Doenças do Foro Reumatismal:
Osteoartrose
Espondilite
Anquilosante
Febre Reumática
Artrite Reumatóide
Artrite Gotosa

b) Doenças do Foro O.R.L. e Vias Respiratórias:
Asma
Sinusite
Rinite alérgica
Faringite Crónica
Bronquite Crónica

c) Medicina Física e de Reabilitação:
Afecções do Sistema Nervoso (Central / Periférico)
Afecções do Foro Orto - Traumatológico
Afecções do Foro Reumatismal
Afecções do Foro Respiratório
Afecções do Foro Musculoesquelético
Afecções do Sistema Circulatório e Linfático