A elegia e o podre
Adepto de nomadismos, de um tempo lento, de despojos, do que é afinal sem uso, reconheço a minha casmurrice: não tenho sequer carta de condução, mas gosto de máquinas, e sobretudo de caminhar ao longo de longuíssimas e impraticáveis estradas.
Vivo do outro lado do rio de uma cidade que recorta a sua sombra maligna sobre a tela azul de um céu que tem sido sempre de verão desde que me proponho caminhar por esta estrada que, inevitavelmente, tem o nome de uma mulher assassinada por razões de Estado, ou melhor, assassinada porque (segundo a mitografia) as razões de Estado se sobrepõem sempre às razões de sangue. Aqui tudo nos reconduz a Maquiavel e a Shakespeare. Nada melhor do que a tragédia de um nome para acentuar a gravidade de uma aporia que me persegue enquanto caminho: distância e proximidade.
Caminho ao longo da estrada e o que vejo ninguém vê: despojos do consumo esplendem ao sol e metamorfoseiam-se em ruínas que gostaria de descrever em detalhe. Mas, para já, contento-me com a elegia e com o podre que torna tais ruínas objectos de pensamento (voláteis objectos de pensamento, dir-se-ia).
Ninguém vê o que vejo ou a densidade do que se acerca veloz: automóveis circulam e lançam sobre mim brilhos mercuriais, intensidades sem resgate. Há aí um desejo de violência e morte. Uma vontade de fins que me parece estranhamente salutar. Talvez tudo venha a acabar num fatal acidente tecnológico. Penso nisto enquanto caminho.
Declaração de proximidade e distância em relação a este tempo em que o etnógrafo ocupa uma posição liminar, isto é, betwixt and between. Sim, há muito a aprender com Victor Turner. Mas também com Walser, Ballard, e Virilio.
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