27 fevereiro 2006

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho
















Lusíadas, Os: 1. Segundo Paulo Portas, que os lê com mão diurna e nocturna, fazem parte do nosso código genético. 2. Um/a professor/a do Secundário: «Bom, para o Consílio dos Deuses põe-se os alunos a fazerem a acta dele, e está liquidado. O Pedro e Inês, enfim, passa-se um filme ou leva-se os miúdos em excursão à Quinta das Lágrimas. Para o Baco, umas fotos de lagares e de bêbados. A Ilha dos Amores, diz-se que é uma espécie de Big Brother avant la lettre. E pronto, uff! (o que custa inventar tanta motivação!), podemos passar a coisas mais modernas. Mas depois chega o inferno das Viagens…». 2. Um estudante: «Se encontrasse o Camões na rua, acho que o esfaqueava! Devagarinho, com requinte, rodando-lhe a faca na pança como nos filmes americanos, e dizia-lhe: ‘Ouve lá, meu cabrão, quem te mandou escreveres aquela porra com todos aqueles deuses, e citações, e palavras alatinadas e uma sintaxe que não lembra ao diabo?! Só pra foderes o juízo aos estudantes do básico e do secundário, não foi? Só pra incentivares o sadismo dos professores, aposto? O que vale – e isso não podias tu adivinhar, e é bem feito – é que há bué de «Introduções» aos Lusíadas, e, lendo aquilo, a malta dispensa a leitura aí de 9 cantos e meio. Pois, pois, arregala os olhos, arregala! Tanta sacanice pra nada! Lixaste-te, meu filho da mãe!’». 3. Vasco Graça Moura: «O que falta é divisão de orações! Com esta palermice pedagógica do «prazer» e da «festa» da aprendizagem, os meninos nem aprendem português (e sintaxe) nem fruem o verbo camoniano. Mas claro, os professores preferem falar dessas frioleiras, além de sugerirem que a obra é colonialista e outros endoutrinamentos ideológicos, a ensinarem a beleza, difícil mas compensadora, da grande literatura. Só mesmo com uma kalashnikov!». 4. Camões: «O que eu sofri para escrever o poema, e mesmo para o resgatar das águas… E afinal, mal vi um tostão pela edição. Só de pensar em todos os direitos de autor que perdi até hoje! É de se ficar bem f…! As comodidades que eu não teria com esse dinheirinho… E mulheres, que um poeta não é de ferro… Fui o primeiro Eusébio, vivi antes do tempo dos grandes contratos... Se bem que as edições de agora já são menos minhas que dos comentadores, que saturam aquilo de notas, a ponto de os meus versos desaparecerem debaixo daquela enxurrada filológica. Já ninguém sabe nada de mitologia, nem de História de Portugal, é o que é. Para não falar do latim. Incrível! Ao meu nível, hoje, só mesmo o Graça Moura, que esse, sim, leu tudo e sabe tudo. No meu tempo sempre havia uns 10 como ele. E depois ainda houve o Faria e Sousa, que sabia mais do que eu: até sabia que eu tinha escrito poemas que nunca escrevi. Como me custa contemplar cá do alto esta apagada e vil tristeza! Vá lá que ainda há as odes daquele poeta que ninguém consegue calar, aplicadinho a imitar-me, e que me vai dando umas alegrias. Mas aquela Adília Lopes! Aquele Manuel de Freitas! Poetas?! Ah Gastão, como tens razão! Antes os rappers, que sempre se enraivecem com rima. Mas a gramática, santos deuses, para não falar da métrica…»

Luxo: 1. O mesmo que luxúria (v.). 3. Pecado venial.

Luxúria: 1. O mesmo que luxo (v.). 2. Pecado mortal.

A política cultural do nosso teatro (II)















3. Como se terá percebido, mas convém repetir, não estou a fazer coincidir nesta argumentação «teatro em Portugal» com «teatro português». É obviamente insustentável hoje qualquer posição que se atenha ao cânone nacional de uma literatura, dramática ou não. Mas é igualmente insustentável a posição que supõe que pode haver em Portugal um teatro pedagógico-didáctico, representacional, político, no sentido mais nobre do termo, e tudo o que mais se queira (e, como vimos, quer-se muita coisa), na ausência de um corpus minimamente representativo de literatura dramática portuguesa. De facto, não parece muito admissível a ideia de um «Teatro Nacional» no qual se representasse apenas Ésquilo, Shakespeare, Calderón, Ibsen, Brecht ou Pinter… As adaptações de obras literárias não-dramáticas, o teatro da mais ou menos estrita performance corporal, nada disso afecta o essencial do meu argumento, que aliás não esquece essas e outras possibilidades teatrais.
Refiro-me apenas e ainda à política cultural dominante nos discursos de legitimação do nosso teatro e às suas contradições e impossibilidades. Porque podíamos sempre afirmar, a propósito dessa política, tal como Gustavo Rubim a recenseia, que sendo ela dominada por uma Cena Primitiva que é uma cena da Instrução (cívica, democrática e republicana), ela se vê forçosamente reconduzida a um aparelho escolar que não pode deixar de ser, nos termos em que nos é apresentada (educar os cidadãos para a democracia), de teor nacionalista. Os exemplos cívicos da escola republicana sempre foram, sem contradição, intensamente nacionalistas (a bem de um suplemento probatório, recorde-se o patriotismo republicano do recente candidato Manuel Alegre, com o seu nacionalismo de contrabando, aliás pouco dissimulado). E dizer, em contra-argumentação, que uma tal política cultural se pode (ou deve) coadunar com um teor nacionalista mínimo, sobretudo em tempos de integração europeia, não é também o mesmo que pretender que o possa de todo dispensar. Porque de facto não pode, sob pena de simplesmente cortar os vínculos com o público que essa mesma política foi educando, ou desejando educar, produzindo-se assim uma sociologia do teatro em curto-circuito.
Não é, por outro lado, aceitável a argumentação segundo a qual o nosso teatro, na sua minimização do pedagógico em benefício do performativo, ou na transformação forçosa do performativo em pedagógico, estaria a realizar a terapia pela amnésia de que uma nação com demasiada história necessita para sobreviver - essa amnésia que é uma pré-condição ontológica do performativo, o qual deve esquecer tudo o que ficou para trás no momento em que traz coisas ao mundo. Tal argumento, ainda que sofisticado, não é aceitável pela simples razão de que o teatro português nunca renunciou inteiramente ao lastro histórico do pedagógico: ter apenas Gil Vicente é curto, mas renunciar ao pouco que se tem em favor de um contrato social totalmente empenhado na criação de um palco teatral situado na no man’s land do presente, é algo que nenhuma política das instituições pode pôr em prática, sob pena de auto-dissolução. A adopção de uma tal estratégia seria suicidária por razões de simples política cultural, já que todos os discursos de legitimação de uma prática artística começam – e esta é uma verdade cansada – pelo inventário do património, ainda quando se trate de um inventário largamente ficcionado. E não esqueçamos, a este respeito, a intensa rentabilização escolar de Gil Vicente, seja dentro das paredes das próprias escolas (e muitas vezes como propedêutica a uma dramatização escolar de outros autores, dramáticos ou não), seja como argumento de cativação de públicos escolares pelas companhias teatrais, que em número significativo dependem dos protocolos com as escolas, protocolos firmados por causa de Gil Vicente e, quando muito, do Frei Luís de Sousa (a invenção recente de Felizmente há luar! como texto obrigatório no nosso ensino apenas evidencia, de novo, a debilidade do nosso património dramático), para sobreviverem.

4. O teatro português, contudo, existe, e mesmo para lá dos índices que seriam esperáveis, dada esta situação de debilidade patrimonial, com todas as suas equivocadas consequências no terreno da política teatral. As companhias proliferam, e não apenas nem sobretudo as profissionais, mas todas aquelas que se situam nos territórios da experimentação, com radicação geográfica dispersa mas tenaz. Assim como existe um forte lobby teatral, sobretudo visível em ocasiões em que esteja em pauta a política cultural para as artes (o facto de o teatro exigir «companhias» e, sobretudo, «equipamentos» onerosos e de estes terem sofrido uma acentuada expansão na última década, ajuda decerto a entender essa visibilidade).
Quem assiste aliás a um debate sobre política cultural em Portugal, sabe bem aquilo em que esta situação se traduz: numa colonização imediata e drástica do debate pela «política cultural do teatro», como se, na sua lógica profunda, a política cultural mais não fosse, ou mais não devesse ser, do que uma extensão ao sistema das artes do quadro conceptual da política cultural do teatro, tal como o apresentei no início. Pude assistir a uma impressionante demonstração desta recorrente fenomenologia no debate sobre o tema «O que é a política cultural?», organizado e moderado por Manuel Portela no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, em Novembro do ano transacto, debate aliás amplamente reportado nos média. O que faz aliás muito sentido, tratando-se de «política» cultural, já que o teatro, para o referido quadro conceptual, é arte política a arte política por definição.
De facto, se aceitarmos esse modelo teórico nenhuma outra arte pode competir com o discurso de legitimação pública do teatro. As artes plásticas vivem necessariamente de uma experiência individual, contemplativa e tendencialmente aurática, em contexto museológico, público ou privado. No mundo das artes plásticas, aliás, os fluxos de capital cultural (e, bem entendido, do outro…) funcionam quase que na razão inversa dos discursos de legitimação sócio-política típicos do teatro, assegurando antes educação da sensibilidade e «distinção» pessoal ou institucional, muito longe, em todo o caso, da pedagogia cívica do teatro. A música é obviamente infensa a qualquer legitimação por um discurso próximo do do teatro, já que não educa para a república nem para a democracia, confinando-se antes à tradição da «educação das belas almas» (relembre-se aqui o lugar emblemático da música na estética idealista desde Kant, bem patente em noções como a de «música absoluta»). A literatura encontra-se hoje dependente de um subsector da política cultural, a «política de língua», repartida entre a Educação e os Negócios Estrangeiros, que é no nosso tempo o que resta do projecto burguês moderno de uma «religião laica» cujos textos sagrados a literatura forneceria. Não sendo já nem religião nem humanismo, a literatura é hoje instrumento de políticas como a «lusofonia» ou as da afirmação internacional da nação no circuito dos eventos em que o mercado institucional da cultura é hoje pródigo (Feiras do Livro, Capitais da Cultura, prémios como o Nobel, etc.). Mas é também, como nenhuma outra arte entre nós, património, ou não fossem seus os nomes de Camões (ou d’ Os Lusíadas) e Pessoa (ou da Mensagem), embora seja visível que tal património se encontra num processo de acentuada deslegitimação. O cinema, enfim, nunca conseguiu em Portugal produzir uma legitimação convincente para a sua existência, já que nem é plenamente «património», como a literatura (por óbvia pobreza), nem é educação cívica, como o teatro, sendo a «educação da sensibilidade» um projecto que as estéticas dominantes do cinema tornaram anacrónico. A única real legitimação do cinema entre nós, nas últimas décadas, foi a que nos foi devolvida pelo estrangeiro, entre o circuito dos grandes festivais de cinema e a crítica cinematográfica mais cutting edge: a que viu no nosso cinema, ou melhor, no cinema de Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho, Teresa Villaverde e, mais recentemente, Pedro Costa, a mais perfeita representação da «identidade nacional» portuguesa, representação em torno da qual se foi depois tecendo uma política cultural centrada na exportação. Uma identidade, diga-se, fortemente reificada nos seus termos agónicos e «negativos», e traumática para as novas gerações de cineastas que nela se não reconhecem mas que, apesar da anomia que hoje se apoderou dessa versão identitária, não conseguem produzir uma outra.
Diria, pois, para concluir, que face à pobreza estrutural do nosso teatro, a sua representação político-cultural dominante, denunciada por Gustavo Rubim nos termos em que a tentei reconstituir, me parece uma quase inevitabilidade. Poderia acrescentar que me parece também uma posição de grande inteligência estratégica, na medida em que consegue fazer das fraquezas do nosso teatro a sua grande força: um teatro sem «objectos pedagógicos» não tem alternativa senão fazer do performativo que todo o teatro é a sua grande pedagogia, politizando-a ao máximo, com a ajuda do grande pedagogo do teatro moderno: Brecht. Ao fazê-lo, o nosso teatro não apenas se legitima social e politicamente como ainda, e essa é uma segunda manifestação de inteligência estratégica, consegue subsumir toda a política cultural para as artes na política cultural do teatro, a única que, em rigor, responderia ao espectro mais alargado do funcionamento das artes na polis. O nosso teatro torna-se assim um modelo e um exemplo do funcionamento das artes no espaço público e do que deve ser uma política cultural. Isto explica decerto a sensação de desproporção e distorção que de nós se apodera quando o nosso meio artístico é atravessado por mais uma das cíclicas crises do teatro (vide o recente caso da demissão do director do D. Maria). Não está em causa, obviamente, o direito à manifestação e mesmo à indignação. Está em causa, sim, entender a lógica que faz com que uma arte afectada por debilidades históricas que em número razoável permanecem, consiga uma ocupação do palco mediático que nenhuma outra arte consegue. E, sobretudo, que se consiga fazer passar a ideia de que cada uma das crises do nosso teatro é, ou arrasta, uma crise de todo o edifício das nossas artes, e em especial da sua tradução em «política cultural», coisa que outras artes com problemas análogos aos do teatro de todo não conseguem.
Surpreende, de facto, a forma como o teatro da nossa política cultural é condicionado, senão colonizado, pela política cultural do nosso teatro. A ponto de, no limite, nos interrogarmos se não deveriam todas as artes, entre nós, aspirar à condição do teatro. Sendo o nosso sistema das artes o que é, na sua especificidade histórica, a interrogação não deixa de ser perturbadora, para não dizer caricata. Mas, sobre revelar uma grande inteligência estratégica, esta situação condena, dentro do universo teatral, alternativas conceptuais como as delineadas por Gustavo Rubim a um destino de forçosa menoridade, ou mesmo marginalidade. Se uma tal condenação é ou não, em si mesma, uma outra e prévia demonstração de menoridade, eis o que fica por saber. Mas que, e não posso concordar mais, conviria debater.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho
















Lula da Silva: 1. Começou como bóia-fria (não existe sinónimo satisfatório no português de Portugal: proleta é curto), foi depois líder sindical quase-revolucionário, perdeu duas eleições para a presidência mas perseverou e acabou como Presidente da República do Brasil. 2. Arranjou, para as suas viagens, por questão de dignidade elementar, um Air Force One, embora com nome brasileiro. 3. Está a mudar o Brasil de cima a baixo, provando aquilo que sempre defendeu: que era possível aplicar políticas completamente diferentes das de Fernando Henriques Cardoso. 4. Não fazia a menor ideia do mensalão.

Lusofonia: 1. O Palácio das Necessidades tem muita necessidade dela. 2. Já o Itamaraty não quer saber dela para nada. 3. Com veemência: «Como dizia Pessoa, ‘A minha pátria é a língua portuguesa’!». 4. Abarca uns 200 milhões de falantes, desde que se contem todos os africanos que não falam português. 5. «Podemos e devemos orgulhar-nos dela, mas não do colonialismo, que foi um erro histórico – apesar de termos dado novos mundos ao mundo».

A política cultural do nosso teatro (I)















1. Se há coisa que me deixa ainda mais perplexo do que o «cinema português», essa coisa é o «teatro português». Devo dizer que, assim como não consigo encontrar argumentos que não os do paroquialismo ou do nacionalismo cultural para justificar a leitura e estudo de certos escritores nascidos em Portugal, e tantas vezes apodados de «fundamentais» ou «imperdíveis» pelo jornalismo cultural, pela crítica literária e mesmo pela escola, também nunca consegui comover-me com filmes que fazem do serem realizados por portugueses o seu verdadeiro e único cartão de visita. Há seguramente filmes de Manoel de Oliveira que acrescentam ao cinema universal (Acto da Primavera, por exemplo); e há João César Monteiro; e um ou outro filme de um ou outro realizador (por exemplo, Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes; Onde jaz o teu sorriso, de Pedro Costa; ou Noite Escura, de João Canijo). No todo, porém, a desproporção entre a real valia do inevitavelmente chamado «cinema português» - em grande medida uma invenção curricular de cursos de cinema, da política de preservação patrimonial da Cinemateca Portuguesa e de uma política cultural centrada na exploração de uma imagem identitária, fortemente reificada, para consumo externo – e o barulho e comoção públicos por ele suscitados, consegue ultrapassar a desproporção entre a magnitude dos novos estádios de futebol do Euro 2004 e a miséria de público que eles melancolicamente albergam a cada duas semanas (e não estou, com este exemplo, a deslocar a questão do cinema português para o plano em que ela imprópria e viciadamente acaba sempre por se colocar – a do público -, deslocação que acaba por produzir, e supostamente legitimar, aberrações como o recente Crime do Padre Amaro).
Quando passamos para o campo do teatro, as coisas parecem tornar-se ainda mais marcianas. Gustavo Rubim, que manifestamente, e um tanto surpreendentemente, para mim, considera o «teatro português» uma coisa muito estimulante, chamou aqui, há tempos, a atenção para uma das manifestações da enfática auto-representação de que se nutrem os intervenientes na nossa cena teatral. Resumindo, numa versão que no entender de Rubim provém da doxografia brechtiana instalada após Abril de 74 (mas que creio remontar já às leituras que sempre se fizeram da intervenção de Garrett na questão do «teatro nacional»), para grande parte da gente do meio o teatro é arte nobre porque republicana, republicana porque democrática, democrática porque cívica, cívica porque didáctica. O teatro é a democracia e a república, já que nele a ágora se representa, num modelo de 1 para 1, em palco. Logo, se o teatro é entre nós débil, é a democracia quem mais sofre com isso pois não há democracia sem a interiorização, pelos cidadãos, dos mecanismos da performatividade teatral que são a própria democracia. O teatro educa e forma cidadãos esclarecidos, i.e., intelectuais aptos a desmontar as ilusões de baixo coturno que a democracia tenta tantas vezes contrabandear. E que melhor didáctica para isto, podemos nós perguntar após o desdobramento dos silogismos felizes de que se faz este entendimento dominante do teatro entre nós, que a da distanciação brechtiana, a qual, aduz com pertinência Rubim, é hoje a banalidade de base das teorias da representação antimiméticas? Mas haverá outras?, é caso para perguntar face ao triunfo esmagador do efeito de estranhamento na arte e cultura de massas (é só ver com atenção os vídeo-clips pop-rock), nos mass media (haverá jornalistas, e jornalismo, não-brechtiano, hoje em dia?), na propaganda política, etc.
Ciclicamente, e sobretudo em momentos de crise e comoção, somos revisitados por estas concepções simultaneamente didácticas, políticas e, não há como não o dizer, algo deslocadas e megalómanas, do papel social e político do teatro. É decerto inútil recordar, neste contexto, que uma arte não se confunde com uma antropologia, por isso que (i) a arte não é nunca a vida, mesmo quando se esforça por imitá-la (princípio, ou banalidade, que vale tanto para antropologias como para sociologias); e que (ii) numa arte se podem exprimir antropologias as mais diversas e mesmo contraditórias, realistas ou fantasistas, didácticas ou lúdicas, cívicas ou anticívicas, etc.
Mas é sobretudo difícil não adivinhar nesta auto-representação do teatro como magia sócio-política uma das várias estratégias de compensação daquilo que é a menoridade histórica desta arte entre nós. Por outras palavras, o problema residiria não tanto nem exactamente na debilidade da nossa tradição teatral mas na de uma sociedade que, ao desprezá-la, tem o que merece: não a tradição débil antes referida (nenhum membro da comunidade teatral o admitiria sem ressalva, sob pena de se auto-refutar nesse passo) mas a sociedade amputada (do teatro e, por extensão, da sua «educação para a democracia») que supostamente é, em perspectiva histórica, a nossa.
Esta estratégia compensa de muita coisa, e na aparência resolve mesmo todos os problemas do nosso teatro. Comecemos pelo fim. Desde logo, fica resolvida a questão da menoridade e, o que seria inevitável mas talvez não, a das origens várias dela. Se o teatro é uma paideia, então é um crime político-educativo amputar uma sociedade dessa paideia. É estrita obrigação da sociedade resolver um problema sem cuja resolução não haverá plenamente sociedade mas apenas um arremedo dela. O problema, antes de ser cultural, ou mesmo artístico, é pois sócio-político, pelo que cabe estritamente a quem governa zelar por esta versão melhorada da coisa pública; a não ser que se prefira, por deliberado obscurantismo, uma versão não-melhorada da coisa pública (limito-me a reproduzir aqui um tropo recorrente no discurso reivindicativo do nosso teatro: o do premeditado obscurantismo dos poderes). Não espanta que daqui decorra, sobretudo nos sectores mais crítica e politicamente empenhados, uma relação com o Estado que, no que concerne à reivindicação de apoios à criação, nunca descola verdadeiramente de uma posição de «direito natural», publicamente traduzida numa «retórica da arrogância» que as instâncias de mediação do campo cultural – críticos, jornalistas, etc. – em rigor nunca questionam. E nunca questionam porque, como é tão evidente, aceitam sem ressalva o fundamento político-cultural, ou didáctico-cívico, dessa retórica, fundamento sem o qual a sua actividade nem parece ser pensável.

2. Sendo essa posição seguramente debatível, como por definição todo o direito natural, o meu ponto é contudo outro: esta perspectiva «educativa» do teatro, que é uma injunção feita ao Estado sem possibilidade de recurso para segunda instância, é provavelmente a melhor estratégia, senão mesmo a única, para minimizar o problema da menoridade histórica do nosso teatro. Digamos que ela subalterniza decisivamente a História, e os seus conteúdos ensináveis em disciplinas de «História do Teatro Português», em favor da performatividade, que é como quem diz, em favor do presente. Trata-se de fazer teatro, de fazer teatro em Portugal (o que é e, obviamente, não é igual a «fazer teatro português») mas, mais relevante, trata-se de «fazer a nação», por meio da única arte que em rigor permite fazê-la, já que o teatro é o performativo em acto e em exemplo: ele é a história do presente desenrolando-se à nossa frente. O problema, que o nosso meio teatral parece achar um pequeno problema, ou um problema pragmaticamente dispensável, é que do mesmo passo a questão do teatro, por mais estratégias brechtianas que se activem, torna-se uma questão estritamente política e, ironia das ironias, obrigadamente representacional: o teatro representaria a vontade (como diria Renan) que a nação tem de o ser na medida em que a nação, como o teatro, se reinventa e faz todos os dias. Para o meio teatral português, a nação teria adoptado o ponto de vista da cegueira, renunciando à sua mais fiel representação, o teatro – ou submetendo-o a uma lógica de sobrevivência na penúria, que iria dar no mesmo.
O ponto aberrante desta argumentação, contudo, reside no facto de que o nosso teatro só pode produzir uma representação fidedigna da nação na medida em que opte inteiramente pelo performativo em detrimento do pedagógico que ela também constitui (sigo aqui, como se terá percebido, a discriminação de Homi Bhabha entre pedagógico e performativo na temporalidade disjuntiva da nação). O nosso teatro, digamos assim, tem historicamente pouco a ensinar, razão pela qual não pode deixar de subalternizar o pedagógico em favor do performativo. E tem pouco a ensinar porque se é verdade que tem muita história, não é menos verdade que muito pouca dessa história é transformável em «objecto pedagógico».
Convirá esclarecer que não confundo teatro com texto dramático, como é óbvio. Mas também não aceito a desonestidade teórica e intelectual implícita numa discriminação rígida e absoluta entre teatro e literatura dramática, a qual é entre nós mais uma das estratégias de ressalva de um património demasiado pobre para novas descobertas das Américas, mesmo que em virtude de novos métodos centrados ou na semiótica teatral ou na panaceia universal da performatividade. A pobreza patrimonial do teatro português é antes de mais a pobreza da nossa literatura dramática, e quanto a isso não há volta a dar à questão. O próprio Gil Vicente não dá para tudo, desde logo porque um primitivo não permite as reapropriações e modernizações de um Shakespeare (e não deixa de ser significativo que a mais poderosa modernização de Gil Vicente no período contemporâneo tenha consistido na sua releitura a partir de… Brecht). E o que vem depois, com as excepções conhecidas, não faz da nossa literatura dramática uma arte menos descontínua do que, por exemplo, a música erudita, pese embora a «Escola de Évora» ou outros segmentos mais ou menos exumáveis.
Dizia-me há dias um colega, a propósito das reformas que se têm verificado nos cursos de Línguas e Literaturas Modernas e que têm vitimado a carga curricular de Literatura Portuguesa, que bem vistas as coisas não se percebia por que razão, senão pela do velho e relho nacionalismo, essa diminuição é tão ressentida pelos professores da disciplina. Afinal de contas, a literatura portuguesa é, como disse memoravelmente Antonio Candido no «Prefácio» à sua Formação da Literatura Brasileira, um «arbusto de segunda ordem no jardim das Musas». Entende-se que nos esforcemos por confrontar os alunos com os textos de Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, Camões, o Padre Vieira, algum Garrett, Camilo, Eça, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Pessoa. Fora disto, não se vê o que seja perda absoluta e irredimível. Por que razão, aliás, nos doemos tanto por não se estudar António Ferreira, D. Francisco Manuel de Melo, Herculano, Antero ou Nobre e nada nos custa que os nossos alunos não leiam Homero ou Virgílio, Petrarca ou Dante, Cervantes, Milton ou Blake, Strindberg, Dostoievski ou Beckett, e mesmo João Cabral de Melo Neto ou Guimarães Rosa (este último substituído nos manuais escolares por essa sua derivação pós-colonial que é Mia Couto)?
No caso da nossa literatura dramática, dizia-me ainda esse colega, é evidente que se perde se não se ler Ibsen – mas, com franqueza, até se ganha se não se ler Bernardo Santareno. Dito isto, a situação portuguesa não é a mesma na literatura dramática que na restante, a qual tem Camões, Pessoa ou Vieira. Mas, esclareço, não se trata apenas de confrontar versões mais ou menos robustas do cânone. De facto, as consequências desta situação de pobreza textual são duplamente gravosas no caso do teatro, quero dizer, da sua situação sociológica e do seu desejado alcance sócio-político. Em primeiro lugar, e pese embora algumas das estratégias de compensação antes referidas, é empiricamente observável que os países em que existe uma forte tradição teatral são aqueles que possuem uma também forte tradição de literatura dramática, pelo que todas essas estratégias conhecem óbvios limites. Por exemplo, na habituação inter-geracional ao acto de «ir ao teatro» ver novas encenações de clássicos, os quais, até por mobilização do aparelho escolar, começam sempre por ser «os nossos clássicos». Ou seja, a inexistência de uma literatura dramática rica, que além do mais os cidadãos-leitores se habituem a ler e reler, antes e depois de a ver dramatizada em palco (e, contra as evidências da doxa, relembremos que o «teatro», enquanto texto, também é para ler: Shakespeare sempre foi um dos autores mais lidos da literatura ocidental), inibe, no caso português, uma sociologia do espectáculo homóloga à daqueles países em que a situação da literatura dramática é outra. Pretender que esta situação se altere drasticamente por injecção de capitais, públicos na sua fatal maioria, é talvez um desejo inevitável mas é seguramente pouco razoável pensar que ela alguma vez se possa vir a alterar significativamente, sendo a nossa produção dramática, a antiga e a contemporânea, o que é.
Em segundo lugar, a debilidade patrimonial da nossa literatura dramática afecta decisivamente o potencial representacional do nosso teatro. Como vimos antes, trata-se, por esta razão, de um teatro com poucos objectos pedagógicos, e daí a sua decidida deslocação para o terreno do performativo político da nação. Mas esta deslocação inscreve uma decisiva aporia no corpo político do nosso teatro: a que resulta de ele renunciar, de facto, a representar a fundura histórica de uma nação com demasiada história ensinável, ao invés do que simetricamente ocorre com o nosso teatro (Gil Vicente, mais uma vez, não dá para tudo; duas peças do Judeu e outras duas de Garrett não são o bastante para mudar significativamente o panorama). Digamos que o primado do performativo no teatro português, que lhe assigna o imperativo de representar a história do presente, é um imperativo representacional por defeito. O nosso teatro deter-se-ia assim no presente (na pedagogia do presente) porque nada tem de comparável a oferecer no passado; e o performativo seria assim a sua verdadeira pedagogia. Sobretudo, nada tem de comparável à arte à qual a escola sempre cometeu a tarefa de acompanhar a pedagogia da nação: a literatura, e o seu emblema para todos estes efeitos, Os Lusíadas (ou, modernamente, as Viagens na minha terra).

26 fevereiro 2006

Raspar de novo, nº12*




Wim Delvoye, Euterpe, 2001/2002
* Esfregar os olhos,
render 50 unidades de informação p/segundo.

Raspar de novo, nº11



Wim Delvoye, Lick 3, 2000

Raspar de novo, nº10



Wim Delvoye, Kiss 2, 2001

Raspar de novo, nº9



Wim Delvoye, Kiss 3, 2000

O Grande Doutrinador

É o que dá, atrasarmo-nos na revista dos blogues...
O que eu penso, sem tirar nem pôr, da falta de pudor com que José Manuel Fernandes colocou, ao serviço da sua agenda política, o Público, confundindo o cargo de Director com o de Grande Doutrinador Neoconservador, está já há alguns dias dito, de modo inexcedível, aqui.

25 fevereiro 2006

Casa de férias 3


— Acha mesmo, Groucho? (pausa) Olhe que não sei...
— Não sabe ou não acha? Ou acha, mas não completamente?
— Bom...
— Era o que me parecia, resposta típica de um intelectual quando o intelecto é apanhado em território desconhecido.
— Vejo que lhe está a fazer bem o descanso, Groucho...
— Nem imagina quanto! (para o cão) Anda, vamos às compras.

24 fevereiro 2006

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho















Louras: São todas burras, à excepção de Maria Filomena Mónica e Inês Pedrosa.

Lourenço, Eduardo: 1. Um autor de livros fininhos, no dizer de Vasco Pulido Valente. 2. Um autor de artigos de jornal longos e complicativos. 3. Constrangido: «Gosto de o ler, aprende-se sempre com ele, mas podia ser mais parcimonioso no uso das metáforas… E escrever frases mais curtas.» 4. Biógrafo espiritual de Fernando Pessoa, defende que o poeta era primo direito de Ludwig, rei da Baviera. 5. Como o poeta, tem uma razoável colecção de heterónimos: existencialista católico, intelectual de esquerda, mestre pensador, heterodoxo, emigrante, congressista, opinador político, crítico literário, francófilo, doutorado honoris causa pela Universidade de Coimbra, etc. 6. Como crítico, defende que qualquer obra de criação literária, por mais merdosa que seja, vale mais do que o mais brilhante dos ensaios críticos. 7. Com um sorriso cúmplice: «Ele já me confessou que é tudo fita…» 8. Acha que Portugal é um labirinto automóvel e que os portugueses têm identidade a mais e tino a menos. 9. Afirmou, num livro desassombrado publicado em pleno PREC, que «O fascismo nunca existiu!». Vera Lagoa concordou logo. 10. «Já reparou que está cada vez mais parecido fisicamente com o Salazar? Até a vozinha, carago!»

Os últimos moicanos (II)















- Mouchão, é?
- Pois, foi o que saiu agora do caixote… Mouchão 1988.
- Não fica atrás do outro, amigo Silvestre. [Deita um pouco no copo e leva-o à boca. Meditativo:] Chocolate, fruta exuberante em passa, toque de fumo, resinas aromáticas balsâmicas. Na boca [bochecha e saboreia] é tipo colosso, cheio e muito vigoroso, taninos redondos…
- …Ó Mourão, que se passa consigo?! Está sob influência?
- Atão não estou, Silvestre? Isto é um verdadeiro alucinogéneo!
- E se discorrêssemos antes sobre o Bambi II?
- O vinho também é Natureza, Silvestre!
- Sobre isso, tenho as minhas dúvidas. Viu o Mondovino? Qual terroir, qual quê! Como diz aquele viticultor francês entradote, já não há vinho, só há enólogos! Com tecnologia adequada, qualquer videira e qualquer terreno sombrio acabam por dar vinho bebível, da Patagónia ao Japão. Sobretudo porque eles agora são todos iguais.
- Lá isso, tenho as minhas dúvidas. Já bebeu o verde tinto do Minho? À malga, no S. João? Ou a acompanhar a lampreia? A globalização nunca o há-de vergar, como não há-de vergar o nosso Mouchão, e outros que tais. Mas, quanto ao Bambi II: uma versão cansadota da «educação do príncipe», não?
- É. Mas olhe, vê-se
- Eh pá, já reparou como essa expressão, hoje tão usual, é fabulosa, Silvestre? E sem equivalente real noutras artes, que é como quem diz, noutros média. Não tenho ideia que se diga «Lê-se» ou «Ouve-se». Mas diz-se muito «Vê-se…» com o sentido de…
- Lembra-me um aluno que me dizia, quando lhe perguntava como ia indo: «Trabalha-se…». Só que, após alguma conversa inquiridora, chegava-se à conclusão de que a expressão significava exactamente o oposto do seu valor facial. Qualquer coisa como «Faço tudo o que posso para não trabalhar ou para trabalhar o mínimo». Ou seja, esgadanhava-se para não trabalhar. Toda uma filosofia do ócio – melhor: da luta pelo ócio - em apenas uma (muito enganadora) forma verbal. A linguagem é de facto uma forma inadequada de nomeação…
- É boa… Mas já agora, qual é o exacto sentido desse «Vê-se»? Não me quer ajudar?
- Olhe, significa que, neste caso, o Bambi II é um filme honesto, como se diz em inglês.
- Eu a pedir-lhe um sinónimo e o meu amigo a dar-me uma tradução… E isso quer dizer exactamente o quê?
- Que é um filme que não ofende
- Acho que não saímos da tradução.
- Olhe, é como a Disney, hoje em dia: vê-se, é honesta, não ofende. Decerto porque, mais uma vez, o meio é a mensagem e os «desenhos animados» são hoje um meio tecnologicamente obsoleto e expressivamente exausto. Mas o futuro da animação está ailleurs: na Pixar, por exemplo. E eles bem o sabem e por isso a compraram.
- Os dos Monstros & Co?
- Exacto. E, antes disso, do Toy Story, I e II. E outros clássicos do cinema contemporâneo.
- Do cinema de animação contemporâneo, quer o meu amigo dizer?
- Não, não foi lapso: há vários filmes de animação que, estou capaz de garantir, são obras maiores do cinema de hoje. Configurações imaginativas poderosas, e poderosamente novas, curiosamente subordinadas à lógica da alegoria, talvez o tropo maior do cinema de animação contemporâneo, se não desde sempre. O que não surpreende, pois a Disney é uma instituição pedagógica e a alegoria sempre foi um tropo disponível para funções educativas. Por exemplo, para aprender o que é o capitalismo de hoje, com corporações empresariais a funcionar em rede e as estratégias para sufocar a concorrência, nada melhor do que Monstros & Co ou Robôs, dois filmes mais intensamente políticos do que os de George Clooney. Mas olhe que Monstros & Co tem momentos intensamente borgeanos (o «mergulho» no arquivo das portas é uma fabulosa visita à Biblioteca de Babel) e Robôs propõe uma releitura da luta de classes que oculta uma agenda tão pouco oculta quanto perturbadora: a de uma biopolítica em que o humano é apenas um resíduo, ou vestígio, low tech. A vitória do «princípio da sucata», no final do filme, é apaziguadora e permite o melodrama, mas não deixa de insinuar, um tanto contra as boas intenções do filme, que o humanismo é o encantamento pela ferrugem. Pela sucata do humano…
- OK, o Bambi II é também coisa política: ensino da «distinção» aristocrática, transmissão traumática do poder (é preciso expor-se ao perigo, e ao perigo de morte, para deveras vir a ser príncipe), etc. Mas a minha costela de prof. é mais sensível ao lado pedagógico de tudo isso, sabe? Uma pedagogia ainda rousseauniana, reparou? O príncipe cresce ao seu ritmo natural de veado, que aliás conflitua com o ritmo de crescimento exigido ao príncipe, enquanto princípio e fundação do Estado. O crescimento do príncipe enquanto príncipe deveria ir mais depressa que o seu crescimento enquanto veado. Estão em pauta os dois corpos do príncipe, digamos. Por isso ele é posto em causa pelo outro jovem veado, que já dispõe de umas armações embrionárias, ao contrário do príncipe, que chega, por isso, a ser desconsiderado como «menina». Esse veado concorrencial é provavelmente o ponto crítico da teoria da educação do príncipe no Bambi II. Ele acelera a educação do príncipe, ainda que contra a voz profunda da Natureza, que por intermédio de uma série de provas e provações lhe vai fazendo ver que ainda está muito… verde. Vide a cena em que fica aterrorizado com o primeiro ataque dos cães e é salvo pelo pai in extremis, ou a do porco-espinho que habita o tronco que faz de ponte sobre o riacho e não só o não deixa passar como o castiga dolorosamente.
- Mas acha que o ritmo rousseauniano triunfa? Lembro-lhe que o príncipe se afirma como tal, no clímax final contra os cães, sem dispor ainda de armações. Ou seja, o corpo do príncipe triunfa aí, por precocidade e, logo, antecipação, sobre o corpo do veado.
- É verdade. Mas olhe que o crescimento, ainda que em ritmo natural, não se faz sem saltos, mais ou menos dolorosos. Assim como aquelas horas nocturnas em que as crianças acordam a chorar porque o corpo lhes está a crescer mais uns milímetros: sendo processo natural, não deixa de ser uma descontinuidade que dói. Assim, após várias provas de iniciação o príncipe está preparado, ainda que o não saiba, para a prova viril. E, como se lembra, logo após triunfar sobre os cães, na cena de harmonia final, já dispõe de umas embrionárias armações: a prova que o fez nascer como príncipe, fê-lo também, logo a seguir, mas em momentos não coincidentes, nascer como macho. Repare que, e esse é o momento da correcção política enquanto pedagogia conatural à Disney, o veado concorrente, que parece atingir a virilidade mais cedo, acobarda-se na hora H, demonstrando que a virilidade proclamada aos sete ventos é só isso mesmo: uma proclamação inconsequente. O próprio do príncipe, também e sobretudo nesta questão de identidade sexual, é o decoro com que se não proclama o que profundamente se é.
- Falta-nos falar da cena familiar e do papel do pai enquanto educador. Um dos aspectos menos convincentes do filme, pareceu-me. O pai é alguém que hesita, tenta transferir o seu papel para outrem (uma corça mãe adoptiva), recupera-o contrafeito…
- Pois a mim parece-me um movimento narrativo assaz coerente. Muito mimético de uma certa configuração paterna, quer por ausência de mãe quer por uma posição indecisa, transicional, na narrativa moderna (em rigor, pós-moderna) da reconfiguração do papel afectivo-educativo do pai. Desconfio que há muitos pais, a partir dos 40, que se revêem na personagem, por isso mesmo que referiu. Mas com tanta conversa estou ressequido, amigo Silvestre…
- Ok, já percebi. Chegue aí o copo.
- Obrigado. [Bebe mais um gole, saboreando lentamente] Já pensou no desastre que seria instalar uma central nuclear ao pé de terrenos aptos a produzir coisas como esta? Os riscos que daí adviriam para a nossa identidade nacional no futuro?
- Nem me fale, Mourão! Nuclear não, obrigado!
- Nuclear não, Mouchão sim!
- Nem mais! Como diria o pai do Bambi, se lho déssemos a provar, Nuclear não, Mouchão sim! Nuclear não, Mouchão sim!
[Levantam-se, andam à volta da sala e depois saem, com os copos na mão, entoando cada vez mais convictamente a palavra de ordem]

23 fevereiro 2006

Multiplex 3 (take 3)

— Não olhe agora, Groucho, deixe-a sentar-se.
(pausa; continuam a tomar café)
— Olhe agora, Groucho, mas devagar, seja discreto que isto é uma terra pequena.
(Groucho olha, depois continua a tomar café)
— Não diz nada, Groucho?
— Digo que é um animal humano bonito. E dito isto, não percebo de todo a sua excitação.
— Mas não lhe parece uma presença arrebatadora? Não acha que em determinadas circunstâncias um homem pode abandonar tudo para a seguir? E note que eu penso que o contrário também pode acontecer, de uma mulher para um homem, ou entre homens ou entre...
(interrompendo) Percebo perfeitamente o seu ponto.
(pausa, Groucho toma o último gole de café)
.
— Mas que raio, Groucho, estou a tentar voltar à conversa de...
(interrompendo) Percebo perfeitamente o seu ponto, repito. É análogo daquela tese que diz que a beleza é uma armadilha da natureza para pôr um homem em pé.
— Mas que raio de metáfora machista é...
(interrompendo) E note que, tal como o Sr. Mourão, penso igualmente que a metáfora se pode aplicar a qualquer uma das combinações que enunciou. É um modo algo infeliz de dizer, mas apenas isso.
— E então em que ficamos, Groucho?
— Ficamos na mesma, senhor. Melhor, tenho de concluir em termos mais universais: Decididamente, os humanos não percebem nada.
— Arre, Groucho, você hoje está intratável.

Multiplex 3 (take 4)

— Groucho, podia explicar-se um pouco melhor?
— Mas é simples, senhor. Já trabalhei no cinema, sei como se produz a beleza, sei a diferença entre a imagem que fica na tela e as pessoas reais que...
(interrompendo) Mas aquela mulher no café, por exemplo, era real.
— Então tenho de dizer que essa realidade não me interessa.
— Porque?..
— Olhe, interessa-me a Gata Borralheira, é isso. Interessam-me as pessoas cansadas, sujas, um pouco vencidas pela vida. Interessa-me não a beleza, mas a cicatriz que torna a beleza humana.
— Groucho, você anda a ler demais!.. Mas mesmo nisso da Gata Borralheira, se não fosse o sapatinho, como é que o príncipe...
(interrompendo) É o que eu digo: como os humanos não percebem nada, precisam de umas próteses para o entendimento.
— Como metáforas à custa de sapatinhos, é isso?
— Ou tesão à custa de imagens, dá no mesmo. Mas depois esquecem-se que as metáforas são metáforas, e de repente acham que estão no estado de natureza.
— Chiça, homem, lá se vai o encanto todo da Scarlett!.. E eu aqui a pensar que o clown metafísico era eu...
— Lamento. (pausa) Podemos ir agora jantar? Descansadamente, sem olhar para outras mesas?..

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho















Lopes, Adília: 1. Os gatos dela gostam (ou gostavam?) de brincar com as baratas lá de casa. 2. Diziam que só publicava livros fininhos mas a verdade é que quando os reuniu todos na sua Obra, tinha um tijolo tão gordo como o de Gastão Cruz (ou de Fernando Pinto do Amaral). 3. É muito religiosa mas aprecia a blasfémia e diz, por exemplo, que a osga lá na cozinha é Cristo e que a barata é a irmã Lúcia. 4. «Diz muitos palavrões nos poemas mas é bem educada. Também fala muito em foder mas é casta». 5. Há quem ache que é uma artista pop mas ela revê-se antes na Body Art. 6. «Se aquilo é poesia, com franqueza! Toda a obra junta não vale um poema - corrijo: um verso! - do Torga.» 7. O único escândalo vivo da literatura portuguesa, aquele que todos gostam de arrumar sugerindo que «não bate bem».

Louçã, Francisco: 1. Não é o líder do Bloco de Esquerda, pois lá não há disso. 2. Ao contrário de Paulo Portas, sabe o que é comover-se com o sorriso de uma criança. 3. Ao contrário do menino Jesus, sabe muito de Finanças e tem biblioteca. 4. Não foi eleito presidente, mas ficou lá perto. 5. Perscrutando o futuro, de olhos semicerrados: «Ainda lá vai».

Ter razão antes de tempo

- Está? Sr. Silvestre?
- Sim?
- É o Groucho, de Viana.
- O Groucho de Viana?!
- O Groucho, de Viana, senhor. Com vírgula no meio.
- Ah bom, percebo. E então a que devo esta honra, meu caro?
- Leu o Público de ontem, senhor?
- Não, porquê? Não me diga que já cá temos a gripe das aves!
- Não, não, afaste pra lá esse cálice. Era por causa da coluna do Sr. Prado Coelho.
- E então?
- Chamava-se «Teu corpo está a nevar»…
- É sobre a Serra da Estrela?
- Não, senhor, é sobre Tolentino Mendonça, e é verso dele, que EPC analisa: «Reparem: não é o meu corpo que neva mas o teu. Para Tolentino de Mendonça a questão do corpo é fundamental. Não apenas do corpo do outro mas também do corpo do outro». Sempre pedagógico: reparou no «reparem»?
- E há mais?
- Sim, muitos versos citados e lidos. A questão é justamente essa, senhor.
- Não sei se o acompanho…
- Lembra-se daquele PS ao balanço de 2005 em que ele se referia a «um livro de poemas que vejo referido mas nunca me chegou às mãos: A Estrada Branca de José Tolentino Mendonça»?
- Sim, claro.
- Pois dá ideia que o livro já lhe chegou às mãos.
- Os CTT são das coisas que melhor funcionam neste país, Groucho.
- Pois, mas a questão também ainda não é exactamente essa.
- Ena, isso é que é diferir a questão… Diga lá então qual é a dita, ó Hitchcock de Viana (sem vírgula).
- A questão é que, lendo os versos, a gente percebe que EPC tinha toda a razão em incluir o livro no balanço de 2005, e mesmo sem o ler. Logo, acho que lhe devemos um gesto de contrição.
- Se o meu amigo o diz… Está a ver como eu tinha razão? Os grandes críticos nem precisam de ler os livros para lhes reconhecer a valia. São seres oraculares.
- E ainda há quem diga mal de Gaspar Simões por ele, ao que consta, ter também esse dom…
- Isto é um país de gente medíocre e invejosa, Groucho. E maledicente, ainda por cima.
- E então agora, com a proliferação de blogues, o que para aí vai de má-língua…
- Ui, ui…

22 fevereiro 2006

Multiplex 3 (take 2)


— Decididamente, os homens não percebem nada.
— Não o sabia tão descrente da humanidade, Groucho.
— Referia-me apenas aos machos da humanidade, senhor.
— Conte lá, Groucho, alivie a sua alma.
— Lembra-se quando ela lhe diz que os homens costumavam julgar que ela tinha alguma coisa de especial?
— Sim, ele pergunta-lhe: e tem? E ela responde que nunca nenhum lhe pediu o dinheiro de volta. É um dialogo típico para introduzir a mulher fatal, qual é o problema?
— O problema é a afirmação dela, Sr. Mourão. É um aviso claro, é uma forma de dizer que ela não tem nada de especial, que quer o que é suposto as mulheres quererem, pelo menos a maioria delas.
— E isso que as mulheres querem, na sua douta opinião, é o quê, Groucho?
— Não ironize à minha custa, senhor, estou só a falar do filme... No final, ela quer ter o filho, um marido, e um pequeno mundo deles. E isso ela já sabe desde o início, quer dizer, ela sabe que foi sempre isso que quis.
— Mas uma mulher daquelas, Groucho...
— Uma mulher daquelas é apenas o espelho infantil dos machos, mas que se vai recusando a ser apenas isso. Por isso ela avisa.
— Já não há mais espaço para a mulher fatal, é o que me está a dizer?
— Decididamente, os homens não percebem nada, é o que lhe estou a dizer.
— Nesse caso, nunca perceberam.
— Também serve.

21 fevereiro 2006

Racionalidade, racionalidades: o debate Sahlins-Obeyesekere (1)

Como refere Robert Borofsky[1], o célebre debate Sahlins-Obeyesekere é bem mais que uma mera “tempestade num copo de água”.[2] Ele extravasa em muito o significado “local” circunscrito pelas etnografias e contextos históricos em que se move, detendo significados e implicações cuja inscrição no campo das teorizações antropológicas convém ponderar.
Para lá dos argumentos esgrimidos em torno de uma suposta qualidade divina do capitão Cook – foi o capitão Cook entendido pelos havaianos nos anos de 1778 e 1779 como uma manifestação do seu akua (termo por vezes traduzido para o inglês por “deus”) Lono? -, o debate levanta todo um conjunto de problemas que exigem que repensemos não apenas o alcance epistemológico e metodológico das tradições antropológicas, mas também o lugar que auferem, num plano mais geral, as nossas construções sobre a diferença cultural e sobre a imagem que produzimos do passado. Borofsky delimita assim algumas desses problemas de alcance mais geral no seu ensaio de síntese sobre o debate, problemas que podem ser enunciados muito soltamente nestes termos:
Em que grau as políticas da identidade no presente exigem que reconsideremos o esforço etnográfico e antropológico?
Quem tem o direito de falar sobre quem (sobre outros, por outros) através das fronteiras da diferença no presente?
Como é que podemos avaliar proposições conflitivas sobre o passado de alguém?
Por último, um problema que recorta os que enunciei atrás (que o mapa de Borofsky ataca só tangencialmente), e que constitui o cerne do que me proponho fazer aqui, como poderemos “compreender” os universos simbólicos e práticos de outros, senão presumirmos não apenas uma “racionalidade” pan-humana mas também a possibilidade de traduzirmos culturas? O que nos lança no debate acerca da relação entre “mente” e “cultura” – um debate que nunca encontrou no interior das tradições antropológicas senão respostas imprecisas, sectoriais (senão mesmo paroquiais) e cujos desenvolvimentos recentes no campo das ciências da cognição tem de ser tomado em linha de conta. Uma das implicações a jusante de tudo isto será porventura o reequacionamento da aporia cérebro-mente/corpo, ou, de forma mais compreensiva, o debate natureza-cultura. Por fim, o que este último problema exige é também uma reapreciação transversal dos termos em que se colocam tópicos como sejam o das epistemologias convocadas, sejam elas de recorte racionalista ou de recorte relativista (que são, em grande medida, e a usar o chavão kuhniano, incomensuráveis, ainda que coexistentes).
É este último problem que me move aqui (que poderíamos articular talvez como aquele que se prende com a racionalidade, a cognição e o relativismo). Seja como for, e antes do mais, first things first, em que consistiu (melhor seria dizer em que consiste, dada a deriva exegética em que se tem desdobrado) o debate?

O debate. Observações iniciais
Em 1992 Gananath Obeyesekere traz a lume o seu The Apotheosis of Captain Cook.[3] O livro pretende desmontar criticamente a seguinte tese:
Quando o grande navegador e “descobridor” da Polinésia inglês James Cook chegou às praias do Havai – à sua principal ilha, Havai’i - no domingo de 17 de Janeiro de 1779 durante o festival de Makahiki, ele terá sido celebrado como o regressado deus Lono. Qualquer história de Havai’i incorpora este “facto”. Em rigor, qualquer narrativa sobre Cook e Havai’i o faz.
Para Obeyesekere, este “facto” foi criado pela imaginação europeia, baseando-se para tal em “modelos míticos” tecidos em torno do “formidável explorador e civilizador que é um deus para os ‘nativos’”.[4] Como escreve Obeyesekere:
A colocá-lo sem cerimónias, duvido que os nativos tenham criado o seu deus europeu; os europeus criaram-no para eles. Este “deus europeu” é um mito de conquista, imperialismo, e civilização – uma tríade que não pode ser facilmente separada.[5]
É durante a terceira expedição de Cook que este chegará ao Havai’i (1776-1779). Neste viagem, Cook – já uma personagem muito famosa pelas suas duas anteriores expedições - tinha como objectivo encontrar a “passagem do Noroeste”, uma passagem navegável que se acreditava atravessar a América do Norte de Este a Oeste e que iria encurtar enormemente a distância nas rotas comerciais entre a Europa e a China. É neste contexto que Cook irá descobrir Havai’i, e será aí que supostamente os nativos irão atribuir-lhe as qualidades do seu benevolente deus Lono que regressava de alhures precisamente a tempo das festividades cíclicas compreendidas pelo Makahiki.[6]
Acerca desta terceira expedição importa avançar com alguns elementos que são lugares muito comuns para os oceanistas, mas que aqui merecem rememoração. A história poderia começar a 6 de Julho de 1776, dois dias depois da Declaração Americana de Independência.[7] As instruções secretas do Almirantado a James Cook, Comandante da chalupa de Sua Majestade Resolution, diz na sua abertura: “Visto que o Conde de Sandwich [patrono da viagem, e o responsável máximo pelo Almirantado inglês] nos transmitiu a Vontade de Sua Majestade de se realizar uma tentativa para encontrar uma passagem pelo mar do Pacífico para o Oceano Atlântico…” A Cook, então com 48 anos, foi atribuído o comando do Resolution e do Discovery para encontrar a passagem do Noroeste através do Ártico. No caminho Cook encontrou as ilhas Havai. Cook avistou Havai’i, circum-navegou a ilha (princípios de Fevereiro de 1778), foi particularmente bem acolhido pelos havaianos, partiu para Norte, e encontrou uma parede de 12 pés de gelo em pleno Verão na extremidade norte do Alasca, regressou, contornou a Havai’i três vezes, sendo novamente bem acolhido, e partiu. O navio de Cook, o Resolution, que havia sido bem preparado para a sua segunda viagem, estava mal preparado para a terceira, já que fora equipado e afinado nos estaleiros de Deptford que se encontravam envoltos em acusações de corrupção e compadrio. Quando saíu do porto apresentava-se mal vedado e com problemas técnicos vários, em particular nos mastros. Assim, após a partida final de Havai’i, um mastro do Resolution quebrou-se em mar alto. Os barcos regressaram a Havai’i para serem confrontados, desta vez, com a hostilidade sistemática dos nativos. Por fim, a escuna do Resolution foi roubada. Cook reagiu agressivamente. Na refrega, ele e mais quatro marinheiros foram assassinados na praia.
Como é que Obeyesekere se interessou por esta história? Qual a posição que ele ocupa no espaço de discussão antropológica, e de que modo é que tal posição nos permite a nós, enquanto leitores, dilucidar os motivos em que se alicerça a sua “estranheza” perante esta narrativa fortemente essencializada e reificada pelos historiadores e etnógrafos das ilhas Havai, onde avulta o antropólogo culturalista americano Marshall Sahlins?
Obeyesekere afirma-se como um antropólogo que trabalha na Universidade de Princeton e um nativo do Sri Lanka. Foi, segundo ele, deste patamar[8] que emergiu o seu interesse por Cook. E é aí que entra Sahlins. Sahlins terá usado este exemplo, o da “apoteose do Capitão Cook”, a usar a expressão de Obeyesekere, para construir uma “teoria estrutural da história”.[9]
Como é que isto funciona em Sahlins?
Em termos etnográficos (mas evitando o detalhe), Cook terá chegado durante o festival de Inverno em que se celebra o regresso do deus Lono de uma terra distante para lá do horizonte. O regresso seria sempre simbólico, mas desta vez ele seria estranhamente real, personificando-se em Cook. Durante o festival, Lono circula em torno da ilha. Cook terá circum-navegado Hawai’i na direcção certa e no tempo certo, sendo tomado como Lono. Porquê então o homicídio? Porque quando o Resolution regressa após o incidente do mastro quebrado em mar alto, o festival de inverno tinha terminado. A desorientação é pois uma condição perigosa:
O capitão inglês partiu nos princípios de Fevereiro de 1779, quase precisamente no dia em que as cerimónias Makahiki fechavam definitivamente. Mas na sua saída para Kahiki, o Resolution partiu [sprung] um mastro, e Cook cometeu a falta ritual de regressar inexplicável e ininteligivelmente. O Grande Navegador estava agora hors catégorie, uma condição perigosa como Leach e Douglas nos ensinaram, e dentro de alguns dias ele estava realmente morto – ainda que alguns sacerdotes de Lono tivéssem perguntado depois se ele regressaria.[10]
Em termos muito gerais, e parafraseando Sahlins, um evento histórico é metáfora de uma realidade mítica, ou, de outro modo, o domínio da contingência é histórico porque é significativo.[11] Ou ainda: “O evento é um acontecimento [happening] interpretado”.[12]
Obeyesekere não é, nas suas próprias palavras, avesso à teorização de Sahlins. O que lhe provocou a sua ira foi o exemplo usado por Sahlins.[13] Assim, quando Sahlins avançou com a proposta de que Cook foi tomado pelo deus Lono num seminário em Universidade de Princeton em 1983, Obeyesekere não conseguiu evocar um único exemplo da sua infância no Sri Lanka em que um estrangeiro tenha sido alguma vez tomado aí como um deus, apesar de uma longa história de contacto entre locais e europeus. Para Obeyesekere estaremos perante uma projecção ocidental, um “modelo mítico”, isto é um mito paradigmático que serve como modelo para a construção de outros tipos de mitos, reportando-se a todo um conjunto de ideias subjacentes (uma estrutura mítica ou um conjunto de mitemas, a usar expressões lévi-straussianas a que Obeyesekere apela) que são usadas em várias formas de narrativa.[14]
Não vou alongar-me no que diz respeito a este aspecto. Cumpre-me apenas acrescentar que Obeyesekere refere-se também na sua argumentação ao carácter “esquivo” destes modelos míticos, chamando-nos à atenção que se Todorov nos diz que se na civilização ocidental o logos se impôs ao mito, para ele, Obeyesekere, “o mito continua a reinar aí sob o estandarte do logos”.[15]

Racionalidade, racionalidades
Um dos eixos da argumentação de Obeyesekere – aquele que nos interessa destacar – prende-se com a suposta “endémica falta de descriminação em nativos cosmologicamente constrangidos na etnografia da Polinésia”[16], fazendo isto apelo a um modelo mítico que consiste basicamente na ideia de que a estruturação simbólica do pensamento nativo é exclusiva e total. Ela exclui formas de pensamento que tendemos a conotar com modos mais racionais de constituição do real. Ela é compreensiva e não admite excepções ao seu quadro de estruturação simbólica (subjacente a isto há, evidentemente, uma concepção holista de cultura que consiste no adágio “diferentes culturas, diferentes racionalidades”[17]). A ideia de que os nativos pensam pré-lógica e misticamente não seria certamente uma invenção de Lévy-Bruhl, mas antes um modelo mítico ocidental actuante ainda hoje e a produzir os seus efeitos no pensamento de antropólogos como Sahlins.[18] O que Obeyesekere, dotado de um conceito menos exclusivista e totalizador ou compreensivo de cultura exige é que se considere a possibilidade das culturas não serem afinal “terminais”, a usar uma expressão de Gellner.[19] O reconhecimento disto faz, segundo ele, cair por terra a identificação entre Cook e Lono partilhada pelos havaianos durante a chegada do navegador inglês.
Obeyesekere defende que se considere o não isomorfismo entre linguagem e cultura, no sentido em que a cultura (tal como pretendem Lévi-Strauss ou Todorov) não funciona como um sistema de signos que estrutura a expriência.[20] Assumi-lo será afinal, e logicamente, afirmar a perpetuação do antigo modelo mítico da mentalidade selvagem à la Lévy-Bruhl. É afirmar tão-só, e até onde consigo perceber, a sobredeterminação dos signos, e propor uma sujeição do evento e da experiência às ordens da estruturação via langue. Seguindo pensadores como Bakhtin, Obeyesekere propõe-nos a proeminência da parole sobre a langue, recusando assim a “inflexibilidade do pensamento cosmológico”.[21] Como ele escreve:
A improvisação não pode ser alheia ao pensamento cosmológico: ele poderá ser intrínseco à sua invenção, prática e performance. Assim que se assumimos que as crenças culturais são múltiplas e em realidade não organizadas num único sistemas de signos, logo poderemos libertar-nos da visão de que “tudo se passa como se […] os signos automática e necessariamente procedessem do mundo que designam” e que deste modo não possuíssem flexibilidade manipulativa.[22]
O que está aqui em jogo é o seu conceito de “racionalidade prática” que Sahlins irá refutar mais tarde: seguindo Max Weber, Obeyesekere propõe-nos através deste termo a noção de que estamos perante “o processo pelo qual os seres humanos reflexivamente acedem às implicações de um problema em termos de critérios práticos”[23], em suma, o modo como se produzem “juízos situacionais”.[24] O acento é colocado na ideia de uma abertura, de um processo. A racionalidade prática a que se refere não é substantiva, antes processual: “um modo de pensar, e não um modo de pensamento”.[25]


[1] Robert Borofsky, 1997, “Cook, Lono, Obeyesekere, and Sahlins”, in Current Anthropology, 38, 2, pp. 255-82.
[2] A expressão de Borofsky é “a tempest in a teapot of exotic details” (p. 255).
[3] Obeyesekere, Gananath, 1997 (1992), The Apotheosis of Captain Cook: European Mythmaking in the Pacific, Princeton, Princeton University Press (2ª edição).
[4] Idem, p. 3.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, p. 7.
[7] Hacking, Ian, 1999, “The End of Captain Cook”, in The Social Construction of What?, Cambridge (Mass.) & Londres, Harvard University Press, pp. 214-5.
[8] “[T]ese existential predicaments”, a usar a sua expressão (idem, p. 8).
[9] Para isto, ver, sobretudo, Sahlins, Marshall, 1981, Historical Metaphors and Mythical Realities: Structure in the Early History of the Sandwich Islands Kingdom, Ann Arbor, University of Michigan Press, e Sahlins, Marshall, 1985, Islands of History, Chicago, University of Chicago Press.
[10] Sahlins, Islands of History, p. 94.
[11] Idem, p. 108.
[12] Idem, p. 153.
[13] Obeyesekere, The Apotheosis, p. 8.
[14] Idem, p. 10.
[15] Idem, p. 11.
[16] Obeyesekere, The Apotheosis, p. 21.
[17] Obeyesekere, Gananath, 1997, “On De-Sahlinization”, in The Apotheosis, p. 209, p. 209.
[18] Obeyesekere, Gananath, The Apotheosis, p. 15.
[19] Gellner, Ernest, 1998, Language and solitude: Wittgenstein, Malinowski and the Habsburg dilemma, Cambridge, Cambridge U.P., p. 187.
[20] Obeyesekere, The Apotheosis, p. 19.
[21] Idem, p. 19.
[22] Idem, ibidem.
[23] Idem, ibidem.
[24] Idem, ibidem.
[25] Idem, p. 21.

Multiplex 3 (take 1)


— Menos comentários desta vez, Groucho?
— Só mesmo à saída, uma senhora muito alta e indignada, dizendo ao marido: «É indecente, ele devia ter sido castigado!».
— Difícil aceitar a roleta russo da existência...
— Não me diga que também acha que o filme é mesmo sobre a sorte ou o azar de um match-point?
— Que ele quer vencer, é claro, mas em que a sorte ajuda bastante. Mas já vejo que tem outra leitura.
— É verdade que ele vence, mas não sei se aquele ponto é de match ou apenas de partida.
— Mas o título, Groucho...
— Pois... Mas veja bem a última cena, todos reunidos em torno do novo bebé, e ele de fora, como que separado de tudo.
— Remorsos, mas com dinheiro à vista, diria eu.
— Dostoievskiano, prefiro eu dizer. A cena mais dostoievskiana de todas, mais do que aquele diálogo com os fantasmas dos mortos saído directamente do Crime e Castigo.
— Não percebo.
— A grande descoberta de Dostoievski, Sr. Mourão, é a de que os remorsos ou a culpa nos separam de tudo, nos emparedam dentro das nossas pobres categorias. Não é uma questão de bem e mal, é uma questão de não haver terreno comum que permita que nos possamos reconhecer. Ele ganhou, e por isso mesmo perdeu, não pode partilhar com ninguém o que fez, não pode aspirar a que ninguém o reconheça naquilo que fez.
— Vive num inferno, quer você dizer.
— Quero dizer que o inferno é isso e nada mais que isso. E que a roleta russa não é para aqui chamada.
— E disse isso à senhora muito alta e indignada, como você lhe chamou?
— Não, deixá-la primeiro aprender a roleta russa, esta conversa só pode vir depois.

20 fevereiro 2006

Desdobrando a adivinha

Caro Senhor
Abel Barros Baptista:

Agora que todo este episódio chegou a bom termo, permita-me, não que tente adivinhar a sua adivinha, mas que a desdobre para começar a pensar. Caso em que ponho à sua consideração este outro exemplo, outro porque diferente e não mero acrescento. Trata-se de um autor que muito se baldou para as imunidades da língua — aliás, ao ponto de fazer disso uma das suas marcas autorais — mas que de repente encontra um vírus quiçá demasiado forte. Há um novo professor na aldeia, estamos a muitos anos do processo de Bolonha, and it goes like this:


"Dizia que a aprendizagem se devia fazer escrevendo logo na lousa palavras inteiras designando objectos conhecidos. Escrever por exemplo «pedra», «tijolo», «enxada», «exploração capitalista».
— É um método muito bom
era um método muito bom, as crianças entravam logo no seu mundo, uma enxada eles sabiam o que era. Mas ele tinha outro método que era o mesmo, trabalhado com palavras de impacto muito mais forte. Lá estava ele com o seu impacto, eu ouvia em cima, era uma barulheira infernal. (...)
— É muito positivo — dizia-me ele depois. — As crianças riem, como é próprio da ignorância, mas fixam logo a palavra, nunca mais a esquecem.
Eu também as não esqueci, diziam assim: «cu», «merda», «puta», «car(v)alho», «cagar», «porra», «fo...-se». Eu digo «fo...-se» com pontinhos e «car(v)alho» com um parêntese porque sou ainda um subdesenvolvido moral, mas o professor escrevia por inteiro.
— É muito positivo — dizia-me ele
e havia toda uma desmitificação a fazer dessas palavras. Achei, todavia, que a última que eu disse com pontinhos era muito forte e complicada e perguntei porque é que a ensinava, ele explicou que
— É por causa do hifen."
Vergílio Ferreira, Signo Sinal, 1979, pp. 52-53


Digamos que há aqui, de facto, um problema de “hífen”, de ligação entre a permanência ou a insistência de alguma “condição humana” e a linguagem que a enuncie nas novas “condições simbólicas” em que o termo vanguarda já só quer dizer “o senhor que se segue”. Claro, terá que ser senhor, e ser reconhecido como o que se segue. Mas enquanto houver mundo, é de crer que essa abundância não nos faltará. Por outro lado, nem de vanguarda aqui se tratará, mas da linguagem que pertence a este real, tendo-lhe sempre pertencido. Esta e outras — daí o problema, se o for.
Mas pensemos.

Saudações casmurras

19 fevereiro 2006

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho















Llansol, Maria Gabriela: 1. Lê-se os livros dela e não se percebe bem de que tratam. Mas percebe-se que os travessões são importantes. 2. Para perceber mesmo os livros, consultar António Guerreiro ou João Barrento. Em última instância, Fernando Venâncio.

Lobby gay: 1. Está por toda a parte, da Gulbenkian (sobretudo na dança, em boa hora extinta) ao teatro e à poesia. 2. Controla os média e o governo. 3. Reúne-se conspirativamente em restaurantes caros, no Bairro Alto.

Os últimos moicanos























- Isto está mesmo às moscas…
- Mal temos onde sentar-nos.
- Há ali aqueles caixotes... Antes que os venham buscar, sempre darão para alijarmos o peso do homo erectus.
- Perífrase perigosa, Silvestre…
- Ambígua, sim, tem razão, sobretudo para tipos na meia-idade. Mas enfim, cá estamos. Tome assento, Mourão e faça de conta que está em sua casa.
- Bom, isto sempre foi uma casa de faz de conta, pelo que a diferença não é assim tanta.
- O eco que isto faz! Impressiona, ver as paredes nuas. O meu amigo também é dos que sentem, como os barrocos, a aflição do desnudamento? A decoração como terapia para o horror ao vazio?
- Nem por isso. Sinto-me mais em casa, assim.
- Mais em casa… Percebo. Bebendo um chá com Dona Morte, suponho.
- De bergamotas. Lendo e discutindo a ode do Campos, «Vem Noite antiquíssima e idêntica», etc., nem deve ser desagradável.
- Ocorreu-me agora… [Levanta-se, febril, e pesquisa o caixote onde esta sentado] Ah, ah! Bem me parecia! [Circunvaga o olhar, ansioso, pela sala ainda com caixotes e ferramentas pelo chão. Encontra o que procurava e corre a buscar um formão, em cima de um caixote] Ora aqui está! Deixe-me cá abrir isto. [Ao cabo de alguns esforços, abre a tampa do caixote. Mete a mão lá dentro e tira, primeiro palha, depois uma garrafa] Bem me parecia! Veja bem, amigo Mourão: Barca Velha com 16 anos. Uma caixa dele e de outras preciosidades. Como diria o capitão Haddock, temos aqui combustível para muita conversa.
- Vejo que sim. Vocês tratavam-se bem, caramba. Devia ter-me mudado para cá mais cedo.
- No seu caixote, se não erro, tendo em conta a indicação externa, devem estar os copos. Deixe-me cá abri-lo. [Repete a operação com o formão e tira de lá os copos] Bebamos, então. À nossa.
- À nossa. E à do clube Casmurro!
- Isso é que não sei… Pergunto-me se não devíamos mudar o nome disto para Clube Misantropo. Só duas pessoas, percebe? E sentados em caixotes de mudanças.
- Mas a beber Barca Velha, amigo Silvestre. Não esqueça. Por outro lado, se me permite, na medida em que eles é que fugiram não sei para onde, não são eles os misantropos? É que o novo clube nem permite a arte da conversação, ao que sei. Só monólogos…
- É, parecem os debates da campanha presidencial… Em mais pretensioso e a dar para o pseudo-intelectual.
- Exacto. E por outro lado, na medida em que permanecemos no clube, ainda que despido e quase solitário, não somos nós os verdadeiros e últimos casmurros?
- Os últimos moicanos, amigo Mourão! Tem toda a razão! Os moicanos da casmurrice! Já me sinto possuído do frémito da agonia sublime das espécies em extinção: gestos nobres à beira do abismo, suicídio e redenção. Passe-me aí a garrafa, se não se importa.
- Por quem é. Mas deixe-me só encher antes o copo, que isto é cá uma pomada! [Passa a garrafa e saboreia mais um gole] Travo a canela, bouquet de flores silvestres com…
- Acalme-se, Mourão. [Bebe mais um gole] Bem vistas as coisas, tem toda a razão: somos mesmo os últimos abencerragens do Casmurro.
- A coisa boa é que, a partir de agora, o clube só pode crescer!
- Encontro-o estranhamente optimista. E tomado do proselitismo das espécies em vias de extinção: «Hoje somos poucos, amanhã seremos milhões!» Estou mesmo a ver os dinossauros a dizerem isso no dia seguinte à queda do meteorito… Ora, como podemos nós crescer se nem temos assentos condignos, nem mordomo (aquele homem agora não sai do Minho), nem cheta? Sim, que o cofre está vazio! Aqueles tipos deixaram-nos na falência.
- Mas o cofre alguma vez teve dinheiro? Não me parece que o empreendimento fosse rentável, amigo Silvestre. Só conversa, só conversa, nada de ir directos ao assunto. Ná, não estou a ver que isto pudesse render. E depois, sabe? Antes assim.
- Quem não tem dinheiro não tem vícios? [Serve mais um Barca Velha ao interlocutor, antes de se servir a si]
- Obrigado [Bebe um gole]. Melhor (ou pior). Quem não tem dinheiro nem cadeiras para repousar o corpo – e só tem bebidas espirituosas… - dedica-se à vida do espírito. Parece-me uma boa transacção.
- Sim, em todo o caso melhor do que aquela do Match Point, do Woody Allen, lembra-se? A personagem principal diz que o pai encontrou Deus quando perdeu as duas pernas num acidente, e o futuro cunhado comenta que não lhe parece que tenha sido uma boa transacção. É estranho mas as pessoas não se riem nessa altura... Há poucos casmurros, é o que é. A vida pesa, as pessoas só se riem por desfastio ou quando são apanhadas desprevenidas. Por princípio, preferem não brincar com coisas sérias. E apascentar o ser é coisa bem séria.
- Este tinto, amigo Silvestre, é a casa do ser! E nós somos os autodesignados guardas desta habitação. Desta clareira…
- Ora, isso é que é falar! Mas um humanismo sem amigos é uma contradição nos termos, não é? Só nós dois aqui, os outros auto-exilados algures…
- Não me parece, se percebermos que falamos de um humanismo casmurro: de poucos, para poucos, todos situados no espaço apátrida do pensamento do ser. Da difícil e árdua escuta do ser. A apatridade torna-se assim um destino do mundo.
- Estou a ver, estou a ver, e até me parece bonito! Uma pastoral digital, em que a comunidade se imagina e reconstitui por meio de um conjunto de ciberferramentas. Todos longe, todos perto. Ou da impossibilidade humanista (pós-humanista?) do exílio.
- Nem mais. Como vê, há um futuro para nós. O fundamental é não dramatizar. Afinal de contas, duas pessoas pode parecer pouco, na óptica, sei lá!, do futebol, mas é um princípio de comunidade. Ou irmandade.
- A Irmandade do Anel?
- É mais do tonel, no nosso caso, não é?
- Sabe do que me lembrei agora, Mourão? A propósito de casas do ser, clareiras, irmandades, etc.?
- Diga…
- E se fôssemos ver o Bambi II? Acaba de estrear e, pelas minhas memórias do original como pelas recensões na imprensa, parece-me a melhor propedêutica a tudo isto que temos estado para aqui a tentear: humanismo, espécies em extinção (os veados, os humanistas…), casas do ser. Há agora uma sessão. Se nos despacharmos, ainda chegamos a tempo. Que me diz?
- É pra já, Silvestre! Excelente ideia! Deixe-me só ir buscar o guarda-chuva.
- OK, mas despache-se, que não temos muito tempo.
- Já vou, já vou…

Reunião de condomínio (via Skype)

MP: Pois eu exijo uma reparação imediata! Afinal de contas, todos os senhores assumiram, sem qualquer tipo de prova, que tinha sido eu o autor da usurpação!
OMS: De facto, houve muita leviandade na difusão dessa calúnia, temos de admitir.
LQ: Mas foi o senhor quem levantou a calúnia!
OMS: Peço desculpa?! Eu já deixei claro que fui objecto de uma usurpação de nome na carta em que se produz a calúnia em causa! Exijo uma reparação pela sua calúnia, Sr. Quintais!
FMO: Eh pá, calma lá com isso, que o Sr. Quintais também foi objecto das brincadeiras de mau gosto do usurpador!
ABB: Olha, olha! Por cá, senhor Oliveira? Interrompeu a sua pastoral?
GR: Isto não vai dar em nada… Só remoques, agravos… Ná, acho que regresso às minhas leituras.
PS: A verdade é que as provas pareciam irrefutáveis!
MP: Provas? Quais!? O senhor não vê o CSI? Veja, veja, pode ser que aprenda a distinguir uma prova de uma calúnia.
CA: E se a gente tentasse avançar? Talvez por exclusão de partes? Ora deixem-me cá tentar. O Sr. Portela está portanto eliminado. O Sr. Quintais fazia trabalho de campo à data, estava pois demasiado ocupado. Quanto ao Sr. Baptista…
PS: Alto lá, que não conseguiu apresentar álibi convincente!
CA: Era o que eu ia dizer, caro senhor. Acalme-se. Mas olhe que o mesmo vale para si…
PS: Mas se eu estava, como estou, no estrangeiro!
CA: Ora, com franqueza! Em que é que isso hoje inibe um gesto de pirataria desta natureza?
FMO: Receio bem que o método da exclusão de partes deixe muita gente incluída.
LM: Também acho. Sugiro antes o Hunter.
CA: O Hunter? E o que é isso?
LM: Um programa informático que permite reconstituir, ao invés, o percurso de um hacker na rede até chegar à etapa final, ou melhor, inicial. Neste caso, a partir das cartas em causa, activa-se o Hunter e ele vai por aí fora a retroceder no espaço-tempo até chegar ao computador do pirata. É infalível. É uma invenção dum puto aqui de Viana.
ABB: Active-se, bolas. Até eu sou já objecto de dúvidas! Pois bem, quero limpar o meu nome! Tem aí o programa?
LM: Tenho, sim. É pra já. [Põe o programa a correr] Lá vai ele… Parece que já deu com o nosso homem… Que, afinal, quem diria?, é uma mulher… Parece que o nosso usurpador é a Clara Antunes…
GR: Não acredito! Isso deve ser pirateado…
CA: Eu… Eu…
MP: Uff! Como vêem, não fui eu!
ABB: Nem eu, carago!
LM: Esperem… Afinal parece que falei demasiado cedo. O programa continua à procura. Pelos vistos, o computador da Clara foi usado como «véu» para disfarçar a progressão do hacker. Calma… Está agora a detectar o nosso homem (agora é que tem de ser um homem)… E o euromilhões é para… o Sr. Oliveira.
OMS: Eu logo vi!
PS: Pois eu estou espantado. Nunca me passaria pela cabeça.
FMO: Eu… Eu…
MP: Uff! Como vêem, não fui eu!
ABB: Nem eu, carago!
LM: Esperem… Afinal parece que falei demasiado cedo. O bicho continua a rabear. Mais um disfarce, pelos vistos… Está a parar. No computador do… Sr. Silvestre.
FMO: Eu logo vi!
OMS: Eu… Eu…
MP: Uff! Como vêem, não fui eu!
ABB: Nem eu, carago!
LM: Esperem… Afinal ainda não foi desta. O programa continua a correr. E corre cada vez mais depressa. Está a parar… Agora é o Sr. Rubim…
GR: Eu… Eu…
MP: Uff! Como vêem, não fui eu!
ABB: Nem eu, carago!
LM: Esperem… Continua a corrida. Agora é o Sr. Serra.
PS: Eu… Eu…
MP: Uff! Como vêem, não fui eu!
ABB: Nem eu, carago!
LM: Esperem… Isto continua. Agora é o Sr. Portela.
MP: Eu… Eu…
ABB: Uff! Como vêem, não fui eu, carago!
LM: Esperem… Isto continua. Agora é o Sr. Baptista.
ABB: Eu… Eu…
MP: Uff! Como vêem, não fui eu!
LM: Esperem… Ainda não acabou. Agora é o Sr….
CA: Então?
LM: Não acredito… Parece que desta vez sou eu!
MP: Uff! Como vêem, não fui eu!
ABB: Nem eu, carago!
LM: Esperem… Uff! Isto continua, graças a Deus. Já estava a enlouquecer. Mas não estou a ver onde é que pode ir agora parar. Já está toda a gente, não está?
OMS: Sim, não vejo quem mais possa ser.
LM: Está a parar… Não pode ser… Não acredito… Ai o grande malandro!
PS: Mas quem é, gaita?
CA: Sim, ande lá com isso. Eu quero saber, e já, até porque fui a primeira a ser incriminada!
LM: Vocês não vão acreditar… A fonte de tudo isto é o computador do… Groucho!
[Silêncio incrédulo]
LM: Eu… Ai o mal agradecido!
FMO: Eu… Ai o raio do mordomo!
CA: Eu… Tão bem que ele sempre me tratou!
GR: Eu… Ai o cabrão!
PS: Eu… Já não se pode confiar em ninguém!
OMS: Eu… Agora é que não volto a acreditar em Deus!
MP: Eu… Que fizemos nós para merecer este apócrifo?
ABB: Eu… Não sei se acredite… Nós a pensarmos que o tipo era um mero factotum nosso e, afinal, é ele a Matrix de tudo isto...
[Ambiente de depressão geral]

Usurpação?

Casmurros,

- Usurpação?
- Ão, ão, ão!
- Violação?
- Ão, ão, ão!
- Tanto eco?!
- Eco, eco, eco.
- Não se calam?!
- Alam, alam, alam.
- Eu não fui!
- Ui, ui, ui.
- Casmurrices!
- Ices, ices, ices.
- Deixem-me em paz!
- Az, az, az.
- Masturbação!
- Ão, ão, ão!
- Bye Bye!
- Ai, ai!

Abraços aços aços,

Manuel Portela

Com franqueza!

A Abel Barros Baptista e aos demais casmurros,

Não há exemplo que nunca empalideça, e não há intelecto que nunca fraqueje! Que decepção, esta última contribuição do Sr. Baptista para o debate! No fundo, o que o dito Sr. veio fazer foi ceder, em toda a linha, àqueles que estão sempre a acusar-nos de nos perdermos em digressões sem fim, de não atacarmos directamente os assuntos e de – pecado dos pecados! – incorrermos em «masturbação intelectual»! Porque no fundo foi disso que o Sr. Baptista nos acusou. Por mim, confesso que nunca percebi a acusação nefanda da «masturbação intelectual». Por duas razões. Porque a acusação pressupõe que a masturbação é criatura esquálida e desonesta – quando na verdade é, como todos sabemos, uma fonte de esquisitos prazeres. E porque transpô-la para o domínio intelectual, sobre ser metáfora arrojada, equivale a alçar a vida intelectual a alturas que ela, sejamos justos, raramente consegue atingir. Quantos livros, quantas ideias, quantos pensamentos nos conseguem proporcionar a gratificação da masturbação? Sejamos justos: muito poucos. Contam-se pelos dedos de uma mão, se é que posso usar esta imagem, aliás muito apropriada à questão.
Era só isto, caro Sr. Baptista.
Cordialmente,

Clara Antunes

Paris Texas

Casmurros,

Poderei sugerir, muito discretamente, que voltemos ao ponto de partida, em vez de nos perdermos nestas intermináveis discussões sobre autorias? É que por esta altura, como se constata, já todos esqueceram que isto começou com um estimulante desafio lançado por mim, em torno de palavras de Camilo sobre Eça. Essa é que é a questão, com mil raios! O «sentido crítico do moderno», as «imunidades de língua» e a debilidade da vanguarda derivada dos solecismos queirosianos! Ainda não é tarde para arrepiarmos caminho e elevarmos a discussão até àquele ponto a que os leitores do Casmurro estão habituados. Ainda não é tarde para regressarmos ao nosso Paris Texas!
Coragem , casmurros, há um mundo a ganhar!
Com toda a sintonia intelectual,

Abel Barros Baptista

Re-defesa da honra

Caríssimos,

Como sabem, pouco mais tem um poeta, em sede ética, do que o rigor e a exigência estética dos seus versos. Que venha agora um espúrio Luís Quintais dizer-me que Luís Quintais assume aqueles versos, é um enunciado que deveria ser suficientemente auto-refutante para me dispensar de mais indignações. Sendo porém o mundo a cloaca que todos conhecemos, vejo-me na necessidade de redefender a minha honra, deixando bem claro que: (i) o meu nome de baptismo é Luís Quintais, (ii) tenho uma resma de livros publicados e mais um para sair na Cotovia, e portanto tenho todo o direito a assinar-me Luís Quintais. Se o usurpador acha que para se assinar tem de me assassinar, isso é com ele.
A mim, cabe-me apenas reiterar que o autor de Uma ajuda, com algum trabalho de campo se não chama Luís Quintais, ainda que diga que lê Stevens com força e gosta de fazer trabalho de campo nas nuvens. Esse outro Sr. Quintais, mais a sua arrogância de «autor», só pode ser mesmo o usurpador que pretendemos caçar. Cuidadinho com ele!
Passar bem, Sr. Quintais,

Luís Quintais

Ponto da situação

Casmurros,

Como já alguém insinuou que eu estaria in partibus para perpetrar as usurpações de que estamos todos a ser vítimas (e nem me refiro às insinuações malévolas sobre um affaire entre mim e a Sra. Antunes…), sinto-me na necessidade de manifestar a minha voz corpórea e fenomenal: eu, Gustavo Rubim, estou a topar-vos, cá do alto, e escusam de pensar que conseguirão escapar ao longo braço da minha ira vingadora! Ela abater-se-á, inexorável, sobre aqueles que confundem autoria com assinatura, assinatura com propriedade, traço com voz, enfim, a justiça com as maquinações do direito!
O Sr. Serra, admitindo que se trate deveras do Sr. Serra, enquadrou muito bem a questão e citou Kierkegaard. Por mim, aceitando o enquadramento, prefiro citar Nietzsche: «Quando não temos um bom pai é preciso inventar um». Alguém está interessado em transformar este clube, aliás decadente, num consultório de psicanálise. Não eu, devo dizer. E, se querem que vos diga, por mim sinto-me tão distante do projecto da invenção de um pai para isto, como de aceitar que passemos a chamar pai a algum de nós. É caso para dizer: vão chamar pai a outro! Até porque, em bom rigor, no princípio não está o pai nem o filho mas o suplemento. Que não é usurpação nem roubo, embora possa ser a assinatura enquanto efeito, diferição, errância de um nome sempre impróprio. Porque a questão é que não há roubo de nomes, apenas impropriedades em forma de nome. Toda esta questão está mal conceptualizada desde o início, e talvez ainda a possamos endireitar se a pensarmos em torno da noção nietzschiana da «invenção do pai», mas sem psicanálise pelo meio. Basta a corrosão da «verdade» assim implicada por arrasto da «invenção do nome».
Disse, e vou dormir.

Gustavo Rubim (que não aprecia brincadeiras com a sua assinatura)