21 agosto 2005

Leituras estivais recomendadas
























O artigo de Alexandra Oliveira e Ana Lopes, «O combate ao tráfico e a repressão da prostituição», no Público de 20 de Agosto.
Já sabíamos, desde por exemplo Working Girls, de Lizzie Borden, que há vantagem – jurídica, ética, sociopolítica, económica – em considerar o mundo da prostituição como um segmento do «mundo do trabalho» e as prostitutas como «trabalhadoras sexuais autónomas». A vantagem, mais visível a uma abordagem marxiana do fenómeno, ainda que não exclusivamente na dependência dela, só recentemente pôde ser percepcionada, após séculos e séculos em que a prostituição foi simplesmente «o» impensável moral e social.
Uma tal vantagem, porém, foi sendo contestada, com mais ou menos ferocidade, no breve interregno contemporâneo em que o assunto acedeu à agora ético-jurídica, não tanto pelo vastamente inútil discurso cristão sobre a matéria (apenas não inútil nos seus pressupostos caritativos, propriamente crísticos), mas antes pelo feminismo radical das últimas décadas.
Nada que surpreenda ou choque, diga-se. A prostituição é historicamente o locus crítico, e revelador, da sujeição da mulher ao poder (económico, fantasmático, enfim, sexual) do homem e da sociedade patriarcal que da prostituta faz uma das suas «fronteiras» imaginárias ou, noutra terminologia, um dos seus indispensáveis tabus: a prostituta é a (face) Outra da esposa, que se define pelo seu recalcamento, ainda que o marido, ou o casamento por ele, a recupere na figura da amante, a quem cabe desempenhar esse papel porventura indispensável na economia sexual do casal, ainda quando se confine a um plano imaginário. Nesse sentido, a prostituta, como o grande romance burguês oito e novecentista nos ensinou, integra a grande narrativa da educação sexual masculina e, por essa via, integra a economia sexual da família burguesa, antes e depois da «libertação sexual», ainda que em planos e papéis diversos.
Não surpreende, em todo o caso, que o feminismo radical – o de pensadoras como Catherine McKinnon ou Andrea Dworkin – tenda a ver na figuração pornográfica do corpo prostituído da mulher uma forma de vitimização absoluta. Neste quadro, tipicamente emancipalista, pornografia, prostituição e viol(ent)ação surgem como termos equipolentes ou logicamente sequenciáveis, numa narrativa de vitimação de que urge inquestionavelmente libertar as mulheres. Esta versão do feminismo radical, porém, na sua perturbadora deriva censória em relação, por exemplo, à pornografia – deriva combatida por Ronald Dworkin, em ferozes polémicas com Catherine McKinnon -, se é historicamente compreensível, não parece ajudar muito ao entendimento do fenómeno da pornografia, e menos ainda a um real programa de emancipação da mulher, o qual não a pode obviamente confinar ao papel de vítima de um desejo (de poder) masculino. Se a mulher não for conceptualizável e concebível como sujeito do seu destino, e se esse gesto não for de algum modo inscrevível no seu corpo sexuado, não se vê como a acentuação da sua vitimização possa gerar uma real emancipação. Não surpreende, pois, que o feminismo mais recente, mesmo que definível algo paradoxalmente como «um feminismo pós-feminista», reivindique o poder sexual da mulher como um dispositivo emancipador, e que, ao fazê-lo, reconsidere o anátema histórico, bem como o feminista, lançado sobre a prostituta enquanto «mulher sujeitada». A questão é áspera, e quase tão ambivalente como a consideração da mulher enquanto «vítima», mas talvez ajude, entre outras coisas, a repensar e ressemantizar politicamente o recente (e chocante) recrudescimento do uso do corpo feminino na publicidade, em modalidades cada vez mais contaminadas pela figuração pornográfica, hoje em dia banalizada em extremo.
Em todo o caso, e voltando ao início, saúde-se o artigo de Alexandra Oliveira e Ana Lopes pela forma desassombrada e ainda rara como, entre nós, enfrentam a questão, sem deixarem de discriminar prostituição e «tráfico de mulheres», e sem deixarem de notar as dificuldades, conceptuais e pragmáticas, suscitadas por essa discriminação. Permito-me uma citação bem reveladora das autoras:

As feministas deviam ser, sem dúvida, aliadas fundamentais dos trabalhadores/as sexuais na luta pelos seus direitos laborais, civis e humanos. Mas para isso é necessário que ouçam os trabalhadores/as sexuais, em vez de defender políticas que são prejudiciais ao próprio grupo que, a nosso ver, erradamente consideram "vítimas". Pretender a repressão dos clientes para acabar com a prostituição, tendo em vista quer o seu fim, quer o combate ao tráfico, é uma opção desajustada, injustificada e socialmente injusta.

Surpreendo-me a mim mesma ao escrever isto, mas receio bem que a opção feminista mais consequente seja aqui uma opção que combine o propósito emancipador com um método conservador. Por outras palavras, em vez de supormos que não seremos mulheres de corpo inteiro enquanto houver uma só prostituta à face da terra (embora o argumento não consiga obviamente ser simétrico, poderão os homens dizer o mesmo, a partir do momento em que existem prostitutos masculinos?), é talvez mais produtivo aceitar a prostituição enquanto sub-segmento do mundo do trabalho na sociedade capitalista e regulamentá-lo, de modo a libertá-lo da parasitagem do tráfico. Um tanto como no narcotráfico, antes admitir que a droga está e estará entre nós. Os ganhos são não apenas sociais como éticos, na medida em que o pecado e a transgressão, que acabam sempre por vitimar as mulheres, prostitutas ou não, quando acedem ao usufruto do seu desejo e do seu corpo, acabam assim substituídos pela economia política.
Uma economia política singular, como aprendemos num falocrata como Bataille, já que toda ela se destina à pura perda: despesa libidinal sem retorno, mais-valia sem capital. Mas uma economia política, ainda assim, e não uma moral de sacristia, mesmo quando legitimada por ministérios e políticas «sociais», de esquerda ou não.