Dossiê «A morte do autor», 2
«Cette toile, je l’ai gardée. Le don même en serait injurieux, Gauguin mourut en la peignant, c’est un legs. Seule de tant d’autres, elle se signe de l’absence du nom.»
(Essai sur l’exotisme, Fata Morgana.)
«Outside of a dog, a book is a man's best friend; inside of a dog, it's too dark to read.» Groucho Marx
De vez em quando, muito de vez em quando, encontra-se a poesia. Como aqui:
lascia la spina, cogli la rosa ainda não tinha acabado de tocar quando decidiu levantar-se da bancada. soergueu-se e os sensores, reagindo ao movimento, activaram as lâmpadas. uma luz azulada inundou o laboratório. conseguia agora distinguir claramente a porta que dava acesso à sala contígua, que permanecia às escuras. um painel de vidro, a todo o comprimento da parede, separava as duas salas. do lado oposto estavam as janelas que davam para o exterior. o mais extraordinário é que estas observações ficaram registadas sem que os acordes perdessem a menor definição nos parâmetros sensoriais. este era certamente um dos melhoramentos no novo protótipo. «Minsky tinha razão quando insistira na particularidade daquele algoritmo genético», pensou Cecilia, ao ver os registos daquele despertar prematuro, alguns dias mais tarde. tu vai cercando il tuo dolor: era possível até sobrepor no diagrama a linha melódica e a linha dos movimentos corporais. «boa ideia fazer a actividade do organismo activar o ficheiro da ária», pensou. o delicado equilíbrio entre presentificação e abstracção tinha sido atingido. ANIMA parecia cantar interiormente, a julgar pelos sinais do seu metabolismo cibernético.
- Quem fala?
Desce as escadas e
Com a faca ainda na mão,
não era só a tumefacção do ar que lhe recortava o corpo cruzando devagar as lajes da praça. também a luz eléctrica da madrugada recortando as árvores intumescia o real que o engolia. parecia-lhe quase impossível avançar para dentro do mundo, tal era a sua tactilidade. tudo se desenhava à sua frente com jubilosa nitidez. a contiguidade com o espaço era tão forte que se tornava adstringente. o movimento das coisas reverberava na humidade fria do ar, ponto de fuga da alucinação anti-aderente que o emocionava. descrever era simular a radiação da alegria, era fazer de conta que havia para isso um substituto. algo que cingisse essa cisão.
Preso à lura onde o insecto lhe desenha a baba o corpo fóssil, o meu amigo atende o telefone e diz: não posso falar contigo, vou ser internado. Descrito bipolar, cederá ao drama que com ele se encena. O insecto tem a precisa teoria da mente, a que há-de fechar o corpo na cilada dos invisíveis classificadores.
os traços das guias separadoras, a entrar e a sair do campo de visão, à esquerda. a linha contínua à direita. isso e os dois halos azulados, no tejadilho da ambulância que seguia cinquenta metros adiante. para memória implantada parecia-lhe sem falhas. mas ainda não tinha a certeza. algo do que vislumbrara do laboratório teria desencadeado aquela reminiscência. sentia os braços ao volante e, concentrado nos pontos de luz que, lá fora, marcavam o movimento da estrada, o invólucro do veículo era mera impressão periférica. por que não conseguia recordar-se bem da posição corporal? da superfície de contacto com o banco ou com os pedais? seria esse o sinal de uma existência anterior? o céu ficava gradualmente mais escuro. sim, não havia dúvida de que a simulação do tempo estava bem codificada. quem teria sido? contraiu os músculos da perna só para se sentir a sentir.
Sigo o corredor. Milhares de livros em estantes que se assemelham a jaulas. Como se os livros fossem animais feridos de um exotismo em que ninguém acredita. Ou talvez sejam feras que merecem adestramento, docilidade, interpretação. Floresta de símbolos! E em rigor assim é. Estaco, debruço-me sobre os animais supostamente adormecidos, e ali está sem que o procurasse, o primeiro em que reparo: o livro de um amigo morto, como se me indicasse "algo" ou tão-só - certamente - o vazio essencial de tudo. E tu, a meu lado, distrais, por instantes, ominosas certezas. Obrigado.