31 dezembro 2005

Dossiê «A morte do autor», 2

Da Homenagem a Gauguin (publicação póstuma, 1919), de Victor Segalen, o último parágrafo do capítulo IV:

«Cette toile, je l’ai gardée. Le don même en serait injurieux, Gauguin mourut en la peignant, c’est un legs. Seule de tant d’autres, elle se signe de l’absence du nom.»

(Essai sur l’exotisme, Fata Morgana.)

Dossiê «A morte do autor», 1

De uma carta de Jack London para Sinclair Lewis (4 de Outubro de 1910):


«Os seus enredos chegaram na noite passada e escolhi de imediato nove (9) deles, pelos quais, em conformidade com a factura, lhe remeto junto um cheque de 52,50 dólares.
[…]
Não deixe de me mandar enredos de vez em quando, com os preços anexos, e por favor fixe aqueles que eu escolher, para não se dar o erro de um dia mais tarde você pegar neles para escrever obra sua.
Cheio de pressa,

Sinceramente,
Jack London»

(Cartas de Jack London, Antígona, tradução de Ana Barradas.)

29 dezembro 2005

o Brasil, a Austrália, o Amor e a tristeza

De vez em quando, muito de vez em quando, encontra-se a poesia. Como aqui:


1
Não esquecer de aumentar o preço!
2
Dominar a Vera sem falta!
3
Porque se pode fazer o possível para conquistar o país de que nós queremos
Para sempre que é
4
o Brasil, a Austrália, o Amor e a tristeza,
Queremos saber tudo sobre a voz e a claridade do futuro
Porque gostamos dele!
5
Dificuldades que nós temos em fazer os trabalhos com o aflito de corrector e correcção ao conflito de recomendação ao Leonceu, parvo à
6
dificuldade da aventura aos cinco amores de toalhas.
Se tivermos a coragem de completar as falas de papel com os outros terrores de amor
com a tristeza da Carla Rita amores.
7
Dandi é um cão chamado Carlos, porque o Carlos foi jornalista ao governo do Brasil, querendo aplicar ao fim da conta de mar cheio e salgado do sim.
8
Com quem nós queremos falar é impossível mas impossível de aturar a televisão e ao amor interno de par e ímpar de romance
Para fazer papel com jornal aumentado!

Vera


Tirei o impressionante poema desta sociedade. Note-se que a Vera tem 10 (dez) anos.
Feliz Ano Novo para todos os cavalheiros! (e especialmente para si, Groucho.)

Maderno, Santa Cecilia

28 dezembro 2005

lascia la spina, cogli la rosa

lascia la spina, cogli la rosa ainda não tinha acabado de tocar quando decidiu levantar-se da bancada. soergueu-se e os sensores, reagindo ao movimento, activaram as lâmpadas. uma luz azulada inundou o laboratório. conseguia agora distinguir claramente a porta que dava acesso à sala contígua, que permanecia às escuras. um painel de vidro, a todo o comprimento da parede, separava as duas salas. do lado oposto estavam as janelas que davam para o exterior. o mais extraordinário é que estas observações ficaram registadas sem que os acordes perdessem a menor definição nos parâmetros sensoriais. este era certamente um dos melhoramentos no novo protótipo. «Minsky tinha razão quando insistira na particularidade daquele algoritmo genético», pensou Cecilia, ao ver os registos daquele despertar prematuro, alguns dias mais tarde. tu vai cercando il tuo dolor: era possível até sobrepor no diagrama a linha melódica e a linha dos movimentos corporais. «boa ideia fazer a actividade do organismo activar o ficheiro da ária», pensou. o delicado equilíbrio entre presentificação e abstracção tinha sido atingido. ANIMA parecia cantar interiormente, a julgar pelos sinais do seu metabolismo cibernético.

27 dezembro 2005

bifaces

sujeito

- Quem fala?
- Que importa quem fala?
- Sim, fala quem fala.
- Quem fala?
- Eu?
- Ou eu?
- Tu, sim, tu.
- Quem?
- Quem fala?
- Não: quem tu?
- Eu.
- Ou tu?
- Eu, sim, eu.
- Quem?
- Quem fala?
- Não: quem eu?
- Eu tu?
- Eu eu?
- Quem fala?
- Que importa quem fala?
- Sim, que importa?
- Fala quem fala.
- Falo eu?
- Não, fala tu.

26 dezembro 2005

van Gogh, flor de amendoeira

repetição

Desce as escadas e
vai à porta buscar o pão.
Põe a água ao lume a ferver,
e depois a mesa.
Duas canecas, duas taças,
um copo, três colheres.
A caixa dos flocos ao lado
do jarro da água.
O dia recomeça.
Quando os filhos acordarem
já terá saído.
Na estrada repara
no nevoeiro.


J. Loss [tradução MP]

24 dezembro 2005

Phillips, A Humument, p. 131

peixe

Com a faca ainda na mão,
fixa o olhar no tabuleiro untado e pensa —
«Não ser tolhido pela proximidade
que sufoca a radiação da presença.
Dar da mágoa e do entusiasmo
apenas a medida exacta.
Ser capaz de comunicar-te
esse torvelinho. Mas não.»
Só um recolhimento repetido.
A cebola aloura na frigideira
uma dor literal no peito.
O goraz na tábua já recebeu os golpes:
um adiamento surdo corre na
mancha vermelha do tomate.
Ao picar a salsa uma onda
desmancha-lhe o gesto,
vigília sem repouso,
sal e um fio de azeite.
Um buraco na boca: nada.
O odor do pranto encosta a cabeça:
morde o lábio mudo. Mói.

J. Loss [tradução MP]

23 dezembro 2005

interactivo, 1























- O cérebro ilumina-se-lhe a espasmos.
- Sim, é um mistério.
- Sabemos talvez isto: se for interactivo, não se pode prever. Nem sequer como distribuição probabilística de respostas.
- Vem uma fala.
- E depois outra.
- Se as replicas assim, simulas.
- Fazes um mapa do acaso.
- Por outro lado, crias associações impossíveis de antecipar.
- Quase interactivas.
- Respostas a ti mesmo.
- Um remoinho no peito.

interactivo, 2






















- Escreve, por exemplo, «a carne inteligente».
- E verás a diferença.
- Sim, a dificuldade.
- A sede da alma como efeito electroquímico.
- Processa sinais, mas pensa?
- O que falta é apenas um algoritmo para o sentimento.
- Para a consciência da emoção.
- A voz pode ser automática. O movimento mesmo.
- Uma forma que responda aleatoriamente ao espectador.
- Ao coração expectante do espectador.

interactivo, 3






















- Talvez faça sentido.
- Sim, artificializar a inteligência.
- Trocar a minha posição com a tua.
- Imaginação moral no mais alto grau.
- O sorriso como interface.
- Tocar sem tocar: eu estava à espera da tua mensagem.
- Outro algoritmo para o movimento dos olhos.
- Também isso não se consegue prever.
- Variações na temperatura e na humidade da pele.
- Ages sobre a máquina e ela responde imediatamente.

interactivo, 4






















- É assim que defines interactivo?
- Talvez. Mas não está sempre em aberto?
- Por exemplo, um conjunto de instruções, não enquanto programa de sentido ou de interpretação.
- Antes um gerador de materialidade. Sim, isso.
- Ainda assim, como?
- Continua a ser um laboratório de mediação.
- Como a linguagem? Como a linguagem no corpo que a produz?
- Talvez isso, não sei.
- Choras? Sangras?
- A secreção é uma imagem da exteriorização.

interactivo, 5






















- O mundo dança-te nos olhos.
- Canta-me nos ouvidos.
- Diz-me então, é verdade?
- Se eu soubesse, não seria preciso este artifício.
- Não te modelarias a ti mesmo.
- O mesmo input para o mesmo output.
- Desnexar-me sem perecer.
- O desejo sem imposição, gota de água iluminada pelo sol.
- Um máquina sem destino político.
- Seguir, sem saber, o fio da incompletude.
- Amar o lance de dados.

interactivo, 6






















- A canção ressoa-te nos circuitos.
- Parece alojar-se no ventre.
- Sim, depois de fazer ricochete na garganta e nos pés.
- Talvez isso chegue também a ser automatizado.
- Poderemos então interagir.
- Dir-me-ás: determina o resultado. E eu direi: determina tu.
- E depois a conversa segue.
- Sem ninguém saber como.
- Uma certa forma de abanar a cabeça a cada compasso.
- Pura notação cibernética. O artifício da carne num fogo informático.
- Surpresa depois de surpresa.
- Milhares e milhares de gestos.

21 dezembro 2005

gota de água

não era só a tumefacção do ar

não era só a tumefacção do ar que lhe recortava o corpo cruzando devagar as lajes da praça. também a luz eléctrica da madrugada recortando as árvores intumescia o real que o engolia. parecia-lhe quase impossível avançar para dentro do mundo, tal era a sua tactilidade. tudo se desenhava à sua frente com jubilosa nitidez. a contiguidade com o espaço era tão forte que se tornava adstringente. o movimento das coisas reverberava na humidade fria do ar, ponto de fuga da alucinação anti-aderente que o emocionava. descrever era simular a radiação da alegria, era fazer de conta que havia para isso um substituto. algo que cingisse essa cisão.

19 dezembro 2005

História da loucura

Preso à lura onde o insecto lhe desenha a baba o corpo fóssil, o meu amigo atende o telefone e diz: não posso falar contigo, vou ser internado. Descrito bipolar, cederá ao drama que com ele se encena. O insecto tem a precisa teoria da mente, a que há-de fechar o corpo na cilada dos invisíveis classificadores.

18 dezembro 2005

onírico, 1



- Groucho, é você que está aí?
- …
- Responda, caramba!
- Sim, sou eu, sim senhor.
- Puxa! Que susto me pregou! O que faz aí às escuras, com as persianas corridas?
- O que queria o senhor que eu fizesse, senão fechar as cortinas e deixar-me estar?
- Até parece que morreu alguém!
- Ai se parece! Tantos dias de agitação e ironia, e agora nada. Vem um dia, vem outro, e nada. Semanas inteiras, e nada. Nada de nada.
- Que melancolia, meu Deus!
- Ninguém que me dirija a palavra! Nenhum recado na parede! Nenhuma mensagem! Ao menos uma mosca que zumbisse!
- Uma mosca que zumbisse?
- Um vento que soprasse!
- Um vento que soprasse?
- Um eco dos meus passos!
- Um eco dos meus passos?
- Dos meus, dos meus, já se vê. Pois se o senhor não põe cá os pés…
- Sabia lá!
- Sabia lá o quê?
- Sabia lá que o senhor ainda andava por aqui.

onírico, 2



- Nunca imaginei vê-lo em estado melancólico, Groucho!
- Olhe, nem eu, nem eu…
- Sempre pensei que…
- Sempre pensou o quê? Lá está o senhor!
- Sempre pensei que não estivesse cá ninguém.
- Pois esse é o seu problema.
- O meu problema?
- Sim, pensar que a criatura das suas falas desaparece assim, sem mais nem menos, no silêncio da noite.
- Sabe, tenho pensado nisso.
- Nisso?
- Sim, no silêncio da noite, na criatura das minhas falas.
- Quem diria!
- E sabe uma coisa?
- Como quer que saiba?
- Ainda esta noite, por exemplo. A criatura das minhas falas aparecia e falava comigo.
- E o que lhe dizia ela?
- Nada, ao princípio não dizia nada.

onírico, 3



- Nada?
- Nada. Aliás, era eu quem apanhava um susto.
- Um susto?
- Sim, chegava aqui e estava tudo às escuras. De repente, um estalido no soalho, e dava-me conta de uma silhueta ao fundo da sala, no cadeirão.
- E quem era?
- Era ela.
- Ela?
- A criatura das minhas falas.
- No escuro da sala…
- No cadeirão.
- E o que lhe dizia ela?
- Primeiro dizia: sim, sou eu, sim senhor.
- E depois?
- Depois conversava comigo. Fazia-me sentir que me esquecera dela.
- E esquecera?
- Talvez tivesse esquecido, mas eu não estava preparado.
- Preparado?
- Sim, dizia-lhe coisas sem nexo. Suspendia as falas a meio…

onírico, 4



- A meio?
- A mim, pelo menos, parecia-me a meio.
- Porquê?
- Porque era difícil continuar, sabe?
- Continuar?
- Sim, a continuação é uma dificuldade tremenda. Todas as criaturas o sabem, no silêncio da noite…
- Que melancolia, meu Deus!
- Agora acertou em cheio! Era isso mesmo!
- Era isso mesmo?
- Era essa a minha exclamação!
- E o que lhe respondia ela?
- Ela dizia que estava sozinha, Groucho!
- Sozinha?
- Sim. Que ninguém lhe falava! Que ninguém lhe escrevia! Nem vivalma assomava!
- Então, e depois?
- Eu disse-lhe que não era justo. Pois se eu nem fazia ideia de que ela lá estava!
- E qual foi a réplica?
- Disse-me que esse é que era o meu problema.
- Problema?
- Sim, pensar que ela desaparecia assim, sem mais nem menos, no silêncio da noite.

onírico, 5



- Bom, ao menos já passou!
- O quê?
- O sonho que teve!
- Mas não foi um sonho, Groucho!
- A visão… a aparição…
- Garanto-lhe que foi tão real como estarmos aqui agora.
- Tão real assim! também não acredito!
- Eu desapareça já, se não foi uma conversa completa! E sabe que mais?
- O quê?
- Acho que ela tinha razão.
- Razão?
- Às tantas disse: vem um dia, vem outro, e nada.
- E o que queria ela dizer com isso?
- É o que estou a tentar perceber.
- E que mais?
- Depois disse: ao menos um eco.
- Ao menos um eco?
- Sim, sem tirar, nem pôr. Até parecia que nem estávamos a falar.
- E estavam?
- Agora já nem sei bem. As coisas confundem-se.
- É você que está aí, Sr. Portela?
- …
- Se é você, diga qualquer coisa.
- Sim, sou eu, sim senhor.

diálogo offshore, 1


















- Sabe, Groucho, a desregulação e a mudança tecnológica abriram novos mercados.
- Desculpe-me, mas não concordo com essas palavras.
- Não concorda?
- Sim, não me ponha a economia na boca. Deixe-me ser eu a escolher as palavras.
- Nem pensar nisso. São elas que nos escolhem, como muito bem sabe.
- Isso é o que eu chamo um truque baixo, um golpe dramático.
- Também podemos começar por aí.
- Por aí?
- Sim, por aí. Pelo golpe, pelo truque. As suas palavras ainda servem melhor do que as minhas.
- Explique-se, explique-se!
- É difícil de entender. Mas comecemos por uma ilha, uma ilha qualquer.
- Uma ilha?
- Sim, um lugar onde o velho casario e as lojas tradicionais tenham dado lugar a arranha-céus de escritórios e parques de estacionamento. Onde os bancos internacionais e as empresas de contabilidade se aliem para minimizarem os impostos que as companhias multinacionais têm de pagar.
- Como assim?
- Por exemplo, transferindo os preços dos bens de forma a que baldes de plástico importados da República Checa para os Estados Unidos custem 972 dólares cada um, e lança-rockets exportados dos Estados Unidos para Israel custem 52 dólares cada.
- Interessante…
- Ou, no caso das que não são multinacionais, fazê-lo através de um agente intermediário no paraíso fiscal, que deposita parte dessa transferência de preço na conta offshore do vendedor ou do comprador. Um estratagema chamado “refacturação".
- E então?

diálogo offshore, 2
























- Algumas transacções seriam feitas com Estados africanos e asiáticos, por vezes através de uma entidade jurídica criada especialmente para o efeito por motivos fiscais. A origem do dinheiro pouco interessaria…
- Dinheiro sujo, imagino…
- Sujo não, Groucho, aí é que você se engana. Limpo! Mais limpo nem podia ser.
- Lá está você a dramatizar!
- Não raro fazia-se um pagamento, por serviços de consultadoria ou similares, a uma terceira parte, que aparentemente nada tinha a ver com a transacção.
- Corrupção, imagino…
- Imagine, imagine, que tudo isto requer muita imaginação. Dinheiro em fuga! Capital no estado gasoso!
- Gasoso?
- Volátil mesmo! Mas deixe-me continuar.
- Vejo que andou a ler... O senhor fazia melhor em descansar…
- Veja: o número de paraísos offshore subiu de 25, no início da década de 70, para 72, nos finais de 2004. Cerca de 11,5 biliões de dólares de activos estão actualmente em contas offshore isentas de impostos ou sujeitas à taxa mínima.
- Lá vêm os números. Não vejo onde quer chegar.
- Se aos dividendos desses valores fosse aplicado um imposto de 30%, seria gerado um rendimento de 255 mil milhões de dólares para o Projecto Millenium das Nações Unidas, cujo objectivo é duplicar a ajuda aos países pobres até 2010.
- Boa parte do dinheiro que flui para zonas offshore vem agora dos países de Leste. Estima-se que o dinheiro com origem na Rússia, por exemplo, tenha entrado nos bancos ocidentais ao ritmo de 20 a 30 mil milhões de dólares por ano desde 1989. Segundo o Instituto para a Informação e Democratização, em Moscovo, o fluxo total para o exterior de fundos ilícitos, ou com origem na corrupção, atingira em 2002 o valor estimado de 400 mil milhões de dólares, dos quais 300 mil milhões em zonas offshore.
- Pare lá um bocado com a prelecção, e deixe-me ir ao chá. É servido?

diálogo offshore, 3
















- Os micro-estados e as pequenas economias insulares constituem o meio ideal para o mundo semi-secreto das finanças offshore, uma vez que usam a sua autonomia para produzir legislação que minimiza os impostos e a actividade de regulação.
- E assim se ligam os mercados financeiros globais e o mundo dos movimentos furtivos de dinheiro. Na próxima aula, leiam…
- Vejo que começa a apanhar o vocabulário, Groucho. O diálogo tem essa vantagem: estimula a osmose.
- Até lhe digo mais: a ajuda aos países pobres não será eficaz se o problema da fuga de capitais e da evasão fiscal não forem atacados. Raymond Baker estima em cerca de 500 mil milhões de dólares o dinheiro sujo que flui dos países pobres para contas offshore dos bancos ocidentais, dos quais apenas 10 por cento seria dinheiro corrupto.
- Você surpreende-me, Groucho. Seis meses de mal-entendidos e agora tira-me as palavras da boca!
- Bom, não vou discutir isso. Por uma vez, resisto a essa sabotagem. Oiça: uma parte daquele dinheiro é reinvestido no país de origem sob a forma de investimento estrangeiro directo, muitas vezes com isenções fiscais e subsídios. Mas a maior parte do dinheiro que sai destina-se aos mercados financeiros e de propriedade das economias ocidentais. E agora chega!
- Chega?
- Sim, continue você a ler o guião!

diálogo offshore, 4
















- Não me diga que me deixa a falar sozinho?
- Mas não era isso que estava a fazer?
- Claro que não. Estava apenas a ilustrar.
- A ilustrar?
- Sim, a ilustrar os fluxos de capital.
- Quais fluxos?
- Olhe, por exemplo: os 78 mil milhões de dólares de orçamento da ajuda global anual são insignificantes quando comparados com o fluxo de transferências na direcção oposta. Ninguém sabe quanto dinheiro dos países pobres foi transferido para o Ocidente desde os anos 70. Talvez uns 5 biliões de dólares. Agora é a sua vez.
- Privados de investimento doméstico e de receitas de impostos para financiar os serviços públicos, muitos governos tornaram-se dependentes do investimento externo directo e de uma pesada dívida externa. Que tal?
- Vejo que começa a perceber a lógica disto: o mercado financeiro global encoraja o movimento do dinheiro sujo, mas nem o Banco Mundial, nem o Fundo Monetário Internacional tentaram quantificar a fuga de capitais e a evasão fiscal. Só a lavagem do dinheiro da droga e do terrorismo é que parece interessar.
- Mais de 50 por cento da riqueza em dinheiro e valores dos indivíduos mais ricos da América Latina está em instituições offshore. 30% do Produto Interno Bruto da África sub-sahariana na segunda metade da década de 90 foi para zonas offshore. Percentagem que é ainda maior no Norte de África e no Médio Oriente.
- Os padrões no comércio e no investimento internacionais revelam, pelo menos desde os tempos coloniais, que estes se organizaram de acordo com elaborados processos de evasão fiscal. Cerca de metade do comércio mundial passa por paraísos fiscais.
- Calma, que a próxima frase é minha: as companhias multinacionais que se valem de subsidiárias em zonas offshore conseguem enormes vantagens financeiras relativamente a companhias nacionais. Uma distorção do mercado que favorece as grandes empresas.

diálogo offshore, 5





























- Quer um chá?
- Já está servido?
- Não, mas a chaleira acabou de apitar.
- Não ouvi nada.
- Deve ter sido do barulho.
- Sim, também acho. Que espécie de guião era aquele?
- É uma coisa em que tenho andado a trabalhar.
- Ai tem?
- Tenho. Não se nota?
- Notar-se... nota-se…
- O que é que está a insinuar?
- Nada. E como é que se vai chamar essa peça?
- Não sei ainda. Estou indeciso.
- Deixe-me adivinhar: O fluxo?
- Não.
- Paraíso fiscal?
- Não.
- Vantagem comparativa?
- Não.
- Comércio livre?
- Não.
- Luta contra a pobreza?
- Não.
- Desisto!
- O chá está na chávena.
- Tal peça, tal título.
- Não percebeu...

13 dezembro 2005

Anotações do Dr. Palhinha: o caso «Filomena Mónica»



Autobiografia e BI; …comentar Freud sobre Goethe: «E, no entanto, é indubitável que semelhante biografia satisfará uma grande necessidade que existe em nós»; revolução (cf. etimologia) + Abel Barros Baptista vs. Ana Sá Lopes; citação: «Inicialmente, pensei em doutorar-me em Psicologia» p. 242; «Com a idade, a minha megalomania foi aumentando» p. 105; recordar versos de J.W.G. a Charlotte v. Stein: «Warum gabst du uns die tiefen Blicke»; género e jornalismo; sobre a revolução na autobiografia port.; MFM vs. Ruben A.; Bilhete de Identidade (2005) vs O Mundo à Minha Procura (1964-68); Ruben-escrita: «A profundidade megalítica do nosso recuado no tempo, o purismo sujo de uma ferrugem latina, neolatina, a contabilidade feita à base de um arado medieval…»; Ruben: + autobiografia, + documento, + escrita, + snob; revolução?!…

11 dezembro 2005

Jornalismo revolucionário

O «Mil Folhas» do Público trazia ontem um artigo — duas páginas assinadas pela jornalista Ana Sá Lopes — com o espantoso título: «O livro que revolucionou a autobiografia em Portugal». Dispus-me a ler, não porque interessado no livro em causa — Bilhete de Identidade, de Maria Filomena Mónica —, antes animado da esperança de ficar a saber alguma coisa a respeito do género revolucionado. Há autobiografia em Portugal, e em tradição assim tão continuada e corpus assim tão estável que possa ser «revolucionada»? Confesso que a minha inclinação literária conservadora ficou abaladita: se há qualquer coisa como uma «autobiografia portuguesa», não gostaria nada de a ver agitada, revoluta, virada do avesso… O primeiro parágrafo começava reiterando o título, e até dizia mais: Maria Filomena Mónica, que já tinha revolucionado o género biográfico com o livro sobre Eça, revoluciona agora o autobiográfico. Esperava-se então alguma descrição, ainda que breve, da autobiografia (admitindo que a revolução na biografia já transitou em julgado…) antes e em Portugal, até com menção de uma ou outra autobiografia mais significativa; e esperava-se outra descrição, supostamente mais demorada, do que faz deste um livro revolucionário. Pois não se encontra nada —absolutamente nada. Logo o segundo parágrafo enceta o que a jornalista fará até ao penúltimo: um resumo do livro, com uma citação aqui e ali, ou seja, uma biografia curta da autora. É uma amostra do livro. O penúltimo parágrafo declara que o «auto-retrato» de Maria Filomena Mónica («auto-retrato» e «autobiografia» são a mesma coisa? e calham bem a um livro que a própria autora incluiu, não sei se bem se mal, no género «memórias»?) é «bibliografia indispensável para a reconstituição de uma época», e assegura que «a polémica em curso na blogosfera e na imprensa sobre a ‘legitimidade’ da revelação de casos afectivos é, seguramente, uma questão menor» (querendo com isto decerto dizer que é menor a questão que ocupa a dita polémica…).
Nada mais: a jornalista faz uma afirmação extraordinária (e de cujas consequências nem parece aperceber-se) e dispensa-se de sequer tentar justificá-la. Qual a diferença entre isto e a publicidade? Ou será também este o artigo que revoluciona o «jornalismo cultural»?
Como não preferir os blogues? até aqueles que designam o livro como «história duma beta que por acaso se tornou intelectual»… Curioso, não? Os blogues é que deviam albergar a possibilidade de dizer qualquer coisa sem o mínimo protocolo de comprovação. Qualquer coisa, do insulto vulgar à proclamação absolutamente infundada. Os blogues — não os suplementos culturais de jornais ditos de referência. Estes, pelo contrário, deveriam esforçar-se por sugerir que não dizem qualquer coisa, que não permitem que os seus jornalistas imprimam nenhuma afirmação desguarnecida de esforço de comprovação, que o jornalismo que praticam não se confunde com propaganda, publicidade, favoritismo vulgar…
Se calhar, é exigir demasiado… quem, no seu bom senso, pode sequer tentar argumentar a favor de uma frase como «o livro que revolucionou a autobiografia em Portugal»? Não é mais simples escrevê-la? … mais simples, mais eficaz… mesmo suspeitando que talvez seja o mesmo que dizer, dum livro de poesia, que «revolucionou o soneto em Campo de Ourique»…

08 dezembro 2005

Valdemar Santos, sem título

os traços das guias separadoras

os traços das guias separadoras, a entrar e a sair do campo de visão, à esquerda. a linha contínua à direita. isso e os dois halos azulados, no tejadilho da ambulância que seguia cinquenta metros adiante. para memória implantada parecia-lhe sem falhas. mas ainda não tinha a certeza. algo do que vislumbrara do laboratório teria desencadeado aquela reminiscência. sentia os braços ao volante e, concentrado nos pontos de luz que, lá fora, marcavam o movimento da estrada, o invólucro do veículo era mera impressão periférica. por que não conseguia recordar-se bem da posição corporal? da superfície de contacto com o banco ou com os pedais? seria esse o sinal de uma existência anterior? o céu ficava gradualmente mais escuro. sim, não havia dúvida de que a simulação do tempo estava bem codificada. quem teria sido? contraiu os músculos da perna só para se sentir a sentir.

06 dezembro 2005

F

Sigo o corredor. Milhares de livros em estantes que se assemelham a jaulas. Como se os livros fossem animais feridos de um exotismo em que ninguém acredita. Ou talvez sejam feras que merecem adestramento, docilidade, interpretação. Floresta de símbolos! E em rigor assim é. Estaco, debruço-me sobre os animais supostamente adormecidos, e ali está sem que o procurasse, o primeiro em que reparo: o livro de um amigo morto, como se me indicasse "algo" ou tão-só - certamente - o vazio essencial de tudo. E tu, a meu lado, distrais, por instantes, ominosas certezas. Obrigado.

02 dezembro 2005

Meio-dia

Para o Gustavo Rubim

Como os símbolos, a verdade encontra o seu espelho,
revela o seu isómero, isto é, a simetria
que nela se esconde:

os dedos frios da descrença
iniciam o seu nocturno trabalho
logo após o meio-dia.

SMS

It'll rain cats and dogs in a minute, beware.
Não levaste chapéu e o céu vai ceder
sob um zoo completo. Beijos.