30 setembro 2005

(Explico-me)

Eu não quis dizer que, ao usar a palavra "intelectuais", o Dr. Pacheco Pereira tivesse lançado um boomerang de que ele próprio viesse, coitado, a ser o alvo atingido. Não! Se calhar pouca gente concorda comigo, sei lá, mas fico sempre um bocadito irritada quando oiço pessoas, talvez pouco profundas, a considerar o biógrafo de Álvaro Cunhal como um "intelectual". Irrito-me, porque é tão evidente que um homem que passa a vida na praça pública nunca pode ser um intelectual!

Não sei porquê, mas...

Não é por nada, mas desconfio que o Sr. Rubim anda distraído. E que, quando acordar, não vai gostar nada disto. Ou, pelo menos, das frasezinhas finais:

Há alturas de facto em que os intelectuais não prestam mesmo. Há alturas em que os intelectuais não percebem nada. Bem vistas as coisas, é quase sempre assim.

A não ser, claro, que eu esteja completamente enganada. Afinal, nunca se sabe bem a quem ou a que é que uma pessoa se refere quando usa a palavra “intelectuais” (no plural, percebem?).

28 setembro 2005

Escrever com a luz (7)

(Foto-grafia de Pedro Reis, neste sítio.)

25 setembro 2005

Susto

Ai, meu Deus, tanta bicharada!

24 setembro 2005

Letargia, 5




MP (de pé, no meio da sala, olha em redor) – Já que cá estou, o melhor é esperar mais um bocado.
GR (entra, e senta-se) – Então não se senta?
ABB (entra, vindo da esquerda) – Pensava que ainda era cedo.
CA (entra, olha para os outros) – Mas que pontuais!
FMO (entra, com ar apressado) – Espero que haja algum bom motivo para virmos cá.
PS (entra, e senta-se discretamente) – Desculpem-me o atraso.
OMS (entra, com ar enfastiado) – Inda agora cheguei e já me arrependi.
LQ (fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Inacreditável!

Letargia, 6



MP – Deixem-me que vos apresente o caso.
GR – O caso? Não sei de caso nenhum… Por mim, está encerrada a discussão.
MP – Mas se ainda agora começámos…
GR – Começar, acabar – qual a diferença?
ABB – Tudo está bem, quando acaba bem.
CA – Quem tudo quer, tudo perde.
FMO – Vale mais um na mão que dois a voar.
ABB – Chapa ganha, chapa batida.
PS – Palavras, leva-as o vento.
ABB – Talis blog, talis blogger.
OMS – Tal blogueio, tal blogueado.
LQ – Inacreditável!
GR – Isto vai de mal a pior!
LQ – Um mal nunca vem só!
CA – Do mal, o menos!
ABB – Para grandes males, grandes remédios!
OMS – Nem mais!
ABB – Nem mais?
OMS – ’Tá-se bem.
FMO – Ai está?
ABB – Mal por mal...
GR – É preciso fazer alguma coisa.
MP – Era o que eu ia a dizer.
LQ – Inacreditável!
CA – Palavra puxa palavra.
FMO – Passe a palavra.
PS – Bem dito!
OMS – Bendito!

Letargia, 7



MP – É preciso fazer alguma coisa, é o que vos digo.
GR – Talvez o Sr. Quintais queira avançar com alguma proposta…
LQ – Inacreditável!
ABB – O problema é os leitores (ou são os leitores?)...
PS – Como assim?
ABB – Habituaram-se ao frenesi e agora, zás.
GR – Zás?
CA – Zás! Reload e nicles! Reload e nicles!
FMO – Zás, reload e nicles? Não estou a perceber.
OMS – O senhor só lá vai com memorandos e memorabiliandos. A gente já sabe.
PS – O certo é que não havia compromissos. A coisa era espontânea. Garatujas para um lado, gatafunhos para o outro. Ler daqui, ler dacolá.
OMS – Pois esse é precisamente o problema, Sr. Serra. Citações a mais. E, diga lá, o senhor vai assim tantas vezes à letrina?
ABB – Sempre desbragado, o Sr. Silvestre!
OMS – Já para não falar na repetição das falas. E nas revelações à revelia. Isto não é sério.
MP – Não sei o que está a insinuar - prove o que diz…
GR – Se estamos nas suas mãos, como é que isso seria possível?
FMO – Sim, o Sr. Rubim tem toda a razão. Esta frase, por exemplo, quem a disse?
ABB – Nick, o bloguista, antes de bater a bota.
OMS – Qual bota? é que não. Não contem comigo. É abusar da paciência.
CA – Avançar no meio do quid pro quo, esse é o desafio.
PS – No meio é que está a virtude!
GR – A virtude é que (é quem) o faz correr.
CA – A quem?
GR – Ora o que há-de ser!
LQ – Inacreditável!
FMO – Quiproquó produções limitada!

Letargia, 8



MP – A pouco e pouco, faz-se luz. Estamos quase a chegar a um consenso…
CA – A um consenso?
LQ – Inacreditável!
OMS – Sr. Quintais, pare lá com essa!
LQ – Desculpe, mas não está nas minhas mãos.
OMS – Olhe, nas minhas ainda menos… se soubesse a agonia destas tiradas… eu já disse que não aparecia mais...
PS – Bom, o problema mantém-se. O que fazer?
LQ – Inacreditável!
GR – Tenho uma solução: desapontar o leitor!
ABB – A minha é melhor: desapontar o escritor!
MP – É precisamente esse o dilema que tenho de apresentar ao Professor Djabi.
CA – Ao Professor Djabi?
FMO – Outro candidato ao Casmurro?
OMS – Isto já lá não vai - Djabi ou Djubi, ou seja lá o que for. Acabou. Fechemos a chafarica!
LQ – Inacreditável!
FMO – Mas quem é o Professor Djabi?
OMS – Sempre às escuras, o Sr. Oliveira. Ora oiça: «Não há problema sem solução. Encontra-se no nosso País um grande mestre, internacionalmente conhecido, com 23 anos de experiência. Ajuda a resolver problemas dos mais difíceis ou graves, com urgência e honestidade, como: amor, amarração da mulher em 7 dias e do homem em 8 dias, impotência sexual, mau-olhado, depressão, negócios, justiça, inveja, doenças espirituais, emprego, maus vícios, drogas, alcoolismo. Lê a sorte. Faz-lhe saber o seu passado, presente e futuro. Faz consultas na presença, em português e francês. Não perca tempo. Contacte o mestre Djabi.» Elucidado?
CA – Quem vota a favor?
OMS – Veja só as falas que ele lhe dá!
FMO – Quem?
OMS – Santa inocência!
GR – Não seja cifrado se não quer ser decifrado!
LQ – Inacreditável!
GR – E andar de pano à boca de cena – o que tem a dizer a isso?
MP – Calma. Que o chá está servido.

O prometido é devido, 5



Um sapato velho, sala com duas entradas, vários sofás, uma mesa baixa, um rochedo lunar, outra mesa com várias cadeiras, estante na parede do fundo, dois candeeiros de pé, uma jukebox, dois candeeiros deitados, dois quadros nas paredes laterais, um relógio derretido preso numa teia de aranha.
Compassos de um tema lascivo e melancólico alternam com compassos de um tema frenético e eufórico. (Para os apreciadores, faixa 5 de MC Djabi, Drum & Bass, Vol. 2.) As personagens conversam e dançam.

O prometido é devido, 6



MP (de pé, no meio da sala, olha em redor) – Isto está animado, sem dúvida.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) (espantada) – Então, já voltou?
(espantada) – Falou com o Professor Djabi?
GR (entra, e senta-se) – O quê? Não ouvi bem… com este barulho…
(entra, e senta-se) (intrigada) – Não era nada consigo. Mas diga-me, onde esteve?
(intrigada) – Estamos curiosas. Sabe, é que temos lido algumas das suas entradas.
GR – Então, se é assim, é como se já nos conhecêssemos. Dispensemos as apresentações e os parêntesis. Gosto das entradas assim, directas.
ABB (entra, vindo da esquerda) – Vejo que já arranjou companhia, Sr. Rubim.
(entra, vindo da esquerda) (decididamente) – Mas eu vim consigo, Sr. Baptista. Não me diga que vai fazer de conta que não me conhece.
(decididamente) – Desculpe, mas a senhora veio comigo. Não se afaste, que a primeira dança está prometida.
ABB – Acho bem, que eu já tenho um compromisso. Além disso, a sua aparição foi inopinada. Não me responsabilizo. Eu falo sempre à minha maneira e donde venho não interessa a ninguém.
(entra, vindo da esquerda) – Eu podia dizer o mesmo.
(decididamente) – Isso já foi o que disse da outra vez. Hoje veio comigo e não se fala mais nisso.
CA (entra, olha para os outros) – Eu a pensar que vinha cedo demais.
(entra, olha para os outros) (curiosa) – Claro que não, Clara!
(curiosa) – O que é que isso significa?
(entra, olha para os outros) – Nada, nada.
FMO (entra, com ar apressado) – Acho que me enganei na porta.
(entra, com ar apressado) (surpreendida) – Não se enganou, não.
(surpreendida) – Como é que sabe? Pode muito bem ter-se enganado.
FMO – Enganei-me ou não?
(entra, com ar apressado) – Já lhe disse, não se enganou.
(surpreendida) – Não faça caso.
PS (entra, e senta-se discretamente) – Então, mas isto era uma reunião ou quê?
(entra, e senta-se discretamente) (tímida) – Sr. Serra, deixe-me que me apresente.
PS – Não é preciso. Eu já a conheço.
(entra, e senta-se discretamente) – Já me conhece? Deve estar a confundir-me com outra.
(tímida) – Onde é que vai?
PS – Vou aos lavabos. É só um instante.
(tímida) – Olhe que isto não é nenhuma biblioteca vaticana ou salamantina…
OMS (entra, com ar enfastiado) – Eu sabia que não devia ter vindo.
(entra, com ar enfastiado) (desdenhosa) – Mas veio, e trouxe-me atrás. Estava agora tão bem a ler o Casmurro.
(desdenhosa) – Essa merda pretensiosa? Avise quando for ler, que eu vou fazer outra coisa.
OMS – Incorrigível! E piora de dia para dia. E que espécie de música é esta?
LQ (fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Que visão do caraças!
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) (sobranceira) – Chegue-se para o lado que eu quero ver também.
LQ – Veja, veja, veja à vontade.
(sobranceira) – O que há para ver? O quê?

O prometido é devido, 7



(corrigindo) – Deixe que me apresente!
(explicativa) – Veio sozinha? Muito prazer!
(corrigindo) – Sou filha de uma retórica menor.
(ríspida) – Vejo que já se conhecem.
(secamente) – E eu andava à sua procura. Porque se veio embora tão bruscamente?
(conciliadora) – Quem é aquela ali no canto a agitar os sintagmas?
(secamente) – Chame-a, faça-lhe sinal, senão ela não abre a boca.
(aparte, falando consigo mesmo) – Ei, malta! Ganda festa!
MP – Está boa, está. Nunca pensei.

O prometido é devido, 8



(espantada) – Estava a ver que já não o via mais. Então, falou com o Professor Djabi?
MP – O quê? Não estou a ouvir nada com este barulho…
(entra, e senta-se) – Viu o Sr. Rubim, Sr. Portela?
MP – Não, não o vi. Estava aí sentado ao princípio mas já não sei dele. Porque pergunta?
(entra, e senta-se) – Deixe lá. É um assunto nosso.
ABB – Afinal já se sabe o que disse o Professor Djabi?
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Eu estava lá, fui com ele.
(espantada) – Eu também fui.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Foi?
(espantada) – Fui. Isto é, fui consigo.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Desculpe, mas não entrou no consultório.
(espantada) – Não entrei? Não entrei? Pois não entrei. Já me lembro!
(ríspida) – Essas suas confusões...
ABB – Quem é?
(aparte, falando consigo mesmo) – Olhe, apareceu aí há pouco tempo. Quer que eu a apresente?
ABB – Podia ser que ela soubesse alguma coisa.
LQ – Olha, quem ele é! Sr. Baptista, há qualquer coisa que não bate bem. Eu até tenho vontade de dizer as minhas falas. Inacreditável!
PS – Isso veio do Kraus, ou quê? De manhã não lhe saem dessas. É drum & bass a mais com certeza…
(entra, e senta-se discretamente) – Drama e beiço!
PS – Vou fazer de conta que não ouvi. Afinal o que disse o Professor Djabi?
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – A mim não me disse nada.
OMS – Que pandemónio!
(surpreendida) – Entregue-se, entregue-se: se não pode vencê-los, junte-se a eles. Conhece essa mínima?
OMS – Diz bem: essa mínima.
(surpreendida) – Veja só o Sr. Oliveira, entregue às evidências. Eu não me importo, embora já tenha saído com ela.
FMO – ’bora lá, didas.
(entra, com ar apressado) – ’bora aí, nagem. Este ritmo é irresistível.
(surpreendida) – ’Tá ver?! Belo par! E o Sr. dança?
OMS – Nem vejo como é que hei-de fazer outra coisa. Afinal de contas, o que é que disse o Professor Djabi?
(tímida) (metendo-se na conversa) – Eu não sei… mas circula por aí qualquer coisa… de ouvido em ouvido... de boca em boca...
(metendo-se na conversa) – Pois circula, e já não é segredo nenhum… quase todas as manas estão ao corrente.
OMS – Manas?
(metendo-se na conversa) – Sim, sisters of the scene. As manas da cena.
MP – Desculpe-me, mas a senhora não tinha que se meter na conversa. Aliás, quem a deixou entrar? Isto era só para o pessoal da empresa.
(metendo-se na conversa) – Já cá não está quem falou!
CA – Isso é o que ela diz. Anda por aí a fatiar as conversas e depois diz que não é nada com ela.
(entra, e senta-se discretamente) – Olhe, eu não me importava que falasse comigo.
CA – O importante era saber o que disse o mestre Djabi.
LQ – Quem é o mestre Djabi?
GR – Deve ter tomado alguma coisa, este extasiado…
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Já sei o que disse o professor Djabi.
ABB – Juntem-se, juntem-se, que a didas' do Sr. Quintais traz novidades.
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Está nos lavabos. Numa das portas.
LQ – Eu até tenho vontade de dizer as minhas falas. Inacreditável!
OMS – Que outra vontade poderia ter?
(entra, vindo da esquerda) – Ir aos lavabos, por exemplo!
PS – Eu fui lá e não vi nada.
(sobranceira) – Sempre desconfiei das suas leituras…
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Garanto que se lia e bem.
CA – Acabe com o suspense, caramba!
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Bom, na verdade era só uma palavra.
MP – Só uma palavra?
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Dançai.

23 setembro 2005

Letargia, 1
















MP (de pé, no meio da sala, olha em redor) – Bem, já não deve aparecer ninguém.
GR (entra, e senta-se) – Ah! Que cansaço… Que invenção, o assento!
ABB (entra, vindo da esquerda) – Boas!
CA (entra, olha para os outros) – Bons olhos os vejam, senhores!
FMO (entra, com ar apressado) – Não me posso demorar. Aviso já.
PS (entra, e senta-se discretamente) – Cá estamos. De novo reunidos.
OMS (entra, com ar enfastiado) – Ao que vem a assembleia, afinal de contas?
LQ (fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) – Penosa visão!

Letargia, 2















MP – Não olhem para mim.
GR – Já começa com merdas…
MP – Ele é que me disse para aparecer.
GR – Diz isso, e depois não vem?
ABB – Já sabem do que a casa gasta.
CA – Qual casa?
FMO – Pois. Qual casa?
ABB – Não é a casa. É o Groucho.
PS – O que tem o Groucho?
ABB – Dividir e reinar, é o que tem.
OMS – Reinar e mangar, pois é. Conversas fiadas aí pelos cantos.
LQ – Eu, ao menos, não lhe dou confiança.
GR – Dá-lhe aforismos, imagino.
LQ – Deixe-se de graças, porque eu bem tenho visto as suas conversas a meio da madrugada.
CA – Mas afinal o que é que ele queria? Não era um clube de leitura?
ABB – Não era nada disso. Isso já lá vai...
OMS – Falou o casmurro-mor!
ABB – O que é que isso quer dizer? O quê, hein?
OMS – ’Tá-se bem.
FMO – Ai está?
ABB – Bom, o que ele disse foi que havia uma crise.
GR – Pois foi. Aliás, a palavra usada até foi letargia.
MP – Torpor.
LQ – Gosto dessa!
CA – Dormência.
FMO – Comigo, referiu-se a paralisia.
PS – Uma modorra.
OMS – Uma porra! Avancem! Que inércia!

Letargia. 3















MP – Disse que isto era um caso típico de writers’ blog
GR – Writers’ block, presumo…
LQ – Presume mal. Luís Quintais, ao seu dispor.
ABB – A mim, disse-me que se via bem que isto não podia continuar assim.
PS – Assim como?
ABB – Assim com aquele ritmo febril, que aquilo não era blog rhythm.
GR – Block rhythm?
CA – Que ritmo é esse?
FMO – Pois. Foi o que eu lhe disse quando me falou nisso: que era preciso postar ao ritmo dos mortais.
OMS – Deixe-se de sentenças piedosas.
PS – O Sr. Oliveira tem razão. Nas nossas mãos o verbo tornara-se um látego castigador – foi o que ele me disse. Que era preciso um uso mais judicioso.
OMS – Meu Deus! Que beatice pegada, Sr. Serra. Não esperava esse mais-que-perfeito de si, o grande letrinador.
ABB – Sempre desbragado, o Sr. Silvestre!
OMS – Má formação! Falta de comité central!
MP – Estamos a desviar-nos do assunto…
GR – E que responsabilidade temos nós? - explique-me!
FMO – Sim... que não estou a ver livre-arbítrio nenhum nesta farsa. Esta frase, por exemplo, quem a disse?
ABB – Fernando Matos Oliveira antes de me dar a palavra.
OMS – Fernando Matos Oliveira vírgula antes de me dar a palavra.
CA – O certo é que o bloqueio se mantém.
PS – Isso está bem de ver!
GR – A força do bloqueio é que o faz correr.
CA – A quem?
GR – Ora!, a quem há-de ser!
LQ – Que bloqueio?
FMO – Sempre a leste, este!

Letargia, 4















MP – O certo é que ele disse que isto ia acontecer, mais dia, menos dia…
CA – Writers’ blog, presumo…
LQ – Presume mal. Luís Quintais, ao seu dispor.
OMS – Trocar as falas é que não leva a lado nenhum.
LQ – Desculpe, mas a minha não foi trocada.
OMS – Mas pode trocá-la no prazo de cinco dias. É só levar o talão.
PS – Bom, o problema mantém-se. O que fazemos da modorra?
LQ – De quem?
GR – Da letargia…
ABB – Da crise…
MP – Do torpor…
CA – Da dormência…
FMO – Da paralisia…
OMS – Que inércia! Fechemos a chafarica duma vez!
LQ – Calma. Que eu gostei daquela!
FMO – Daquela?
OMS – O Sr. ainda não topou isto, pois não?
CA – Topou ou tapou?
OMS – Veja só as falas que ele lhe dá!
FMO – Quem? O Groucho?
OMS – Santa inocência!
GR – Não seja cifrado se não quer ser decifrado!
LQ – Isso veio do Kraus, ou quê? De madrugada não lhe saem dessas. É jazz a mais com certeza…
GR – E andar de pano à boca de cena – o que tem a dizer a isso?
MP – Calma! Que o chá está servido.

[continua]

O prometido é devido, 1




Um sapato velho, sala com duas entradas, vários sofás, uma mesa baixa, um rochedo lunar, outra mesa com várias cadeiras, estante na parede do fundo, dois candeeiros de pé, uma jukebox, dois candeeiros deitados, dois quadros nas paredes laterais, um relógio derretido preso numa teia de aranha.

O prometido é devido, 2



MP (de pé, no meio da sala, olha em redor)
GR (entra, e senta-se)
ABB (entra, vindo da esquerda)
CA (entra, olha para os outros)
FMO (entra, com ar apressado)
PS (entra, e senta-se discretamente)
OMS (entra, com ar enfastiado)
LQ (fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo)

O prometido é devido, 3



(de pé, no meio da sala, olha em redor) (espantada) – Mas o que é isto?
(entra, e senta-se) (intrigada) – Isto??…
(entra, vindo da esquerda) (decididamente) – É um deíctico.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) (espantada) – Ai é?!
(entra, vindo da esquerda) (corrigindo) – Bom, agora é mais uma interjeição!
(entra, olha para os outros) (curiosa) – O que é isto?
(de pé, no meio da sala, olha em redor) (explicativo) – Pois, é isso mesmo que estamos a ver.
(entra, com ar apressado) (surpreendida) – Já cá estão todas?
(entra, vindo da esquerda) (ríspida) – Todas não! Que eu saiba ainda faltam três!
(entra, e senta-se discretamente) (tímida) – Desculpem o atraso.
(entra, com ar enfastiado) (desdenhosa) – Ora foda-se!
(entra, olha para os outros) (espantada) – Tento na língua!
(entra, com ar enfastiado) (secamente) – Mas tento na língua o quê? Se isto já está vai com a rédea solta!
(de pé, no meio da sala, olha em redor) (conciliadora) – Mas isto o quê? Isso é o que eu gostava de saber…
(entra, e senta-se discretamente) (aparte, falando consigo mesma) – Agora é que eu já não estou a perceber…
(entra, olha para os outros) (espantada) – Olha quem vem a chegar…
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo) (sobranceira) – A didascália marou! Que chinfrim desgraçado!

O prometido é devido, 4



(espantada) – Mas o que é isto?
(de pé, no meio da sala, olha em redor) — Desculpe, mas quem dizia isto era eu!
(intrigada) – Isto??…
(entra, e senta-se) – E a senhora também me estava subordinada.
(intrigada) – Desculpe, mas isto é uma cooperativa.
(decididamente) – Não é um deíctico!
(entra, vindo da esquerda) — Tem a certeza?
(intrigada) – Pois tenho! É uma cooperativa e todas temos direito de voto.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Pois esse é que é problema!
(corrigindo) – Qual problema?
(entra, vindo da esquerda) — Está bom de ver qual é o problema: a cooperativa alargou-se de forma sub-reptícia.
(curiosa) – Sub-reptícia?
(entra, olha para os outros) — Pois foi: éramos oito e veja o que se passa agora.
(explicativo) – Desculpe, mas está nos estatutos.
(de pé, no meio da sala, olha em redor) — Mas que estatutos?
(surpreendida) – Nos estatutos da associação.
(entra, com ar apressado) — Não posso crer: isto é uma tomada do poder!
(ríspida) – Nada disso. Foi um alargamento democrático.
(entra, vindo da esquerda) – Democrático? Democrático isto?
(tímida) – Sim, se umas têm direito, as outras também.
(entra, e senta-se discretamente) – Não estava à espera disto.
(desdenhosa) – Mas disto o quê?
(entra, com ar enfastiado) — Ora foda-se!
(espantada) – A senhora também é sempre a mesma coisa.
(entra, olha para os outros) — Valha-nos isso!
(secamente) – Isso o quê?
(entra, com ar enfastiado) – A estabilização do referente.
(conciliadora) – Seja lá o que for, agora não interessa…
(de pé, no meio da sala, olha em redor) – Que incoerência, meu Deus!
(aparte, falando consigo mesmo) – Quanto tempo há espera desde momento…
(entra, e senta-se discretamente) – Há espera?!
(espantada) – Hé da emoção… não é todos os dias que o aparte entra na conversa.
(entra, olha para os outros) – O certo é que ficámos em minoria. Passámos de oito para vinte e três, e isso, por muito que vos custe, é que não se compreende.
(sobranceira) – Não há nada que diga o contrário, ou há?
(fica à porta, do lado direito, lança um olhar ao grupo todo)– A didascália marou! Que estardalhaço!

[continua]

22 setembro 2005

Rrose Sélavy e o efeito de espelho


«Seuls les hommes beaux sont sûrs d’eux, mais les hommes beaux ne sont pas faits pour l’amour : ils se demandent, au meilleur moment même, si cela leur va bien.»

Escrever com a luz (6)

(Foto-grafia de Tânia Araújo, aqui.)

21 setembro 2005

Crise

— Foi impressão minha, ou o senhor chamou-me?
— Deixe-se disso, Groucho, não o chamei e não foi impressão sua. Se quer conversa, diga logo.
— Não se trata de conversa. Começo a ficar inquieto, isso sim. O senhor está para aí há vários dias, sisudo, macambúzio, ninguém lhe arranca uma palavra. Intriga-me, e inquieta-me.
— Estou em crise, Groucho, só isso.
— Ah… crise… pessoal?
— Pessoal? Acho que sim, não vejo que outra coisa possa ser…
— Por pessoal entendo pessoal mesmo, coisas íntimas…
— Entende mal: é pessoal por envolver a minha pessoa, não a sua, embora, claro, o desfecho o atinja sempre.
— Como assim? Atinge-me? Desfecho? Tinha razão em ficar inquieto, já vejo.
— Não, homem, não se inquiete. A crise, etimologicamente, é um momento decisivo. Ou para um lado ou para o outro, percebe? cura ou morte. Eu tento decidir-me... Devo falar ou ficar em silêncio? Devo escrever ou falar? Devo publicar ou devo conversar? Devo… entre a palavra e o silêncio, posso decidir-me? Ora, Groucho, vá-se embora.

Trinta (drama pouco caseiro com desenlace audiovisual)

― …mas preocupa-o assim tanto?
― Claro, Groucho, claro que me preocupa. 30. Veja bem: 30!
― E costumavam ser muito mais que 30?
― O dobro. O dobro, fora os que ficavam à porta.
― Ah sim? E ficavam muitos à porta?
― Durante largos anos, foram centenas. Veja bem: centenas!
― Centenas?! Para estudar essas coisas? Hmmm, deve estar a exagerar…
― Não estou nada! Enfim, depois foram sendo menos. E finalmente nenhuns.
― Bem, mas sempre há 30 dentro de portas. Podia ser pior.
― Não sei se podia. Já pensou: daqui a um ano quantos serão? 20? 15? 10?
― O senhor, hoje, acordou pessimista.
― Engana-se. Já estava pessimista quando adormeci ontem. E só mesmo o Groucho para imaginar que daqui a um ano as coisas não pioram mais ainda.
― Cumpre-me evitar que este clube mergulhe na melancolia, só isso. Faço por merecer o que me pagam.
― Não sei se conseguirá. Paira uma nuvem escuríssima sobre o futuro das humanidades.
― Já tinha saudades de ouvir alguém, por aqui, filosofando nesse estilo alegórico.
― Não estou a filosofar e a alegoria, neste caso, é praticamente uma descrição. Até nos Estados Unidos a situação é catastrófica. Sabia que já tem havido despedimento de professores? As humanidades estão em perigo por toda a parte.
― Hmmm… Mesmo na ilha de Pitcairn?
― Na ilha de Pitcairn?! Que raio de pergunta é essa? Sabe perfeitamente que a ilha de Pitcairn não tem espaço nem gente que cheguem para haver lá universidades!
― Concluo, então, que pelo menos na ilha de Pitcairn as humanidades estão a salvo da tal nuvem escuríssima.
― Está a acusar-me de generalização abusiva?
― Não! Sou um mero mordomo, longe de mim a pretensão de acusar alguém neste clube seja do que for. A intenção foi outra.
― Qual?
― Era só uma maneira muito oblíqua de convidá-lo para assistir comigo, daqui a poucos minutos, a um famoso cruzar de pernas…
― Cruzar de…? O Groucho…? Vai passar na…? Daqui a poucos minutos? Mas quantos?
― (Olha para o relógio, ergue a cabeça e diz, muito sério:) Menos de 30.

20 setembro 2005

Lobotomia



Joaquín Jordá, Nuria Villazán, Monos como Becky [tít. orig.: Mones com la Becky], 1999. Género: documentário.

É só para subscrever


Isto, se não for tudo.

19 setembro 2005

Escrever com a luz (5)

(Foto-grafia de Tânia Araújo, aqui.)

18 setembro 2005

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Humanas, Ciências: 1. São «moles», por oposição às lógico-matemáticas, que são «duras». 2. «Honni soit qui mal y pense!». 3. Para alguns são uma contradição nos termos (um oxímoro), por razões óbvias mas que levam tempo a explicar. 4. Os cientistas humanos, contudo, defendem que sem elas a Humanidade ficará mais pobre e amputada daquilo que mais profundamente a define. 5. Quanto àquilo que «mais profundamente define» a Humanidade, é coisa também óbvia mas que leva tempo a explicar.

Humanismo: 1. Para uma certa acepção, convém saber latim (e, idealmente, grego). 2. Para uma outra, é fundamental ter uma biblioteca. É, pois, duvidoso que Cristo fosse um humanista. 3. Para uma outra, ainda, o paradigma a seguir é a Madre Teresa de Calcutá (ou Catalina Pestana). 4. Também tem os seus paradigmas negativos. Por exemplo, José Mourinho (v.). Ou Herman José (v.). Ou Cavaco Silva.

Hussein, Saddam: 1. Uma vítima das maquinações imperialistas da administração neo-conservadora de Bush. 2. Enterrou as Armas de Destruição Maciça tão bem e tão fundo que ninguém as consegue encontrar. Mas é uma questão de tempo. 3. A História há-de fazer-lhe justiça, se o tribunal não o fizer entretanto. 4. A verdade é que no tempo dele as mulheres iraquianas não eram obrigadas a usar lenços ou véus e agora estão a um passo da burka. 5. «Tremendo bunker, aquele onde o encontraram! Nem o mais demoníaco dos vilões do 007 conseguia congeminar uma coisa tão High Tech!» 6. Rebobinar, e fruir como se se tratasse da cerimónia dos Óscares: «Ladies and gentlemen, we got him!»

17 setembro 2005

Berlinalia - Frauenbewegung

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Hóquei em patins: 1. «Os melhores do mundo, carago! E com arte, estilo e espírito de finesse, ao contrário dos espanhóis, que sempre jogaram à bruta e nunca tiveram um Livramento, nem nada que se parecesse!» 2. É tão bom, quando um título de campeão do mundo se resolve entre nós e os espanhóis! Tão aconchegado e familiar…

Hospitalidade: 1. «Lá isso, é connosco!» 2. O grosseirão do rei de Calecute recebeu Vasco da Gama de forma muito pouco hospitaleira, mas ele soube mostrar-lhe, na viagem seguinte, com quantos paus (e bombardas, e forcas) se fazia a hospitalidade lusitana. 3. «Eles é que começaram…» 4. Apesar das aparências em contrário, tem mais a ver com hotéis do que com hospitais, pois a hospitalidade destes últimos nem sempre é desejável.

R.L.Stevenson lançando os fundamentos epistemológicos para a invenção do Messenger

"...e a conversa, que consiste numa troca harmoniosa entre duas ou mais pessoas, é de longe o mais acessível dos prazeres."

Versus in porta latrinae scribendi, 8

Cuba no es un grafitti.



[Biblioteca Nacional de Espanha, Madrid]

Continua a ser verdade


«[Coleman Hawkins] is one of the three or four all-time giants of the tenor saxophone…»

Joe Goldberg, em 1960

16 setembro 2005

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Homofobia: 1. Patologia que se cura com muita conversa e algumas leituras. 2. Ter um filho gay pode ajudar. 3. Às vezes, ir a um bar gay, mesmo que por engano, também resulta. 4. Em Viseu, porém, não há tratamento que funcione. Aliás, nem é lá reconhecida como patologia mas como saudável demonstração de virilidade beirã.

Homossexualidade: 1. No futebol não há disso. 2. Na política abunda, menos no PCP. 3. Nas artes, então, nem é bom falar.

Escrever com a luz (4)

(Foto-grafia de Tânia Araújo, aqui.)

Sexo e fonologia

«Três jovens Chleus, na falésia, exigem uma lição de francês. “Como é que se diz…?” Ao responder-lhes, reparo que o aparelho sexual cabe todo num paradigma oclusivo: cu / cona / caralho. Eles próprios, imediatamente filólogos, ficam admirados.»
Roland Barthes, Incidentes (tradução de Tereza Coelho e Alexandre Melo)

15 setembro 2005

Escrever com a luz (3)

(Foto-grafia de Tiago Brás, aqui.)

Ética

«Mas o sentido [das palavras do ex-sargento Steinlauf do exército austro-húngaro, prisioneiro no Lager de Monowitz] era este, que não esqueci, nem então nem depois: […] Que somos escravos, privados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, condenados quase com certeza à morte, mas que uma faculdade nos restou, e temos de a defender com todo o vigor porque é a última: a faculdade de negar o nosso consentimento.»
Primo Levi, Se Isto É um Homem (tradução de Simonetta Cabrita Neto)

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Holocausto: 1. Metáfora um nadinha incendiária para referir o genocídio dos judeus pelos nazis. 2. Na realidade, começou séculos antes, com a expulsão de judeus de Portugal e várias partes da Europa ou com a instituição dessa prática regular, no Leste europeu, de nome pogrom, que consistia em caçar, matar e roubar judeus, abusar das mulheres, etc. 3. Os nazis, mais sóbrios, chamaram-lhe Solução Final e, com a ajuda da Krupp, da Siemens, da Mercedes, da I.G.Farben, etc., montaram uma máquina bastante eficiente e discreta para aplicar a dita Solução. 4. A responsabilidade foi por isso do anti-humanismo da Máquina, e da Razão Instrumental herdada do Iluminismo, e não dos indivíduos concretos que carregaram, um tanto contrafeitos, nos botões mas que o fizeram como quem desempenha um papel atribuído pelo Anjo da História. 5. Há muitos testemunhos dele, mas as provas são escassas. É verdade que há Auschwitz e uns fornos, mas como evidência empírica não é grande coisa. 6. Há quem ache que é um evento único na História da Humanidade (pode dizer-se antes «um unicum», para ser mais definitivo) e há quem ache que, ao defendê-lo, se esquece o genocídio dos indígenas da América do Norte e do Sul, dos congoleses exterminados por Leopoldo II, etc. 8. A falta de evidência empírica, a abundância de testemunhos e o impensável do horror fazem com que muitos achem que o holocausto é «irrepresentável». De modo a demonstrá-lo, Claude Lanzmann fez um longo documentário só com conversa (Shoah), sem mostrar nada, mas descrevendo verbalmente, com uma minúcia obsessiva, tudo o que tinha acontecido. Outros, como Pontecorvo ou Spielberg, atreveram-se a «representá-lo» por imagens e tiveram de ouvir das boas. 9. Os judeus, especialmente os sionistas, criaram em seu torno uma indústria bastante rentável, feita de testemunhos, memoriais, museus, com propósitos identitários, magnificadores e ainda inibidores em relação a qualquer crítica à sua actuação na Palestina. 10. Por sua causa, e da obsessão de Hitler e dos nazis por Wagner, a música deste não se pode ouvir em Israel, o que os partidários de Verdi não lamentam excessivamente.

Ainda não?

— Bom dia, Groucho. Então, já podemos voltar?
— Receio que não, senhor. Mais uns dias…
— Mas então não tinham resolvido isso?
— As baratas, parece que sim, está limpo de vez. Os ratos é que ainda por aí andam. Não se consegue. Os senhores não arranjam um gato?

14 setembro 2005

História das Ideias

Marxism was, after all, the only great social movement that was invented by a Ph.D.

Andrej Grubacic & David Graeber, aqui.

Escrever com a luz (2)


(Foto-grafia de Oleg Pegasoff, aqui.)

13 setembro 2005

post it

postar

12 setembro 2005

Toques polifónicos, 3

















Rabo de Peixe…
eu sou de Rabo de Peixe, mas não tenhas medo
o garrafão dá-me sede, eu sou um grande bêbado
olha para a pistola, eu nunca fui para a escola
passeando lá na rua, vendendo a coca-cola

eu já vou-me embora, mas não é agora
meu coração corre sangue, isso é uma vida louca
minha mãe não chora, isso é tudo para ti
quanto eu tava na cadeia, távas lá pr'a mim

Refrão
Eu não vou chorar
Esta vida não era para mim
(bis)


Sandro G

Entartete Kunst



«Péret pediu, se fosse possível, pintura e desenhos de loucos visto estarem a organizar uma exposição Internacional de trabalhos de doidos varridos. Disse-me ele que para não se pagarem direitos na alfândega seria bom ser o próprio manicómio a enviar ou então serem vocês a mandar mas não dando como obras de arte o conteúdo do ‘embrulho’, mas sim como o que verdadeiramente são: obras de loucos – intercâmbio científico.»

Carta de António Maria Lisboa a Cesariny e C.ª
Paris, 12/13 de Março de 1949

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Heterónimos: 1. No início havia os de Fernando Pessoa, que os definiu como entidades ficcionais com nome próprio, obra, biografia (com ou sem vida sexual), horóscopo e tudo. 2. Depois, o conceito sofreu uma expansão semântica e passou a significar coisas tão variadas como o papel de Manuel Monteiro, em tempos, em relação a Paulo Portas, o de Reinaldo Teles em relação a Pinto da Costa, o de Miguel Portas em relação a Francisco Louçã, ou o de Dias Loureiro em relação ao candidato presidencial Cavaco Silva. 3. Há pré-heterónimos, proto-heterónimos, quase-heterónimos, heterónimos assim-assim, heterónimos infantis, adolescentes e adultos, e há Teresa Rita Lopes, a mãe de todos eles.

Híbrido: Diz-se do milho e dos cyborgs (v.).

11 setembro 2005

Noland, little rouges

omnipresente, o zumbido

omnipresente, o zumbido da refrigeração do disco rígido fazia de baixo contínuo, sobre o qual as notas do teclado, palavra a palavra, e frase a frase, delimitavam compassos, alternando longos momentos de quietude com irrupções continuadas de percussão, sublinhadas, de vez em quando, pelos estalidos da persiana e da porta provocados pelo vento, que entrava pela janela semi-aberta, por onde subiam também vozes de cães, motores e crianças, que o gemido da caixa parecia submergir com o seu canto eléctrico, companheiro inseparável do bombardeamento de electrões com que o tubo de raios catódicos lhe colonizava o nervo óptico, negando-lhe o entendimento da notação que a máquina lhe arrancava à mão, o tendão da linguagem paralisado pela escuta.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Helder, Herberto: 1. O nosso grande recluso: cose-se com as paredes, para não ser fotografado. 2. Mal agradecido, recusou uma estátua no Parque dos Poetas, em Oeiras. 3. Pela mesma razão de má formação moral, já recusou vários prémios literários, alguns deles bem vultuosos. 4. Começou por reunir a sua poesia num volume de nome (gramaticalmente duvidoso) Poesia Toda, hoje chamado Ou o Poema Contínuo (outra designação gramaticalmente questionável). 5. O tomo pesa hoje cerca de 1 kg e é uma arma de arremesso considerável face a críticos, júris, prémios, sem descurar todos os poetas que desde os anos 60 tentam ser o novo Herberto Helder (para a geração actual, cf. Jorge Melícias). 6. Os jornalistas, especialmente os da TSF, os estudantes universitários, os actores e actrizes, quando interrogados sobre o que andam a ler, dizem sempre «Herberto Helder». Miguel Veiga também, nos intervalos de Eugénio de Andrade.

Hemiciclo: 1. Usa-se quase sempre para referir o salão da Assembleia da República em que decorrem os debates, quando os jornalistas querem variar de AR ou Parlamento. 2. Significa «meio ciclo», o que tem a ver com a intensidade das ondas eléctricas que percorrem os cérebros dos deputados durante os debates. 3. Significa também «pela metade», ou seja: a sala está meio cheia, os deputados estão meio atentos, as intervenções são meio sérias, o governo está a fazer meio frete, etc. 4. Significa ainda «semicírculo», o que o permite distinguir de uma praça de toiros.

Escrever com a luz (1)

(Foto-grafia de Tânia Araújo, aqui.)

Por fora

Verde amareladas, as folhas de plátano

nas palmeiras, luz e tal
do canto do jardim sobe qualquer coisa
escura e vertical como um cedro

e devo estar em casa,
assim,
entendendo nada.

10 setembro 2005

Berlinalia - Trauerspiel

09 setembro 2005

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Guerra (Colonial): Estava ganha.

Guerreiro, António: 1. Leva o seu trabalho de crítico muito a sério. 2. Por isso mesmo, tende a privilegiar poetas e autores «críticos». 3. Prefere Benjamin (v.) a Adorno (v.) e qualquer deles a Eduardo Prado Coelho, de quem já gostou mais. 4. Tem um gosto ecuménico, pois aprecia Maria Gabriela Llansol (v.), Rui Nunes, Joaquim Manuel Magalhães (v.), Manuel de Freitas, José Gil e Silvina Rodrigues Lopes. 5. Não se percebe é que não aprecie Fernando Dacosta ou Saramago. 6. «O único crítico do Expresso que vale a pena ler, digam o que disserem!».

Gulbenkian: 1. Já conseguiram acabar com as Bibliotecas Itinerantes, a Colóquio/Artes, as Jornadas de Música Antiga, os Encontros de Música Contemporânea, o Acarte e o Ballet. 2. Seguem-se as edições FCG, a orquestra, a Colóquio/Letras, etc. 3. Quando conseguirem extinguir todos esses elefantes brancos, teremos enfim uma Gulbenkian para o século XXI.

Guterres, António: 1. Apesar de tudo, Santana Lopes (v.) foi pior. 2. «Ao menos, livrámo-nos do padre Melícias!». 3. Está muito bem no cargo de Alto Comissário para os Refugiados, embora devesse emagrecer um bocadito pois o contraste entre a magreza dos refugiados e a papada do Alto Comissário afigura-se pouco cristão.

Ways of Lovemaking




















Baby, please turn yourself around
So I can love you good
I'll make you feel so good
Just like you want me to


«You sure love to ball», Marvin Gaye

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Gravidez, Interrupção Voluntária da: 1. Perífrase que se pode usar por inteiro ou então, mais para iniciados, IVG (não confundir com IVA). 2. Usa-se no Parlamento Europeu, nos parlamentos nacionais e em debates de políticos na TV (Jorge Coelho, por exemplo). 3. A direita prefere dizer «aborto» (v.), abrindo sardonicamente as vogais. 4. A esquerda mais operária (a da CDU, com Odete Santos (v.) à cabeça) também não tem muita paciência para a perífrase, preferindo aborto e derivados: abortadeira, por exemplo. 5. O Bloco de Esquerda (v.) oscila entre IVG e aborto. 6. O falhanço da expressão no seu projecto de higienização de «aborto» mostra bem como os princípios da economia e da ausência de pudor governam a linguagem.

Grunge: 1. Belos tempos em que não era preciso passar as camisas, sobretudo as de flanela! 2. Pode soar a luta de gatos, mas é música grunge. 3. Um apelo irredentista à depressão pela depressão. 4. «A culpa foi da Courtney Love, essa galdéria, que o moço até era bom moço.»

Guantánamo: 1. O equivalente americano da estância turística de Varadero, em Cuba. 2. Que se saiba, os talibans e outros membros da Al Qaeda que lá se encontram não se queixam.

08 setembro 2005

Berlinalia - Treffpunkt

Feia Biologia


Passados anos, o Roque lembrou-se daquelas duas professoras do 9º Ano, a ‘stora de história e a ‘stora de biologia. Delas, a bióloga era a simpática, embora a sorrir fosse parca; a historiadora tinha sempre um sorriso a condizer com a boca, mas para os alunos era bem mais lixada a dar notas. Além do mais, vestia roupa sonsa, de quarentona que não era. Bem melhor, dizia o Roque, a ‘stora de biologia nos inícios dos anos 80, que se enfiava em meias de rede, rendilhado de favos de mel, para já nem falar da ocasional mini-saia. Para a professora de Biologia não havia pessoas feias. Ela não se cansava de repetir – fê-lo ao longo de todo o ano lectivo – que não havia nem mulheres nem homens feios. Só é feio – dizia nas aulas de biologia – quem tem algum defeito físico. Passados anos também, o Roque lembrou-se que a professora de história não tinha o antebraço esquerdo. Nem ele nem ninguém da turma tinha notado, naquele ano do ensino secundário, que era assim. Quer dizer, viam a ‘stora de história sem o antebraço esquerdo, mas não a notavam com um antebraço esquerdo em falta. O Roque, hoje – sem nunca ter sabido porquê – é historiador, e sempre que pode nega qualquer verdade à feia feia da biologia.

Toques polifónicos, 2












Ta muda tenpu, ta muda vontadi,
Ta muda ser, ta muda konfiansa;
Tudu mundu é fetu di mudansa,
Ta toma senpri nobus kolidadi.

Sen nunka pára nu ta odja nobidadi,
Diferenti na tudu di speransa;
Máguas di mal ta fika na lenbransa,
Y di ben, si izisti algun, ta fika sodadi.

Tenpu ta kubri txon di berdi manta,
Ki di nébi friu dja steve kubertu,
Y, na mi, ta bira txoru u-ki n kantaba

Ku dosura. Y, trandu es muda sen konta,
Otu mudansa ta kontise ku más spantu,
Ki dja ka ta mudadu sima kustumaba.


Luís de Camões,
tradução para cabo-verdiano de José Luís Tavares

07 setembro 2005

Um livro que falasse [com a voz de Lou Reed]




















Talking Book

I wish I had a talking book
That told me how to act and look
A talking book that contained keys
To past and present memories

A talking book that said your name
So if you were gone, you'd still remain
More than a picture on a shelf
In imagination I could touch

A talking, talking book

I wish I had a talking book
Filled with buttons you could push
Containing looks and sights, your touch
Your feel, your breath, your sounds, your sighs

How much I'd bluster to ask it why
One must live and one must die

I wish I had a talking book
By my side so I could look
And touch and feel and dream, a look
Much bigger than a talking book
A taste of loving future and past
Is that so much to really ask
In this one moment's time and space
Can our love really be replaced
By a talking book

Can our love really be replaced
By a talking book
Can our love really be replaced
By a talking book
Can our love ever, forever be replaced
Can our love ever be replaced

Can our love ever be replaced
(can our love really be replaced)
By a talking book


Lou Reed

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Graffiti: 1. Expressão artística inaugurada em Portugal pela extrema-esquerda antes e depois de 25 de Abril de 1974, com especial destaque para as obras assinadas pelo MRPP. 2. Faz-se, hoje em dia, com sprays carotes e a tela são paredes, comboios, automóveis e tudo o que tenha uma certa dimensão e/ou esteja mesmo a pedi-las. 3. O filistinismo contumaz das forças da ordem impede-as de reconhecer e apreciar a arte transgressora dos grafiteiros, que contudo as instituições do «artworld» (v.) abraçam, sem preconceitos. 4. Não se compreende que não haja bolsas de criação artística para os seus praticantes. 5. Não se compreende também que o IPPAR (v.) ainda não tenha começado a classificar algumas paredes grafitadas (ou carros ou carruagens da CP) como monumentos nacionais.

Gramática: 1. Edite Estrela é uma especialista, mas nem isso a impediu de cometer uma gaffe numa carta da Câmara de Sintra aos munícipes. 2. Como a Oficina do Livro tem demonstrado (mas o exemplo tem sido perfilhado por muitas outras editoras), não é preciso dominar a gramática para ser um/a romancista ou cronista de sucesso. Bem pelo contrário. 3. Afinal de contas, Saramago ganhou o Nobel a escrever aquelas frases imprestáveis para manuais ou testes escolares…

Toques polifónicos, 1


















Refrão

Eu não vou chorar
Esta vida não era para mim
(bis)

Sandro G

Virtuosa Benfeitoria

"Masturbação
A bem da Nação
Masturbação
A bem da Nação
Masturbação
A bem da Nação"


[...]



EnaPá 2000, És muita linda.

Contribuição positiva


— Bom dia, Groucho.
— … hummm… já lhe vejo o tom da galhofa…
— Qual quê! Não tente agora dispensar didascálias, já deixámos isso para o Sr. Portela. Quero dar-lhe uma contribuição… positiva.
(Riem-se ambos. Moderadamente.)
— Estou convencido de que a sua proposta foi recebida com, digamos, frieza, porque não tratou do aspecto decisivo: o nome.
— Que nome? Do clube? Eu disse expressamente Clube de Leitura Casmurro. Está aqui o link que não me deixa mentir.
— Não é isso, homem, refiro-me ao próprio nome da coisa, da entidade, disso que quer promover. Clube de leitura é vulgar, confunde-se, parece coisa de senhoras ociosas. Para tudo é preciso nome novo, palpitante, rutilante, principalmente quando a ideia não é nova. Ponha os olhos no nosso clarividente Instituto do Livro: quando quis promover coisas dessas para cativar leitores, chamou-lhes comunidades de leitores… Veja a graça, a subtileza, o refinamento. Não é um clube, não é uma corporação, não é uma agremiação, não é um ajuntamento, nem uma incorporação: é uma comunidade. Gente que partilha algo comum, que tem algo em comum, quero dizer, suponho que a leitura ou um livro. Muito sofisticado.
— Ah, estou a ver… mas abomino a palavra comunidade e…
— Também eu, Groucho, também eu. Mas há outras. Por exemplo, círculo: círculo de leitura.
— Nada sofisticado, desculpe, se é esse o seu critério. Persisto no clube, se não se importa.
— Ângulo de leitura?
— Ângulo?
— Sim, vêm pessoas de várias lados, de várias direcções, e encontram-se num ponto comum, numa esquina virtual, que forma um ângulo, ou aliás vários ângulos e…
(Riem-se ambos com gosto.)

Identidade

Poderia descrever-me como um humano
cheio de sede,

à beira do mutismo, contrafeito
sob a álgida presença de uma miragem

- wishful thinking.
Poderia descrever-me ainda

como um bicho que deslizasse
no mapa da mais plana existência.

Hoje, soberano de uma visão lúcida,
a de ver-te chegar,

não me sobra sequer a pretensão
de uma alegoria

que não seja esta:
a mais funda comunidade de virtude

traça os seus desígnios, os seus prodígios
no sangue de uma cidade-espécie por classificar.

Um amplexo de sonho
protege esse outro mapa,

e devolve-me a capilaridade
com que se conquista

a alegria.

Ludolf de Jongh pesquisando a pré-história dos clubes de leitura

Por um clube acessível


- Um momento, Groucho; só uma perguntita.
- Não há perguntas para ninguém. O Sr. já me anda a analisar o clube de leitura antes mesmo da sua fundação!
- Olhe que fundação é uma palavra forte, neste contexto. A pergunta…
- Seja breve, meu caro.
- Irra! Queria apenas saber se qualquer um pode entrar no seu clube.
- O Sr. Oliveira sabe muito bem que um clube não é clube sem aparato normativo.
- Suspeitava. E qual é ele? É que já ouvi falar por aí na Inês Pedrosa, na Helena Matos, enfim, em duas leituras pouco acessíveis.
- Tudo depende do meu estado de espírito.
- Como assim? Então agora o aparato normativo depende dos seus humores?
- Santa inocência! É como lhe digo, depende do meu estado de espírito. O Sr. já tem idade para saber que a normatividade é uma escrita humorística.

Conspirações, 3

― Hmmm, o que serão estes risinhos aqui ao lado?
― Parece que o Groucho e o Sr. Baptista estão muito divertidos.
― Pois, pois, divertidos…
― Então?
― Aposto que andam a congeminar alguma marosca para a próxima reunião.
― Ora, Sr. Rubim, estamos num clube de cavalheiros do século XXI, não estamos num bando de conspiradores do século XIX.
― Com sua licença, Sr. Oliveira, mas do século XIX é essa metafísica do Progresso em que eu nunca embarquei. A humanidade sempre conspirou e sempre há-de conspirar.
― Desconhecia essa lei antropológica. Suponho que venha enunciada nalguma obra de Malinowski, não?
― Vem enunciada no livro da vida, Sr. Oliveira, no livro da vida. Já leu?
― Pelos vistos, saltei essa página. Já sei! O senhor podia trazê-la para uma sessão do futuro clube de leitura! Que me diz?
― Digo-lhe que, mesmo se me desse para rir, pode ter a certeza que não seria com gosto.

06 setembro 2005

E mais outra

— Groucho, venha cá, olhe esta divisa para o seu clube de leitura: Fora (d)o clube, o livro é o melhor amigo do homem; dentro do clube, está demasiado escuro para ler. Que tal?
— Grande ideia, senhor, grande ideia.
(Riso amarelo.)
— Vá lá, Groucho, já viu as vantagens de um clube de leitura na semi-obscuridade? Só leríamos textos que conhecêssemos de cor, mais ou menos como aqueles cegos da história, aqueles que jogavam golfe à noite para não atrapalharem os outros jogadores.
— Grande ideia, senhor, grande ideia.
(Riem-se ambos com gosto.)

Analisando o clube de leitura

Outra ideia

— Outra ideia, Groucho, outra ideia. Ora tome nota…
— Por favor! se o senhor não pretende alinhar no clube de leitura, escusa de escarnecer. Passamos bem...
— Passamos? Quem é esse “nós”? Quem mais, além de si, entra nessa coisa?
— A Inês Pedrosa, senhor.
(Riem-se ambos com gosto.)
— Ah, Groucho, grande ideia. O que seria…
— Ou a Helena Matos, para aporrinhar a menina Clara.
(Riem-se ambos com gosto.)
— Ah, Groucho, grande ideia. O que seria de nós sem as didascálias…
— Nada, senhor, nada. Ou tudo. Já reparou no tremendo desafio: dar a entoação certa, dar a perceber que há risos ou lágrimas, sem intervenções parentéticas, só com as mesmas falas risonhas ou lacrimosas…
— Ah, Groucho, grande ideia. O seu clube de leitura contempla didascálias?
— Certamente. Tenho mesmo intenção de promover algumas sessões dedicadas a peças de teatro, literárias, para debater apenas as didascálias. Mas se calhar vou deixar a ideia para o Sr. Portela: quem sabe ele consegue escrever uma peça só com didascálias.
— Ah, Groucho, grande ideia.
(Riem-se ambos com gosto e muito barulho.)

Especulando sobre o clube de leitura

Uma comodidade

— Não me vai dizer que tenho feito falta, ou vai?
— Não, meu caro senhor, não chego a tanto. Mas continuo a insistir. Sabe que está longe de ser um dos cavalheiros da minha predilecção…
— Sei, e agradeço a franqueza, ó alma simples!
— Perfeitamente, senhor, perfeitamente. Mas acho lamentável que nada tenha dito, nem num sentido nem noutro, a respeito da minha proposta.
— Ora, Groucho, essa proposta provocou a maior comoção que este clube já conheceu. Vai para aí uma confusão que nem se acredita… E porquê, afinal? A ideia em si mesma não tem pés nem cabeça… confesse que resolveu gozar um pouco connosco…
— De todo, meu caro senhor, de todo. Era muito séria, essa minha proposta.
— Pois, se insiste, digo-lhe já qual vai ser a minha posição: só aceito, se esse clube de leitura restaurar a prática de leitura individual que vigorava na Grécia antes de Aristóteles.
— Agora é o senhor a divertir-se à minha custa.
— De todo, Groucho. Sabe decerto que o livro conheceu diferentes formas e tamanhos, nem todos fáceis de manipular. Parece que na Grécia as pessoas que liam na verdade não liam, tinham um escravo que segurava o livro e o lia em voz alta: os leitores, no sentido que hoje damos à palavra, só usavam do corpo os ouvidos, para ouvir o que o escravo lia. Parece também que o Aristóteles foi o primeiro filósofo a ler ele próprio os livros… imagine a revolução. Ou imagine que, em vez de ler, sozinho, no seu quarto, ou que nós, em vez de estarmos aqui cada um a ler para seu canto, tínhamos alguém, um leitor ou uma leitora, sentadinhos ao lado, a ler em voz alta e, ponto muito importante, a segurar no livro. Que me diz? Isso parece-me o único clube de leitura aceitável nos dias de hoje.
— Insisto na minha: está a divertir-se à minha custa. Onde entra nisso a ideia de clube?
— Não é óbvio? O clube teria esses leitores ou leitoras como tem jornais, bilhares, poltronas, estantes. Uma comodidade. Ou um utensílio, se quiser ser mais neutro. Um homem chegava aqui, sentava-se, chamava um dos leitores e pedia-lhe «leia-me alguma passagem adequada ao meu estado de espírito». O leitor, se fosse perspicaz e competente, sacava do livro adequado e lia. Quer melhor?

van der Weiden ponderando seriamente a ideia de um clube de leitura

Berlinalia - Memorial

Conspirações, 2

CASMURRO NÃO IDENTIFICADO (CNI): Quem é que há-de ser?

OUTRO CASMURRO NÃO IDENTIFICADO (OCNI): Até podia ser eu.

CNI: Mas foste tu?

OCNI: Claro que não fui!

CNI: Isso sei eu. Está-se mesmo a ver quem foi…

OCNI: Pode ter sido qualquer um. Até podes ter sido tu.

CNI: Deixa-te de brincadeiras.

OCNI: Se calhar, foste mesmo. Andas sempre com ideias novas…

CNI: Era bom, era. E de qualquer maneira as minhas ideias não são só novas, são boas.

OCNI: Dizes tu.

CNI: Pois digo. E garanto-te: clubes de leitura não fazem o meu estilo.

OCNI: Ninguém diria. Já espalhaste para aí tanta citação…

CNI: Não tem nada a ver. Espalhar é precisamente o contrário de um clube: funciona ao calha, ao passo que o clube é uma coisa organizada.

OCNI: Mas achas mesmo que foi o coiso? Ele quase nem se pronunciou.

CNI: Et pour cause… Chiu, agora cala-te!

OCNI: Calo-me ?!

CNI: Sim, cala-te que ele vem aí…

Berlinalia - Memorial

Conspirações

IMPOSSÍVEL SABER QUEM FALA (ISQF): Mas afinal quem foi o gajo que teve a ideia?

IMPOSSÍVEL SABER QUEM FALA 2 (ISQF2): Então não sabes?

ISQF: Tenho uma suspeita.

ISQF2: Olha, deves ser o único que ainda vai nessa fase…

ISQF: Então, confirma-se?

ISQF2: Claro que se confirma!

ISQF: Eu sabia!

ISQF2: Sabias ou suspeitavas?

ISQF: Sabia, no fundo sabia, tinha a certeza absoluta!

ISQF2: Pois.

ISQF: A certa altura, até disse ao gajo: eh pá, esta ideia foi tua, não foi?

ISQF2: E ele?

ISQF: E ele e tal, ‘tás a ver, fez-se de esquisito e no fim…moita carrasco. Nada.

ISQF2: É mesmo o estilo dele. O Groucho é que o topa. Está sempre a dar-lhe para trás.

ISQF: Acho que já nem se falam.

ISQF2: Não admira. Um gajo que faz tudo pela calada…

ISQF: Mas o que é que lhe passou pela cabeça? Um clube de leitura?!

ISQF2: Qual é o espanto? Ele faz mais alguma coisa na vida, além de ler?

Ordem de trabalhos: as regras, 1 (allegro cappriccioso, con spirito)


















[Sobe o pano]
ABB – Os senhores não ouviram umas vozes quando vínhamos a chegar?
FMO – Umas vozes? Eu não ouvi nada.
OMS – Nem era preciso dizer…
CA – Eu ouvi qualquer coisa, mas não posso garantir que fossem vozes. Podia ser uma corrente de ar.
PS – Uma corrente de ar?
MP – Acho que o Sr. Baptista tem razão. Eu também ouvi umas vozes.
LQ – Ouvir vozes? Isso é o mais natural. Eu estou sempre a ouvi-las.
GR – E já foi ao médico?
LQ – O Sr. acha que é um caso médico, é?
GR – Não sei. Mas podia ser um sintoma…
LQ – Um sintoma? Um sintoma de quê, vamos lá a saber?
FMO – Pendurar-se no pano... ouvir vozes…
LQ – É precisamente esse o problema dos leitores.
GR – Dos leitores?
CA – Sim, ler no mundo os seus sistemas.
ABB – Exactamente. Alegorizarem as leituras.
CA – Interpretarem os signos como sintomas.
FMO – Não estou a perceber.
OMS – Nem era preciso dizer…
GR – O Sr. Serra tinha qualquer coisa a dizer. Aliás, tinha uma ideia.
CA – Pouco sarcasmo e mais dedicação, Sr. Rubim.
PS – Bem, se vamos fazer um clube de leitura, convinha haver umas regras.
LQ – Umas regras?
OMS – Sim, também digo! Regras para quê?
PS – Bem, são mais uns princípios orientadores, umas directrizes, umas guidelines
ABB – Acho bem. Qualquer clube tem um mínimo de regras, ainda que não estejam escritas. Ainda que sejam apenas consuetudinárias.
LQ – Consuetudinárias, Sr. Baptista!? Mais respeito!
CA – E quais são as suas regras?
FMO – Só espero que não venha para aí com os mandamentos do Pennac!
LQ – Os mandamentos do Pennac?
MP – Então não eram do Moisés?
OMS – Este é um caso perdido, meu Deus!

Ordem de trabalhos: as regras, 2 (allegro vivace, con gusto)



















GR – Caramba, que o homem está à espera de falar! Se houver sete falas entre cada réplica, perde-se o fio à meada!
OMS – Se o Sr. Rubim também já se põe com metalepses, então é que isto perde a última réstia de coerência. Não acha, Sr Portela?
MP – Isso é uma imputação infame. O que é que eu tenho a ver com o Sr. Rubim? Ele é que sabe da sua vida.
GR – Os senhores só estão a agravar o caso! Já lá vão dez e ainda agora começámos. O Sr. Serra até se esquece que existe.
LQ – E quem é que não se esquece nos tempos que correm? A vida não está para existencializar.
FMO – Essencializar?…
OMS – O Sr., de cada vez que abre a boca, só piora a situação.
CA – Se é assim, também digo mais qualquer coisa. Por que hei-de calar-me? Só para dar a vez?
FMO – Atenção! O Sr Serra está à espera de falar!
ABB – E eu? Hein? E eu?
GR – E já lá vão duas vezes sete!
MP – Então não é setenta vezes sete?
OMS – Diálogos bíblicos não, por favor!
PS – Uff! Finalmente a minha deixa. Estava a ver que já não bibliologava.
CA – Eu bem o avisei. Disse-lhe: comece a conversa só com dois ou três e depois arranje maneira de eles darem a conhecer aos outros o que se passou. Mas ele não me quis dar ouvidos.
ABB – Pois foi, disse que estava a ouvir umas vozes. E devia ser verdade, que eu também ouvi.
GR – E que era preciso apressarmo-nos.
FMO – Que o pano ia subir.
LQ – Que eu tinha que descer, que já era tarde!
OMS – E agora estamos aqui, sem pano, à boca de cena… tudo por darem ouvidos a esse cretino!
MP – A quem?

Ordem de trabalhos: as regras, 3 (allegro strepitoso, finale)

















PS – Bom, as regras são estas: cada um traz um objecto qualquer e lê.
ABB – Um objecto qualquer e lê? Que espécie de regra é essa? Então isto não é um clube de leitura? E leitura não vem de letra? E letra não vem de littera?
LQ – E littera vem de onde, ó fundacionalistas etimológicos?
CA – Vem do latim!
FMO – Vem do sânscrito!
OMS – Pergunte ao Heidegger!
MP – Vem das cavernas!
GR – Das cavernas?! Há aqui qualquer coisa que não bate certo!
OMS – Se há!
ABB – Bom, Sr. Serra, estou decepcionado. O Sr. disse que tinha tido uma ideia. Defraudou o público.
PS – Então, o que têm a minhas regras de mal?
CA – O plural é majestático, no mínimo. Só vi uma regra até agora.
ABB – Sabe que não se começa um clube de leitura assim sem mais nem menos. Vejo que nem conhece as regras do Pennac, afinal de contas.
LQ – As regras de quem? A esse tal Pennac só tenho uma coisa a dizer: não se leia, saltem-se páginas, não se acabem os livros, releiam-se, seja lá os que forem, amem-se essas figuras de papel, seja onde for, salte-se de uns para outros, leiam-se em voz alta, recusemo-nos a dizer seja o que for acerca deles, rasguem-se páginas, esventrem-se lombadas, cuspa-se para o chão…
FMO – Cuspa-se para o chão?!
GR – Penduremo-nos nas cortinas!
LQ – O que é que está a insinuar?
CA – Calma, calma. Estamos a chegar a um consenso. Não deitem tudo a perder!
FMO – Acabe-se com a moral da leitura de uma vez por todas…
OMS – Finalmente o Sr. Oliveira lá deu uma para a caixa.
ABB – Para a caixa?
PS – A caixa da leitura.
MP – Então não era das esmolas?
OMS – Poupe-nos, poupe-nos…
GR – Estava-se mesmo a ver como isto ia acabar.
PS – Nem sequer merece o benefício da dúvida!
CA – Sim, até aborrece…
LQ – A terceira lei da termodinâmica!
ABB – É fatal!
FMO – Certo como a morte!
MP – Não olhem para mim.
[Cai o pano]

05 setembro 2005

Interlúdio em um Acto (cena 1)



















Boca de Cena – Então, o que é que se passa?
Pano – Não se passa nada.
Boca de Cena – Passa-se alguma coisa.
Pano – Não se passa nada!
Boca de Cena – Eu bem vejo pelas tuas pregas que se passa alguma coisa.
Pano – Não se passa nada.
Boca de Cena – Não tenhas medo. Sabes que podes confiar em mim.
Pano – Posso mesmo?
Boca de Cena – Sabes bem que sim. Então já estamos juntos há tanto tempo.
Pano – Sim, é verdade.
Boca de Cena – Tirando aquela vez em que te foste embora.
Pano – Não fui eu. Sabes bem que fui a lavar. Não tenho culpa.
Boca de Cena – Podias ao menos ter avisado.
Pano – Como? Se nem eu sabia...
Boca de Cena – E essa não foi a única, tenho outras memórias mais dolorosas.
Pano – O que queres dizer?
Boca de Cena – Não me digas que já te esqueceste?!
Pano – O quê? Isso?
Boca de Cena – Isso mesmo!
Pano – Levaram-me para a sala de costura. Não foi nada do que tu pensas.
Boca de Cena – Isso agora...
Pano – Se é assim, não te digo mais nada.
Boca de Cena – Pois não digas.

Interlúdio em um Acto (cena 2)


















Boca de Cena – Então, o que é que se passa?
Pano – Não se passa nada.
Boca de Cena – Passa-se alguma coisa.
Pano – Não se passa nada!
Boca de Cena – Eu bem vejo pelas tuas olheiras que se passa alguma coisa.
Pano – Não se passa nada.
Boca de Cena – Estiveste a chorar?
Pano – Um pano não chora.
Boca de Cena – Pois não. Mas se chorar também não há nada de mal nisso, pois não?
Pano – Isso é o que tu dizes.
Boca de Cena – Repara em mim, por exemplo: estou sempre a abrir e a fechar, falo, canto, suspiro, calo-me, e até choro. E não me acontece nada, pois não?
Pano – Mas isso és tu. Com um pano não é a mesma coisa.
Boca de Cena – Mas tu não és um pano qualquer!
Pano – Pois não! Por isso mesmo...
Boca de Cena – Por isso mesmo o quê?
Pano – Deveria haver mais respeito.
Boca de Cena – Mais respeito?
Pano – Sim.
Boca de Cena – Mas o que é que se passa?
Pano – Não se passa nada!
Boca de Cena – Diz, não tenhas receio. Sabes que estou sempre a teu lado.
Pano – Lá isso estás.
Boca de Cena – Vês?