16 junho 2005

Vá à ópera!

- Amigo Groucho, recordar-se-á por certo da máxima atribuída a Adorno, segundo creio, de que andar distraído é ver o essencial, não?
- Trata-se de um apócrifo ou de uma sobre-interpretação já que o Adorno nunca se distraía. Dir-se-ia que a coisa é antes do Benjamin, esse era sem dúvida um grande distraído. Aliás, o fragmento como procedimento metodológico é um talento de distraídos e de melancólicos. Nada que me diga respeito. O meu magistério exige o contrário de tudo isso: concentração absoluta de forma a manietar o adversário, a consumi-lo, sublinhe-se. Tréguas é que não, e de espécie alguma. Os distraídos arriscam-se a levar por tabela. Eu e o Adorno, estamos bem um para o outro. Electivamente?
- Bem, concordo consigo. Não tenho carta de condução, como sabe. "Aversão profunda à promiscuidade", diz ali o Sr. Abel. Razão cautelar do distraído para quem já lhe chega a profusão de acidentes com consequências diabólicas que o cercam cada vez que se distrai, diria eu.
- Não tema os acidentes. Eles são a única porta de saída. Não é o essencial que você tanto ama que importa salvar. Antes as consequências não ponderadas do acidente. Uma verdadeira cultura da irresponsabilidade é o que nos prende à vida e, já agora, à arte. Sem isso, meu amigo, não passamos de ouriços a jogar espinhosamente à retranca.
- Ora nem mais! Sabia que o Virilio projectou um "museu do acidente"?
- Não, não sabia. Deve ser difícil arranjar critérios museológicos válidos para tal coisa, não? Pôr a vida (holisticamente considerada) num museu?
- Improvável tarefa, certamente! Hoje por pouco não era atropelado. Vinha com um bebé. E fui depois insultado. Chamaram-me "pai", o que apreciei. Apreciei menos o mimo de "mau pai".
- Responde-lhe um mestre em truísmos: não se distraia, esqueça o essencial, vá à ópera!