30 novembro 2005

Feriado

— Amanhã, se calhar, escusa de vir, Groucho. É feriado, ninguém deve pôr cá os pés…
— Por ser feriado?! Boa piada.
— Não seja impertinente, Groucho, as pessoas lá têm as suas vidas.
— Decerto, longe de mim julgar quem quer que seja. São vidas, pois, vidas…
— Nem mais. Fique em casa a ver televisão. Amanhã é o dia escolhido pelas televisões para porem na rua os estagiários a perguntar às pessoas, sobretudo às novas, o que aconteceu no 1º de Dezembro para que seja feriado…
— E depois riem-se com o disparate das respostas.
— Isso mesmo. Costuma ver, é?
— Já vi algumas vezes, neste e noutros feriados. Acho deplorável. O mais curioso é suporem eles que a obrigação de conhecer a razão de ser do feriado é, por assim dizer, natural, ou inexorável, inquestionável, em consequência motivo de profunda vergonha em caso de ignorância. Estranho, não lhe parece? em quem trabalha com a língua e não sente nenhuma obrigação de a tratar com correcção e desvelo.
— Correcção e desvelo! Caramba… mas é isso, sim. Devíamos contratar um jornalista mais audaz para entrar nas televisões todas e perguntar a quem encontrasse coisas como «o ano da morte de Rubem Braga», o «ano de nascimento de Sá de Miranda», «o dia em que eu nasci morra ou pereça», e por aí fora. Podia ser que pensassem duas vezes antes de assumirem tranquilamente que certas coisas não se podem ignorar sem vergonha, as coisas nossas, as nacionais, as da pátria...
— Ah, já o vejo mais atinado! Sabe que tem sido esse um dos tópicos debatidos nesta campanha eleitoral…
— A das presidenciais?! A sério? Não fazia ideia…

28 novembro 2005

Fantasma casado

Às vezes no caminhar da noite vejo o meu fantasma — é um destes fantasmas totalmente convencidos do seu mistério. Aborreço-me quando pretende falar da minha vida. É tão fantasma que me deixa debruçado à procura da sua mulher. O meu fantasma é casado.

Ruben A., Caranguejo, 1954.

27 novembro 2005

The World



Dubai, a 4 kilómetros das praias de Jumeirah,
entre Burj Al Arab e Port Rashid.

26 novembro 2005

Póstumos, 10

Isto pelo menos é verdade, não é simbólico:

the elements of disbelief are
very strong in the morning

Frank O'Hara

25 novembro 2005

Póstumos, 9

Aires não tinha aquele triste pecado dos opiniáticos; não lhe importava ser ou não aceito. Não é a primeira vez que o digo, mas provavelmente é a última. Em verdade, a mãe dos gémeos não quis outra explicação. Nem por isso a discórdia morreria entre eles, que apenas trocavam de armas para continuar o mesmo duelo. Ouvindo esta conclusão, Aires fez um gesto afirmativo, e chamou a atenção de Natividade para a cor do céu, que era a mesma, antes e depois da chuva. Supondo que havia nisto algo simbólico, ela entrou a procurá-lo, e o mesmo farias tu, leitor, se lá estivesses; mas não havia nada.

Machado de Assis, Esaú e Jacó, 1904 (quase no fim).

Póstumos, 8

— Ora, Groucho, é pedir muito? que faça alguma coisa para atenuar senão acabar com essas quizílias entre eles?
— Discrepâncias, meu caro senhor, prefiro discrepâncias. É menos azedo.
— Não me lixe, Groucho, passam o tempo a embirrar um com o outro…
— Será, mas não vou interferir nos assuntos da menina Clara, nem do sr. Rubim. Deixe-os… deixemo-los. Quem sabe o que aquilo significa… e se for amor?
— Não diga isso muitas vezes, Groucho, que ainda acaba num daqueles programas de conversa da Sic Mulher.

(Riem-se ambos com gosto pela primeira vez em muito tempo.)

—… fora de brincadeiras: arrisco que seja mais rivalidade fraternal, briga de irmãos…
— Seja o que for, incomoda, Groucho. Aqui, a bem dizer, já só se fala do que se passa… aqui. Se ainda em cima houver embirrações, ou conflitos, ou discrepâncias, qual o interesse de cá vir?
— A quem o pergunta! Nenhum, claro. Mas isso repito eu aos senhores há meses: vão lá fora, saiam, ou abram a janela, olhem a vida, abram-se à vida como ela é, falem de assuntos de actualidade, larguem o mofo e sacudam o cinismo…
— Obrigado pelo conselho. Alguma sugestão prática?
— Nem hesito: dediquem-se às eleições presidenciais! Não falem de nenhum outro assunto, analisem, confrontem, debatam as ideias dos vários candidatos…
— Ainda o colete e as duas gravatas?

(Riem-se ambos com gosto pela segunda vez em muito tempo.)

Póstumos, 7

Epitáfios? Eu? Mas o sr. Rubim desaprendeu a ler? Não insisti que pensava nos candidatos em particular, queria dizer, este, aquele, o outro, aqueloutro ainda? Não lhes pus os nomes? Não sei que estão vivos? O sr. Rubim, às vezes, parece que quer matar os significados no útero, abortar a semântica na véspera do parto, fazer uma gravata no pescoço do sentido antes que ele diga ai nem ui!

Póstumos, 6

Não há significados. Pura e simplesmente. Trata-se de um haiku têxtil: uma gravata, um colete, uma gravata. Tronco sem cabeça nem pernas (muito diferente de um cadáver, ainda que esquisito). Mas tronco vazio, tronco suposto, tronco suspenso. A menina Clara vê epitáfios por todo o lado e extrapola que eu também os veja. A arte, porém, é não antecipar, antes de não reconstituir. Enfim, o candidato enquanto candidato. A vir. Ou não.

Medo

And in her fear she sought cracked pleasures.
Bauhaus

24 novembro 2005

Póstumos, 5

Do Lat.: postumus, a, um: que está na extremidade, último, derradeiro; que vem no fim; nascido por último; nascido depois da morte do pai.

Póstumos, 4

Corro a esclarecer (antes que o sr. Rubim dê conta) que onde digo que todos os candidatos são póstumos não me refiro aos candidatos em geral. Não, por amor de Deus, refiro-me muito particularmente aos candidatos Soares, Cavaco, Alegre, Jerónimo, Louçã... ou referir-me-ia caso os coletes fossem dois em vez de um.

Póstumos, 3

Confirmo, ou seja, esclareço que também eu levei com a resposta do colete e das duas gravatas. Mais um colete, e o significado seria cristalino: todos os candidatos são póstumos. Assim é obscuro. Por outro lado, apresso-me a declarar (antes que o sr. Rubim o faça) que todos os significados são póstumos.

Póstumos, 2

Um


e












... e agora...? (Simbólico? Preto-e-branco versus colorido? Um contra dois? Dois contra um? Dois colarinhos um presidente?)

Póstumos, 1

— …
— Não, nada a assinalar, lamento. Salvo os telefonemas, claro…
— Que telefonemas, Groucho?
— Ah… não sabe? Ninguém o informou disso?
— Que telefonemas, Groucho?
— Várias pessoas têm telefonado a perguntar pelo seu candidato presidencial, querem saber qual é… em que campanha trabalha, quero dizer, ou antes, querem elas dizer, isto é, saber, perguntam, telefonam a perguntar isso, por suporem, acho, não ser outra a razão do seu absentismo, que aliás ignoro como se tornou público, quero dizer, que se tornou público de modo que aliás ignoro, sendo coisa só daqui, destas quatro paredes, quer dizer…
— Bolas, Groucho, que gaguice… não percebi nada, mas enfim, adiante. E que resposta dá a essas pessoas, se existem, ou melhor, se telefonam, quero dizer, admitindo que dá alguma resposta…
— Limito-me a dizer que nada sei, salvo que recentemente o senhor me mandou comprar um colete e…
— Um colete!?
— Sim, um colete e duas gravatas.
— Um colete e duas gravatas?! Que diabo, Groucho, que raio de ideia havia de lhe passar pela cabeça…
— Não é óptima?
— Excelente, reconheço. Mas quem vai ligar isso aos candidatos, quero dizer, às eleições, ou melhor, às campanhas?
— Não interessa! O efeito, o efeito é que vale… e havia de ver o efeito, quero dizer, ouvir, é pelo telefone… o efeito intriga, inquieta… havia de ver, isto é, de ouvir…
— Estou a ver, sim, um colete e duas gravatas…

Sorry (segunda versão)

You don’t have any new mail!
Esperamos por uma revelação
que se não anuncia.

Enquanto isso, um pássaro
– rútilo de fogo –
sitia o azul, grita em terras distantes.

Sorry (primeira versão)

You don’t have any new mail!
Esperamos por uma revelação
que se não anuncia.

Enquanto isso, um pássaro
– esplêndido, rutilante –
cerca o azul, grita em terras distantes.

Diário de (e)leitora



Nov., 24

Leio no Público a entrevista de Manuel Alegre. Demoro numa passagem. Alegre diz que Cavaco, sendo eleito, vai administrar o governo a partir das reuniões em Belém com o PM, à quinta-feira. O ou a jornalista pergunta-lhe se acha negativo (estranho a pergunta). Ele responde que não (estranho muito mais!), mas que o mal é que “a tónica” cairá nas finanças e na economia (e o mal é só esse?).

(Mais tarde.)
Conversa inútil com o Sr. Rubim. Pergunto-lhe o que acha da minha estranheza e ele aconselha-me a esperar pela hermenêutica da entrevista de Alegre na próxima crónica de Eduardo Prado Coelho. Ou a consultar o Groucho (!!!). Que se terá passado por aqui enquanto andei afastada?

22 novembro 2005

Pollock, a chave

dali não se via quase nada

dali não se via quase nada. estava escuro. apenas alguns raios de luz traçavam o contorno rectangular da porta. os objectos que enchiam o laboratório mal se podiam adivinhar. rodando a cabeça para a esquerda, conseguia seguir a aresta da bancada. um risco cinzento prolongava-se até se intersectar com a linha definida pela ponta dos pés. rodando a cabeça para o lado direito, e para trás, começava a localizar o lugar da janela na parede. estavam fechadas as portadas, mas a caixa negra em que dera por si ia agora ganhando sombras diferenciadas. as células dos olhos funcionavam perfeitamente, um pensamento suficientemente persistente para ficar registado na estação de trabalho.

Spam, 2














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21 novembro 2005

Mil e dez

― Como se sente, Groucho?
― Como me sinto como?
― Como se sente chegado aqui?
― Aqui onde?
― Ao mil e dez.
― Ao mil e dez?
― Sim, este é o mil e dez.
― Este é o mil e dez?
― É, este é o mil e dez.
― Pois, então deve ser por este ser o mil e dez que eu me sinto um bocado cansado.
― É natural, mil e dez são muitos.
― E o senhor, como se sente?
― Mais melancólico do que eufórico.
― Não será antes nostálgico?
― Nostálgico?
― Sim, ainda há tão pouco tempo éramos novos e agora já vamos no mil e dez.
― Nós nunca fomos novos, Groucho.
― Nunca fomos novos?
― Não, nós apenas chegámos tarde.
― Mas estávamos no princípio da história.
― Nem tudo é história, Groucho.
― Estávamos no início da viagem.
― Desconfio que nunca saímos do mesmo sítio.
― Foram pelo menos alguns passos.
― Um passo em frente, dois atrás.
― Não admira que eu me sinta cansado…
― Acho que trouxemos sempre a morte nos olhos.
― Vá lá, deixe-se de pessimismos! Veja a questão por outro prisma!
― Outro, qual?
― O da atmosfera.
― Atmosfera?
― Sim, o problema está na atmosfera do mil e dez.
― E que atmosfera é essa?
― Simples: a atmosfera é límpida, as piadas também, mas apesar de ser divertido já não tem a graça que tinha dantes.
― Hmmm… Não sei porquê, mas isso cheira-me a citação…

19 novembro 2005

Isto dava uma poética

«É preciso inventar? Ou contar a verdade? Só o que invento me comove; só a verdade te emociona.»

David Mourão-Ferreira, “Nem Tudo É História”, Os Amantes e Outros Contos

Isto também dava uma poética

«Odeio quem não for fiel ao que é secreto.»

Paulo, o Silenciário (Séc. VI)

Tradução de David Mourão-Ferreira, Vozes da Poesia Europeia (Colóquio-Letras, nº 163)

17 novembro 2005

Schwitters, cinzento e amarelo

não estava à espera disso

não estava à espera disso. uma dobra e depois outra. e outra. e ainda assim nada. nada deste lado. nada desse lado. não era uma curva que se pudesse seguir. ou uma linha ensimesmada. o rasgo que se abria mal se notava. seria uma ilusão óptica. um sombreado que escurecia ligeiramente a superfície. entre o plano de cá e o plano de lá, uma sutura pedia para ser distinguida. e produzia o olhar com que era percorrida. circunvolução que fagocitava o real, pulsava. os sensores davam-lhe a densidade do ar. estava quase pronto. os terminais nervosos retraíam-se a cada toque. quem diria?

Epílogo para qualquer prefácio

Por Joseph de Maistre, prefaciando a magnífica Viagem à Roda do meu Quarto (1795), do seu irmão Xavier:

Poderíamos ainda acrescentar uma infinidade de coisas, todas da maior importância para o progresso das ciências; mas suprimimo-las porque somos de parecer (salvo melhor opinião) que um prefácio deve ser sempre um pouco mais curto do que o livro.

(a tradução é de Célia Henriques)

16 novembro 2005

Tinguely, triciclo

Soneto 29

Quando, perante os homens e a Fortuna,
Chorar o mal da minha condição,
Num pranto alto que o céu surdo importuna
Com meu destino e minha maldição,
E me quiser mais cheio de esperança,
Como este trajar e amigos possuir,
Daquele a arte, doutro a abastança,
Mais tenho o que menos posso fruir;
No desprezo que a mim voto, todavia,
Penso no vosso, e neste estado meu,
Como na alvorada ergue a cotovia
Da terra triste o canto em hino ao céu.
Pois é tão rico o vosso amor lembrado
Que nem p’lo dos reis troco o meu estado.

William Shakespeare (tradução MP)

15 novembro 2005

Discrepante

― …não, não veio, Sr. Baptista, mas ligou-me e percebi tudo pela voz.
― Pela voz? O que é que tinha a voz?
― O tom, o tom… era mesmo de pessoa, como direi, estremunhada, percebe?
― Estremunhada, a estas horas?!
― Parece impossível, não é? Ainda por cima, tendo estado aqui tão cedo.
― E o Groucho não lhe perguntou por que era esse…
― …esse estremenho?
― Não é estremenho, Groucho! “Estremenho” é um adjectivo e, com certeza, o Sr. Rubim não estava confinante ou fronteiriço. Você também está a dormir ou quê?
― Não estrondeje, Sr. Baptista. Com a gramática certa ou errada, o facto é que o Sr. Rubim, pela voz, estava nitidamente na raia do sono.
― Que diabo, a dormir às quatro e meia da tarde?... E disse que passava por aí, ou não?
― Escusou-se a dar garantias, posto que eu lhe falasse do seu interesse em encontrar-se com ele. Mas também não afirmou que não viesse ainda.
― Talvez vá, mas a hora a que eu já não possa ir. Andamos desencontrados.
― Eu diria discrepantes.
― Ó homem, você hoje parece que engoliu o dicionário de sinónimos!
― Não é razão para espadilhar, Sr. Baptista.
― Arre! Com licença! (E desliga.)
― Detesto quando me pedem anuência e o pedido é supervacâneo. Sempre, sempre esta obstinação das pessoas em não significarem o que dizem. (Momentaneamente absorto.) Outra vez esta coisa… pareceu-me ter ouvido uma citação.

Errata disfórica posto colorida

Aqui abaixo, onde se lê Acusmático, 2 e Acusmático, 3 1/2 deve ler-se Cocassos e faceciosos, 2 e 3, respectivamente.

Acusmático, 3 1/2

— Deixa lá Pascal dizer que o homem...
— ... é um caniço...
— ... pensante...
— ... é, isso sim, uma errata...
— ...pensante!

Acusmático, 3

— Groucho, o Sr. Rubim já chegou?
— O que é chegar? E chegar de onde? Quando se pode dizer, ao menos com tranquilidade, que alguém chegou?
— Que mimoso!... Diga-lhe, quando ele chegar...
— E se chegar!
— Pois, se chegar, diga-lhe que a errata que ele procura é pensante...
— Pensante?! Que raio é isso?
— Ele vai perceber.
— Ora, o que é perceber? E perceber o quê? Quando se pode dizer, ao menos com tranquilidade, que alguém percebeu?

Acusmático, 2

—A errata irritante...
—Hmmm, irritante... a errata não é sempre irritante?
— Não, nem sempre, ou sempre: mas não é isso...
— A errata redundante?
— A errata aberrante?
— A errata aglutinante?
— Que irritante, carago!

A errata irritante (I)

― Olá, Groucho.
― Bom dia. Seja bem aparecido!
― Obrigado. (Saca do jornal da véspera.) Reparou nisto?
― Se reparei… Mas, então…
― Não reparou, já entendi. Ora oiça:

PS 1 – Numa crónica anterior referi Maria João Guardão como a “mais inteligente e informada jornalista cultural”. Estas fórmulas acabam por ser injustas e reconheço o meu erro de escrita: de Isabel Coutinho a Kattleen Gomes, de Vanessa Rato a Joana Gorjão Henriques, de Ana Marques Gastão a Maria Augusta Silva, de Anabela Mota Ribeiro a Rita Ferro Rodrigues (e são apenas alguns nomes), existem excelentes jornalistas culturais na nossa imprensa. Acho apenas que a Maria João não tem tido suficientes oportunidades para desenvolver o seu trabalho ― e daí a hipérbole.

― Isso parece escrito pelo Sr. Prado Coelho.
― E é mesmo! Já viu o disparate da errata? Primeiro, elogiou transparentemente a tal Maria João e depois vem dizer que, afinal, é chato tê-la elogiado porque há uma série de outras que têm tanta razão como ela para ser elogiadas e que, portanto, não se deve elogiar uma sem elogiar as outras!
― Bem…

A errata irritante (II)

― Bem o quê?! O Groucho acha bem que se considere errado destacar uma pessoa acima das outras, avaliar uma profissional como a melhor do seu ramo, dizer espontaneamente quem nos impressiona mais pela qualidade do seu trabalho? E que o erro está na injustiça que se faz a quem não merece o mesmo destaque, a mesma avaliação ou a mesma admiração? Isto faz algum sentido?
― Mas…
― É que nem mas nem meio mas! Dá vontade de mandar dizer ao Sr. Prado Coelho que, ao contrário do que ele julga, a Duras não é a melhor escritora francesa, a Lispector não é a melhor escritora brasileira, o Rui Nunes não tem ponta por onde se pegue, o Manoel de Oliveira é um cineasta medíocre, a Llansol nunca foi o génio que ele andou para aí a apregoar, o Cintra é um canastrão e, enfim, que o erro está na mania que ele tem de se enganar a torto e a direito sempre que se julga no direito de vir dizer ao povo quem é que o povo deve admirar! E que o erro não se corrige com aquela distribuição de excelências urbi et orbi como se fosse o Presidente a dar comendas no 10 de Junho! Então a Joana Gorjão Henriques e a Rita Ferro Rodrigues passam a ser excelentes só porque o Sr. Prado Coelho vem agora garantir que o são? Valha-nos Deus!
― Tanta exclamação, Sr. Rubim! Acalme-se. Eu acho que não percebeu o que está dito no post-scriptum, sabe?
― Não percebi?!

A errata irritante (III)

― Não, receio bem que não tenha percebido. O que o emérito cronista diz é que vem reconhecer o seu “erro de escrita”, de escrita, note bem. Esse reconhecimento, além de denotar louvável humildade em quem já escreve há tantos anos, é no essencial justo. De facto, não está bem escrito: as qualidades superiores de uma jornalista cultural não são decerto as da quantidade de inteligência e de informação que ela possa revelar. Isso são atributos gerais, que até a um técnico de informática se podem aplicar. Portanto, se a dita senhora não exibe outras virtudes, não tem por que ser superior às outras e a fórmula torna-se efectivamente errada e injusta.
― Hmmm…
― Além do mais, ao reconhecimento do erro acrescenta-se logo a felicidade de poder reproduzi-lo sem limites. O senhor nem notou, na pressa da sua indignação, que a forma da enumeração de excelentes jornalistas é ou, pelo menos, contém outro erro de escrita.
― A forma?

A errata irritante (IV)

― A forma, claro. Então, se o cronista escreve sempre “de” X “a” Y, das duas uma: ou bastava a primeira menção de nomes e Isabel Coutinho e Kattleen Gomes (e não estou seguro de que o nome desta última esteja escrito sem erro) passavam a representar os limites dentro dos quais cabiam todas as outras que, por isso mesmo, já não careciam de menção específica ou, caso se trate de mencionar um conjunto não exaustivo de marcos de referência, dispensava-se a redundância daquele parêntesis preventivo para o facto de serem “apenas alguns nomes”, por isso já ser evidente na própria forma de enumerar.
― Hmmm…
― Reconhecido o erro, pode-se errar à vontade. A prova cabal encontra-se naquela frase derradeira que, para dizer o mínimo, não faz qualquer sentido. Isto é, escapar-nos-á até ao infinito como é que, pelo facto de se achar que alguém “não tem tido suficientes oportunidades para desenvolver o seu trabalho”, se escreve de seguida uma hipérbole que converte essa desfavorecida na “mais inteligente e informada jornalista cultural”. O nosso cronista remata com “e daí a hipérbole”, já não por mero erro, mas para celebrar, em clima de festa, a apoteose do erro, o triunfo do reconhecimento do erro como fundamento inabalável para o prazer de errar mesmo quando se simula a correcção do erro. Surpreende-me que o senhor não se desse conta desta autêntica poética inscrita na brevidade de um post-scriptum.

A errata irritante (V)

― Oh Groucho, não me venha com surpresas! O senhor sabe perfeitamente que está apenas a esfolar o que eu já tinha morto.
― E o senhor fala como se eu fosse o seu alter ego, quando já percebeu que as nossas duas leituras do excerto são perfeitamente incompatíveis. Aliás, chamar “leitura” ao que o senhor fez é um enormíssimo favor. Ou terei de ser eu a explicar-lhe que a indignação nunca produz qualquer leitura?
― Mas não é indignação coisa nenhuma! Irritou-me. Aquela errata irritou-me, não me posso irritar?
― Concedo-lhe esse ponto. Mas… a errata irritante… a errata irritante… por acaso, não haverá aí uma citação?

14 novembro 2005

Acusmático

— O Saramago diz que nunca fez um livro mau…
— O Lobo Antunes escreveu muitos aerogramas de amor.
— Perdão, um livro de que se diga «é mau». Diferente…
— O Prado Coelho encontra muitos intelectuais e artistas ao almoço…
— Aerogramas são cartas? Donde apareceu esse nome?
— E fotógrafos, não esquecer os fotógrafos.
— Que diferente? Não diz que não é legítimo que se diga? logo, se não é legítimo, diz que não fez… ou não?
— Os fotógrafos não são intelectuais?
— Subtilezas parvas, realmente.
— Artistas, os aerogramas são artistas.
— Ao almoço? E ao jantar?
— Queres dizer, os fotógrafos, os fotógrafos são artistas.
— Subtilezas parvas, realmente.

13 novembro 2005

Alface, 1




















- Boas!
- Ora viva, Groucho!
- Mais animado hoje?
- Animado?
- Quer dizer, com mais ânimo para enfrentar a adversidade…
- A adversidade?
- Vejo que já lhe passou a angústia.
- Sim, pode dizer-se que sim. Mas deixe-me perguntar-lhe: já leu o Alface?
- Bom, esse artigo não pode estar certo. E quanto a leituras vegetais, fico-me pelas folhas de chá. E de couve — se contarmos o Casmurro, claro.
- Está-me a baralhar.
- Não me admira. Não lhe parece que o verbo era comer?
- Que verbo?
- O verbo que regia a asterácea hortense!
- Groucho, por favor! Voltemos atrás.
- Mas se não fazemos outra coisa!
- O Sr. faz-me tonturas.

Alface, 2




















- Leu ou não leu?
- O quê?
- O Alface.
- A alface lê-se?
- Não é a, é o, Groucho.
- O Groucho?
- Não, Groucho, o Alface!
- E a Alface deixa-se ler?
- Ai se se deixa!
- E como é que se lê a Alface?
- Como é que há-de ser?
- Não sei… com a Pepino?… com a Tomate?… com o Cebola?…
- Se vamos por aí… olhe, lê-se com os olhos!
- Os olhos também comem, é bem verdade!
- Não é nada disso, Groucho. Alface é um escritor.
- Ao menos faça a concordância, Sr. Portela.

Alface, 3




















- A gramática tem sido respeitada até agora e já lá vão quase mil posts.
- Esse é que é o problema, sabe?
- O problema?
- Sim, o respeitinho a formas obsoletas.
- Então é essa a sua definição de gramática?
- Não sei se é, ou se não é. O que eu digo é: a gramática inventa-se!
- Não esperava ouvir isso da sua boca. O que dirão os outros retóricos do clube?
- Caguei.
- Cagou!? Um mal nunca vem só: vai-se a gramática e a civilidade no mesmo pontapé.
- Foi só uma força de expressão.
- Não sei que força pode haver na cagadela.
- Não era disso que eu estava a falar. O Sr. está sempre a desviar a conversa. Falar consigo é um combate perdido.
- Que combate?
- Sócrates e Diotima lutavam melhor.
- Mas era um diálogo platónico!
- Posso continuar ou não?
- Então eu é que decido isso? Se quer falar da alface, fale da alface!

Alface, 4




















- Avó Não Pise o Cocó.
- Acho bem!
- Um Pai Porreiro Ganha Muito Dinheiro.
- Ai ganha?
- Uma Mãe Porreira é Prá Vida Inteira.
- O Sr. lá saberá!
- Filhos Assim Dão Cabo de Mim.
- Até as crianças não lhe dão sossego, não é?
- A Prima Fica Por Cima.
- Sobre isso já não digo nada.
- Groucho, então não viu que era tudo em itálico?
- Bom, se começa a falar itálico… digo-lhe que nunca passei da iniciação.
- As Noites Brancas do Papa Negro.
- Diga-me que não está a falar itálico, por favor…
- Beijinhos.
- Beijinhos?
- Cuidado com os rapazes.
- Quais rapazes?
- O Fim das Bichas.
- Perdi a ponta. Baralhou-me, admito!
- Groucho, são os títulos do Alface!
- O quê? Vegetal e aristocrata?
- Já percebeu com certeza. Só não vê quem não quer.
- O quê?
- Cá Vai Lisboa.
- Ainda?
- E faltam Os Lusíadas.
- Os Lusíadas também?
- Sim, foi aí que tudo começou. Acho que quis registá-lo na Sociedade de Autores.
- Quem?
- O Alface. E parece que já tinham publicado qualquer coisa com esse nome.
- Azar!

Alface, 5





















- Como vê, a lista é extensa.
- Alface para todos os gostos…
- Deixe que lhe dê uma ideia do labor alfácico: «Para baratinar o minguado decidi também cerrar taipais mantendo uma frincha alerta só para apreciar o trombil do incontinente posto perante a ferrada plateia.» (Cá Vai Lisboa, p. 43) Topa a sarcástica facúndia, Groucho?
- Não topo nada, se quer que lhe diga. Repolhuda, mais do que alfacenta.
- Então repare bem nesta amostra: «Com desabrida berraria reabriu Delfim as pálpebras no momento em que uma falange descarnada estava prestes a vazar-lhe o globo. Num ápice deu mecha às solas. Nem tarde nem cedo. Um sopapo no longevo acusador e ala, ele aí vai com uma perna às costas.» (Cá Vai Lisboa, p. 93)
- Qual o motivo do entusiasmo?
- «Olhou estoirado em volta. A pouca e pálida luz da manhã esgueirava-se por clarabóia anoréxica.» (Cá Vai Lisboa, p. 115)
- Clarabóia anoréxica?
- «Pilar Boaventura e Delfim Sardinha nem deram por nada, de engalfinhados que estavam no necrotério, ao invés do doutor Justino que escamado atirou os aparelhos ao tecto quando os “arenques” por autopsiar começaram com a tremedeira a cair despedidos das prateleiras.» (Cá Vai Lisboa, p. 162)
- Poupe-me, Sr. Portela!
- «O rabo cetáceo tornava-se imensa beterraba roxa e a excitação da zurzida em breve se liquefaz num orgasmo-monção que encharcou a colcha azul-bebé.» (Cá Vai Lisboa, p. 173)
- E então? Frases respigam-se em qualquer lado.
- Não são só as frases que amalucam, Groucho. O enredo também é paródia satírica do mais hilariante. Veja lá: um despique entre a Academia Musical 25 do Corrente e o clube gay Rosa Tatuada para representarem Alfama nas marchas de Lisboa. Política local, filme policial, batalhas épicas, priapismo, ninfismo. Uma caricatura pegada.
- Uma salada de alface…
- Do Alface, Groucho, do Alface.
- Ou isso…

Alface, 6




















- Concorda que o Alface estralhaça a macacada toda…
- A macacada?
- Sim, personagem, narrador, fala, pensamento, enredo. Bate com as frases nas paredes antes de as deitar ao papel.
- E o que é que pode resultar daí? O quê?
- A deformação do romance.
- Ah bom! Pensei que fosse outra coisa…
- Veja, por exemplo, esta invocação, a páginas 155: «Prestar-se-ia lindamente esta ocasião a que as palavras nos faltassem.»
- O que é que tem?
- O gajo arreia na musa, Groucho, é o que tem. É violência poética pura!
- Escapa-me essa sua preferência alfacinha.
- Ora leia só mais esta:

«Enquanto o destino de Delfim Sardinha endrominava aracnideamente as linhas com que o historiador se coseria (ou seria cozido), António Leão inclinava-se à farmácia do Firmino a comprar um frasquinho de lágrimas. Um ou dois.

Por norma, em épocas normais, um frasquito durava-lhe três 15 dias. Desde porém que o Nobre Náldega (alcunha que D. Nelson Novaes nem sonhava lhe assentasse que nem uma luva) o expulsara da Lista para a nova Direcção do Rosa, Leão vira-se na contingência de aviar um recipiente lacrimal por dia.

Para poeta – convenha-se — António vertia pouco. Não significando tal um défice de sentimentos. Muito ao contrário: Leão fazia frequentemente suas as dores do mundo e comovia-se nisso para além do contável, assim enfileirando com os líricos da sua estirpe.

Só que o sentimento não arrastava a seus olhos o correspondente caudal choroso e o choriço, por se sentir discriminado, recorria ao vasilhame do Firmino com regularidade módica. Um poeta como ele, hábil de mão e coração, nunca aceitaria de bom grado traições da fisiologia.

Insuportável lhe foi, anos e anos, a ideia de o seu público o suspeitar fonte seca. Quando num amargo d’alma colocou certa noite o drama aos pés do seu amigo da botica, sentiu logo este o alfinete das fulgurâncias atravessar-lhe o pote encefálico. Acabava o botiqueiro de ter grande ideia. Mas calou-a e comandou: passa cá amanhã.

Ao outro dia, no abrir do estaminé deu Firmino de caras com o Tó Leão já de pé, impaciente pelo escancarar da loja. Atão?

Calmaria
, devolveu o prático levantando a grelha metálica que protegia a botica das ânsias nocturnas dos agarrados do quarteirão. Entraram.

Leão mal se tinha dos nervos e assistiu escandalizado ao período ritual com que o amigalhaço inaugurava funções. Vestida a bata, enroladas as mangas, descerrados os taipais, o botiquento extrai da malinha de couro um conta-gotas de plástico e pespega com o dito a um palmo da miopia do benfiquista. Qu’é lá isso, pá?

Firmino não podia sem mais nem ontem explicar (explicaremos nós à frente). Limitou-se a elucidar que ali trazia solução para as carências expressivas do outro. São lágrimas, Leão. Lágrimas (por assim dizer) de Portugal? Se quisermos...

O conteúdo da vasilha provinha directamente da inesgotável esposa dele (mas este é segredo a ficar muito bem guardado). Recapitulemos.» (Cá Vai Lisboa, 2004, pp. 120-121)

É de partir o coco!
- Mas que coco, Sr? Que coco?

12 novembro 2005

Intermitências da vida, 1

















- Groucho, bons olhos o vejam!
- Bem posso dizer o mesmo! Por onde tem andado?
- Sei lá. É uma aflição estes dias. E estas noites. Uma correria. Falta-me o ar.
- Não me diga…
- Mal me levanto e já estou a fechar os olhos outra vez.
- Isso não pode ser assim, Sr. Portela. Está com certeza a dramatizar.
- Não estou, não. E sabe o que é pior?
- O quê?
- Há pedaços inteiros que desaparecem.
- Pedaços inteiros que desaparecem?
- Sim, pedaços inteiros que não deixam rasto. Por exemplo, vou a guiar e reparo em mim a conduzir.
- E então?
- Não sei como cheguei até ali. É como se se tivessem desvanecido quilómetros e quilómetros, como se tivesse atravessado um buraco no tempo e no espaço. Há uma falha nesse percurso no chão do mundo. Nesse contacto.
- São intermitências da vida…
- Da vida ou da morte?
- Não sei, não sei…

Intermitências da vida, 2
















- Percebeu o que eu lhe disse?
- Tempus fugit!
- Não, Groucho. Não é nada disso.
- Falta-lhe o tempo, Sr. Portela.
- Não, já lhe expliquei. Não é o tempo. É o ar.
- Já me aconteceu. Isso é alguma insuficiência respiratória.
- Não é nada disso, Groucho. Já lhe disse.
- Mas o que diz o pneumologista?
- O pneumologista não diz nada.
- Mas não diz nada como?
- Não diz nada porque não há nada a dizer.
- Mas se lhe falta o ar…
- Falta-me o ar e falta-me o mundo, percebe?
- São intermitências da vida…
- Da vida ou da morte?
- Não sei, não sei…

Intermitências da vida, 3

















- Ausentou-se?
- Não, não me ausentei. Estive presente.
- Se esteve presente, não vejo como isso é possível.
- Estive, mas não estive em mim.
- Quer dizer que esteve fora de si?
- Não, também não estive fora de mim. Se assim fosse, ter-me-ia visto.
- Ter-se-ia visto?
- Sim, ter-me-ia visto a fazer o que estivesse a fazer. Ou simplesmente a ser.
- A ser o quê?
- A ser aí.
- Aí aonde?
- Aí no espaço-tempo. Parece que cada vez são mais frequentes…
- Mais frequentes?
- Sim, as desaparições, os hiatos, as brancas…
- São intermitências da vida…
- Da vida ou da morte?
- Não sei, não sei…

Intermitências da vida, 4
















- Telefonemas e mais telefonemas, papéis e mais papéis, posts e mais posts. E, no meio disso tudo, buracos. Buracos e mais buracos.
- Desculpe, mas não entendo.
- Imagine os seus gestos repetidos.
- Os meus gestos repetidos?
- Sim, Groucho. Chegar aqui todos os dias, ou de vez em quando, e não sentir que esteve cá. Faltar-lhe a consciência de si.
- Ah, mas isso falta-me sempre!
- Não é a isso que me refiro. Não é ao ventriloquismo. Sei que eles o põem a falar. Até eu às vezes caio nessa tentação. Mas felizmente o Sr. lá vai ripostando.
- Então a que espécie de inexistência se refere?
- Bem sei que a repetição organiza o mundo. Dá-lhe plenitude. E que a condição do sujeito é semelhante à da personagem. Mas não é bem isso que eu quero dizer.
- Então o que é? Como é que eu o hei-de entender assim?
- Não é o papel que me insatisfaz. É a chamada do real que deixa de se ouvir. O ruído de fundo que faz a intensidade do mundo desaparece. Percebe?
- Não percebo, mas parece-me que o seu é mais um caso de tropologista…
- Afligem-me estes rumores brancos, estes buracos no coração…
- São intermitências da vida…
- Da vida ou da morte?
- Não sei, não sei…

06 novembro 2005

Olha, outro!

― O Groucho reparou nisto? Oiça: “Os intelectuais foram postos ao serviço de um processo de idealização política do mundo. Os intelectuais ao serviço de utopias. Quando estas faliram, os intelectuais voltaram para casa. Onde estão melhor.
― Não, não reparei. Onde é que o senhor lê essas coisas?
― Esta li aqui.
― Eu nunca vou aí, o senhor já sabe.
― Nunca vai, acaba por perder estas pérolas. Já viu bem, um liberal, um liberal que escreve, a preferir que os intelectuais fiquem em casa?
― Qual é o problema? Infere-se que ele, quando escreve, não usa o intelecto (e o senhor concordará que se trata hoje em dia de uma opção comum) ou, então, que gosta mais de escrever em casa, o que acho naturalíssimo, até por razões de conforto.
― Lá está o Groucho a desconversar.
― Eu?
― Não se faça de sonso. A tese daquele senhor é que os intelectuais foram “postos ao serviço” pelo comunismo, porque antes do comunismo os intelectuais eram todos de direita e a direita era toda intelectual, o que, segundo a explicação dele, se vê perfeitamente no caso dos românticos alemães. Veja só a demagogia!
― E não terá alguma razão?
― Ó Groucho, com franqueza… Os românticos não tinham utopias? O comunismo foi a única “idealização política do mundo”? Nunca houve utopias de direita? Não houve até intelectuais fascistas? Todos os intelectuais estiveram “ao serviço de utopias”? O contrário da utopia é voltar para casa?!
― O senhor faz tantas perguntas que não me dá tempo de responder a nenhuma.
― E o que é que o Groucho me respondia se tivesse tempo para isso?
― Respondia-lhe que o senhor perde tempo de mais a ler essa coisa dos blogues. O Sr. Baptista passou aqui ontem e deixou este livro para si. Veja lá se arranja tempo para lê-lo, em vez de estar aí especado em frente ao ecrã…
Nous n’avons jamais été modernes…? Antropologia simétrica ? Olha, outro que não fica em casa…
― Perdão?
― Então o Groucho não sabe que os antropólogos fazem sempre trabalho de campo?

05 novembro 2005

Então e o clube de fãs?

― Vai bem, vai bem. A ideia avança.
― E qual é o seu papel?
― Estou a redigir uma proposta de estatutos.
― Sozinho?
― Quase.
― Quase?
― Sim, Groucho, quase. Pedi ajuda à menina Clara num ponto delicado.
― Posso saber qual?
― Pode. É o § 14 dos Estatutos.
― 14?
― É. Trata-se de um § que estabelece a regra quanto à relação dos fãs com outros cronistas que não VPV. Dou-lhe um exemplo: poderá alguém ingressar no clube se for ao mesmo tempo leitor crónico de VPV e seguidor acidental das crónicas de Miguel Sousa Tavares? Ou se, caso mais sério, nutrir incontornável admiração pelas crónicas de João Pereira Coutinho? Em suma: terá o fã de VPV de viver em regime de dedicação exclusiva às crónicas de VPV?
― Hmmm, um bico de obra…
― Não duvide. Mas a menina Clara, mesmo sem pretender ser admitida no clube (veja só a generosidade!), foi lesta a fornecer-me uma solução.
― Diga, diga!
― Insistiu na importância do princípio de hierarquia inequívoca e aconselhou-me uma redacção do § 14 que, conservando a exigência de admiração incondicional exclusiva pelas crónicas de VPV, abranja os casos consistentes daqueles fãs de VPV dedicados ao culto negativo de outros cronistas.
― Culto negativo?
― Sim, Groucho. É a atitude das pessoas que chegam a coleccionar as crónicas de Eduardo Prado Coelho com o mesmo amor que certos cinéfilos manifestam pelos filmes de Ed Wood… O paradigma, para a menina Clara, é a paixão de George Smiley pelos poetas menores do Barroco alemão.
― Está bem observado, sim senhor!
― Olhe, aí vem a menina Clara, vamos lá cumprimentá-la…

Extractos de Filosofia Gótica (1)

A conversa dos artistas é ainda pior. Os seus condimentos principais são a vaidade e a inveja. A vaidade é detestável por chocar com a nossa própria vaidade.
Horace Walpole

Extractos de Filosofia Gótica (2)

Em todas as ciências, os erros precedem as verdades; aliás, é melhor virem no princípio do que no fim.
Horace Walpole

03 novembro 2005

Subescritos, 1

Está tudo pendurado das mangas do céu e Deus não acorda.

Subescritos, 2

E os olhos dos peixes é como se fossem os olhos dos leões a rebentar no deserto.

Subescritos, 3

Experimentem pegar em crocodilos pelo rabo e pô-los a dançar ao ritmo da bateria. Não é fácil aguentar o peso do crocodilo vivo e mais ou menos enlouquecido pelo tambor contínuo e o bater dos pratos de choque.

Subescritos, 4

Rememora, espanta, cobre de suor, desentulha os solos, põe-te mais fluido que o ar dos cabelos.

02 novembro 2005

Dia de todos os santos, 1



- Groucho, Groucho! Chegue aqui.
- O que é que se passa?
- Isso pergunto eu!
- ...?
- Este alvoroço, homem!
- Alvoroço?
- Sim, tanta sorna e agora isto!
- O quê, não me diga que esteve a emagrecer?
- Eu? Eu não.
- Então, foi à castanha?


Dia de todos os santos, 2




- Groucho, explique-me uma coisa.
- Diga lá!
- Tem andado por cá?
- De vez em quando, sim. Lá calha uma espreitadela.
- E então?
- ...?
- Quer dizer, não tem visto as paredes sem nada?
- Sim, pode dizer-se que sim. Meia dúzia de posts.
- A amarelecer. A enrolarem com a humidade.
- Uma pasmaceira pegada.
- Então como explica isto?
- Não sei, não sei.

Dia de todos os santos, 3



- E a lagartixa?
- Qual lagartixa?
- E o gafanhoto?
- Qual gafanhoto?
- E o castor adormecido?
- Qual castor adormecido?
- E o monstro do lago Ness ferradinho?
- Qual monstro do lago Ness ferradinho?
- Não me diga que não os viu?
- Eu não vi nada.
- E o clube de leitura?
- Qual, o de fãs?
- Não, o de leitura.
- Nunca ouvi falar.
- E o burro? O burro deitado?
- Vi um, mas estava de pé.
- Mas por onde tem andado, Groucho, por onde?
- Olhe, por aí, por aí... por onde quer que ande?

Dia de todos os santos, 4





- Ainda não consegui entender.
- O quê?
- O que se passou nesse dia.
- Não vou cair nessa armadilha.
- Qual armadilha, Groucho?
- Não seja sonso.
- Bom, estamos aqui os dois a falar civilizadamente.
- Isso é o que o Sr. diz sempre.
- Digo e faço. Ou antes: digo e falo.
- Está a ver? Está a ver?
- O quê?
- Essa tendência irritante para o trocadilho e para o quiproquó.
- Mas ainda não me respondeu.
- Nem respondo.
- Mas concorda que foi um dia crítico.
- Eu não disse? Estava-se mesmo a ver.
- Agora sou eu que não o estou a seguir.
- Foi o dia de todos os santos.
- De todos?
- Bom, se não foi de todos... foi pelo menos de São Silvestre!

Morrem mais de mágoa

Where does an animal sleep when the ground is wet?
cows in the ballroom, chikens in the farmer's corvette.
Sometimes a pony gets depressed.

(Aqui se dá notícia do último trabalho dos Silver Jews,
Tanglewood Numbers).

A doninha fede

- O senhor Pac Man é agora o "mandatário para a juventude" do Senhor Alegre.
- Foram almoçar ao Papa Açorda?
- Sim, claro. O Mac é para a juventude mandatada.
- A doninha fede. Haja liquidez, pois. A poesia não está na rua. Como diz o seu Wallace Stevens, meu caro LQ, o dinheiro é uma espécie de poesia.
- Sim. Estou inteiramente de acordo. Prefiro um poeta de pés enxutos.
- O Cavaco não deixaria de o subscrever.
- Fartos de enxofre e biliosas criaturas estamos nós. O Cavaco, o Alegre, a doninha, você, possivelmente todos os casmurros, não?

E que tal um clube de fãs?

― Um clube de fãs?
― Sim.
― Um clube de fãs de um cronista?
― Sim, Groucho.
― “Sim, Groucho”?! Mas isso é alguma evidência?
― Então não é?
― Não!
― Porquê?
― Porquê?! Porque fãs têm as estrelas da pop e os clubes de futebol, por que é que há-de ser?!
― Mas aí é que está a originalidade da ideia: um clube de fãs do cronista VPV.
― Originalidade? Diga antes: bizarria.
― Isso diz o Groucho, porque a ideia não foi sua.
― Está a chamar-me invejoso? Eu aqui a esforçar-me por que o senhor veja a ideia estapafúrdia que lhe estacionou no cérebro e, por cima, ainda me chama invejoso? Em vez disso, devia era pensar que raio de sentido faz esse clube, em que é que se fundamenta, para que é que serve, qual é o objectivo… Vai ver que desiste logo da ideia, se pensar nela a sério.
― Já pensei. Em tudo. O fundamento para a formação do clube de fãs das crónicas de VPV é a legião de admiradores desorganizados que as crónicas engrossam a cada semana que passa. Como, aliás, tinha de ser e…o que tem de ser tem muita força.
― Mas tinha de ser porquê?
― Porquê? Ora oiça lá isto e diga-me o Groucho porquê (saca de um jornal e lê):

O manifesto de Cavaco não se percebe bem. [...] Ás vezes, por exemplo, parece uma redacção. As minhas ambições para Portugal, de Ronaldo Silva, 18 anos, Alcântara, Lisboa: “Eu gosto muito de Portugal. O meu pai diz que Portugal é um país da merda. Eu gosto muito de Portugal. Eu gostava muito que os ladrões dos políticos não roubassem. Eu gostava muito que o meu pai fosse rico e a minha tia Sandra arranjasse emprego e eu ir ao Brasil. Eu gostava muito de não faltar à escola e ter boas notas e depois ganhar muito dinheiro para ir ao Brasil. Eu gosto muito de Portugal. O meu pai diz que está lixado. Eu gostava muito que não houvesse pobrezinhos. Eu gosto muito de Portugal.”

― …
― Então?
― Inscreva-me. Inscreva-me já!

01 novembro 2005

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Invaginação: 1. Conceito produzido por Jacques Derrida para referir práticas de sexo seguro em que o pénis toca e não toca as paredes da vagina e em que esta não consegue decidir se está a ser penetrada ou não. 2. Mais um dos muitos termos com que Derrida foi rebaptizando, ao longo da sua obra, a noção de différance. Significa isto que, como a différance, só existe em francês e em França, pois são precisos séculos de civilização para produzir francesas e franceses tão sensíveis.

IP5: Museu Nacional de Acidentes Rodoviários. Entradas gratuitas para camionistas.

Iraque: 1. Está a caminho de ser um Estado de Direito democrático e de provar que, mais bomba menos bomba, é possível conciliar isso com a Sharia. 2. «A estrada é longa, tortuosa e pejada de cadáveres, mas no fim a América dará mais uma lição ao mundo!» (Vasco Rato dixit. Ou será Luís Delgado?) 3. Um vasto poço de petróleo rodeado de curdos, xiitas, sunitas, texanos e U.S. Marines por todos os lados. 4. Bush foi lá uma vez comer um peru com os Marines, a pretexto da festa do Thanksgiving, mas, antecipando a gripe das aves, levou um de plástico. 5. Fez-se um grande estardalhaço com Abu Ghraib, que foi um caso (lamentável, é claro) de excesso de zelo, mas o que ninguém diz é que a situação dos direitos humanos no país melhorou drasticamente com a chegada dos americanos.

Irmã Lúcia: 1. Trabalhadora incansável, reescreveu muitas vezes a história das aparições, conseguindo sempre melhorá-la. 2. Mel Gibson achou-a o máximo e pensou mesmo em fazer um filme sobre as aparições de Fátima com a voz dela a narrar em off (em aramaico, claro).

Diário de uma apoiante de Manuel Alegre à Presidência

Como pôde Soares, após décadas de caminho comum, fazer aquilo a Alegre?! A política, ou é um vínculo afectivo em torno de projectos e valores, ou não é nada, como tão bem disse o nosso poeta. Alegre comportou-se de modo irrepreensível em toda esta embrulhada. Manifestou a sua disponibilidade para avançar, quando a sua candidatura parecia não poder ser mais do que um sacrifício à ética partidária a que sempre foi fiel; hesitou e recuou (ou pareceu recuar, para quem se fiou nas aparências sabiamente manipuladas), no jantar de Viseu, ainda por fidelidade à ética partidária e a uma amizade de décadas; mas houve um momento em que tudo se tornou incontrolável: os apelos incontidos das massas, veiculados por militantes descontentes no interior do PS, a arrogância e insensibilidade de Soares (e Sócrates?), o imperativo de algo maior do que a ética partidária: a consciência de um homem livre e indomável.
E querem agora que ele desista em favor de um Soares gasto e sem uma ideia? Agora que o povo desce à rua ao apelo da redondilha e do decassílabo heróico? Nem pensar. Não é possível enganar toda a gente todo o tempo, meu caro Mário. Para isso já basta o Cavaco… Em frente, Manuel, em frente! O nosso povo tem um encontro marcado com o destino em Janeiro, e desse encontro sairá o Portugal futuro de que falava outro poeta maior. Um Portugal em que a poesia esteja de novo na rua e seja de novo possível exigir o impossível. Um país que, ao invés do verso de Sophia, não mais nos «mate lentamente». Como tentaram fazer a Camões. E a Alegre. Mas a verdade é que, como há muito se sabe, apenas os poetas perduram, em tempo de contabilistas.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Interactivo/a: 1. A TV é-o cada vez mais, sobretudo no caso da TVI, que deu, também por isso, outro significado à expressão «horário nobre». 2. A política já foi mais, mas o Bloco de Esquerda está a esforçar-se por corrigir isso. 3. Alberto João Jardim, esse, é um verdadeiro paradigma histórico, sobretudo no que toca à relação entre políticos e população por altura das festas populares (o Chão da Lagoa, a passagem de ano, o Carnaval) e política e média. 4. Os blogues são-no muito, à excepção daqueles em que, de forma aberrante, se barra o direito dos leitores a produzirem comentários. 5. O futebol, para o ser verdadeiramente, precisa da criatividade gestual, verbal e coreográfica das claques. Para não falar das intervenções dos dirigentes e dos treinadores. 6. Os tropas estão com muita vontade de o ser, mas o governo não deixa. 7. Já os juízes, fizeram até greve para impedir que os obriguem a cair nisso, que dará cabo do prestígio da magistratura. Se bem que o juiz da Casa Pia (o da t-shirt e da musculação) não tinha nenhum problema em sê-lo, e em directo. 8. Cavaco faz tudo para não o ser, pois é nesse estado ausente e silente que as sondagens o favorecem. 9. Alegre é-o por definição, pois ninguém lhe consegue desligar a pilha vocal. 10. Soares já foi mais, mas continua imbatível e está mesmo a passar à fase cyberpunk ou, pelo menos, a uma versão de «A quinta dimensão». 11. Louçã é muito bom a interagir com Jerónimo de Sousa, tanto mais que ambos se candidatam à presidência apenas para esse efeito.

Internet: 1. A realização do ideal da democracia por vir de Derrida: um universo onde se pode dizer tudo, sem risco de censura (por agora). 2. Infelizmente, e como os marxistas gostam de recordar, é uma democracia que implica o acesso a um terminal de computador e o domínio da infoliteracia, coisas pouco frequentes na África e muitos outros sítios do planeta. 3. Começou por ser uma rede de informações militares do Pentágono e agora serve para atacar o Pentágono, os EUA e o próprio Ocidente, sempre em nome de Deus. 4. Deus, como se sabe, é o nome herdado da antiguidade para a World Wide Web. 5. Um paraíso para pornógrafos e pedófilos, apesar de o sexo virtual ainda estar a dar os seus primeiros passos. 6. Serve para conhecer pessoas, criar relações e desfazer casamentos. 7. Serve para mandar vir gadgets de Sex Shops sem sair de casa ou para enviar postais de aniversário a Osama Bin Laden, lá num terminal numa caverna do Afegasnistão. 8. Foi antecipada por Jorge Luís Borges, que lhe chamou biblioteca, em «A Biblioteca de Babel» e pelo Padre Vieira, que a baptizou Quinto Império, chamando a atenção para o seu carácter de império imaterial.

Esclarecimento

Do MAMAP (Movimento de Apoio Manuel Alegre à Presidência) chega-nos a seguinte Nota à Imprensa:

“De modo a clarificar funções e evitar os equívocos em que outras candidaturas, mas instaladas e mais gastas, vêm caindo, esclarecemos que no MAMAP o papel de mandatário nacional não se confunde com o de porta-voz. Teresa Rita Lopes é a mandatária nacional de Manuel Alegre, enquanto Inês Pedrosa é a sua porta-voz. Significa isto que Manuel Alegre manda em todo o MAMAP, menos em Teresa Rita Lopes. E que ninguém cala Manuel Alegre, com excepção de Inês Pedrosa, que por seu turno só pode ser calada por Teresa Rita Lopes (que contudo não tenciona usar dessa prerrogativa).

Ao contrário de outras candidaturas equívocas e equivocadas, o MAMAP rege-se pelos mais puros princípios do centralismo democrático, conveniente e previamente desconstruído pelas políticas da paridade de género que encontram na sua mandatária e na sua porta-voz os seus estandartes mais irredentistas.

Contra o sistema e o verso branco, Vota Alegre!”

Diálogo verídico e fidedigno entre os quase-ex e ainda-putativo directores do Expresso









(Quase-ex) O fundamental é o saco de plástico, Henrique, o saco de plástico! Sem ele, nada feito. Cabe lá muita coisa, como sabes – e cabe-te a ti inventar os suplementos e encartes que ainda lá caibam. Como se dizia no Manifesto Comunista, há ainda um mundo, ou vários, a ganhar para o saco.
(Ainda-putativo) Mas não é fácil, Zé Tó, não é fácil. Tenho a sensação de que tu esgotaste a matéria, com tudo o que inventaste ao longo de mais de 20 anos. Mas enfim, ocorreu-me uma ideia há dias que não sei se dará… Que achas disto? Um suplemento «Expresso Memória» com os melhores momentos do jornal: uma entrevista da Avillez ao Cunhal em cada semana, as tuas melhores análises políticas, uns excertos das tuas melhores entrevistas ao jornal, uma ou outra entrevista ao Dr. Balsemão, as melhores crónicas do Espada, as melhores fotos de gajas em discotecas (talvez um pouco de lesbian chic aqui e ali, que o pessoal pela-se por isso), os melhores ensaios literário-gastronómicos do Quitério, as melhores fotos do Ochôa e os melhores cartoons do António, etc. Que achas?
(Quase-ex) É capaz de funcionar, sim. Tanto mais que é tempo de reciclarmos e rentabilizarmos o nosso arquivo. Mas já sabes: textos curtinhos, fotos grandes e sempre a cores. Sem isso, nada feito… O fundamental é perceber que isto é um jornal para toda a família, pelo que esse suplemento, a ser criado, tem de seguir a linha «sortida» da Única: coisas leves e pesadas (de preferência pouco pesadas), sem preconceitos em matéria de juízo de gosto. Se for preciso, citas o Bourdieu para deixar claro, contra os intelectuais terroristas, que o juízo de gosto nunca é desinteressado: depende sempre do número de assoalhadas em que se vive, da cilindrada do automóvel, do tipo de prendas que se oferece à amante, etc. Logo, nada de preconceitos em misturar a Ágata com a Clara Ferreira Alves.
(Ainda-putativo) Tens de me recomendar uma «Introdução» ao pensamento desse gajo. Mas coisa curta, que não tenho tempo pra mais, com este Titanic às costas (se calhar, a Wikipédia resolve-me o problema, não?). Mas voltando ao saco de plástico, sabes o que me preocupa, Zé Tó? A questão ecológica. Sabes que em França acabaram agora mesmo com os sacos de plástico nos supermercados? E a Bélgica e outros países vão a caminho? Olha se a moda pega por cá?! Vendemos o jornal em saco reciclável? Ou recuperamos o saco de pano em que antigamente se comprava o pão? Mas já viste a escalada nos custos?
(Quase-ex) Já me constou esse novo morbo gálico, de facto. De há uns tempos pra cá, os franceses parece que se empenham unicamente em chatear o resto do mundo… Admitindo que isso cá chegue, e chegará sempre com com o proverbial e providencial atraso, há que resistir até ao limite em defesa do saco de plástico. Talvez publicando artigos a denunciar a mistificação ecologista por trás do ataque aos sacos de plástico (uma foto de um líder da Quercus a sair do Continente cheio de sacos de compras dava um jeitaço); ou fazendo o elogio do plástico como «material que mudou o mundo», etc. Há uma vasta gama de possibilidades. Se e quando já não for possível mantê-lo, podemos sempre lançar um «saco-Expresso», em material reciclável, talvez ilustrado por um pintor de renome. O Pomar, por exemplo. Ou a Graça Morais. Ou com uma foto e assinatura do Cristiano Ronaldo. O público compraria o saco, nós sempre ganharíamos aí mais um tanto, e depois o mesmo público habituar-se-ia a ir aos sábados ao quiosque de saco na mão, como antigamente se ia ao pão. Ganhar-se-ia mesmo em intimidade e domesticidade, na relação do cliente com o jornal, tanto mais que, como se faz em França, as pessoas podiam habituar-se a usar o saco para o jornal e para o pão.
(Ainda-putativo) Brilhante, Zé Tó, brilhante. Porque do que não há dúvidas é de que precisamos de um saco, se queremos continuar a nossa política de expansão. Mudando de assunto, não sei se não devíamos reformular alguns dos suplementos actuais, à imagem da Única, que essa é intocável. E a tua grande (re)criação.
(Quase-ex) Estás a pensar exactamente em quê?
(Ainda-putativo) Bom, no Actual, para começar. A secção de Livros está quase boa: textos curtinhos, quase tudo sobre romances ou livros de crónicas e política, tudo no fundo do suplemento, para as pessoas se poderem entreter antes com coisas mais estimulantes, como os filmes e a música. Mas na secção das Artes os textos ainda são demasiado grandes e muitas vezes sobre obras a que eles chamam arte, mas que ninguém entende. Aquilo tem de passar para metade do tamanho, com franqueza, e temos de os proibir de usar palavras que não vêm no dicionário (então aquela da «fisicalidade», sempre gostava de saber o que quer dizer!). O cinema está aceitável, embora ainda se trate de filmes europeus e asiáticos em demasia. A secção da Música talvez pudesse ser reforçada, mas a chatice é que a malta que escreve lá sobre a pop tem a mania que é intelectual, e vai de escrever sobre a Madonna ou a música de dança como se estivessem a fazer ensaios de sociologia ou retórica. Não sei se não será de importar aí uma miudagem da que escreve nos blogues. Há gajos muito bons e a escrever sem pretensões.
(Quase-ex) Não podia concordar mais. Como sabes, fiz os possíveis por reformar a parte cultural do jornal, conseguiu-se alguma coisa mas estamos ainda longe do ideal.
(Ainda-putativo) É difícil, porra, é mesmo difícil reformar uma instituição com décadas de vida e inércias fossilizadas. À nossa escala, é como a reforma da Função Pública. Vais ter de me ajudar, que a tua experiência é um capital precioso.
(Quase-ex) Sempre às ordens, meu caro. Como sabes, continuo a considerar-me jornalista e faço questão de manter a minha coluna de análise política. Estou convencido de que o clima de racionalidade no debate político, já de si tão rarefeito entre nós, degradar-se-ia de forma irreversível se eu deixasse de a escrever.
(Ainda-putativo) Eu nem consigo conceber a política à portuguesa sem a tua coluna, Zé Tó. Mas já agora, e sem querer abusar da tua agenda, diz-me cá: já deste uma vista de olhos ao meu manuscrito?
(Quase-ex) O romance? Vou na página 130. Tenho escrito comentários, tirado notas e sugerido alterações. Creio que daqui a 15 dias já te posso passar o material todo.
(Ainda-putativo) Eh pá, nem sei como te agradecer. Depois, vais ter de me ajudar também a pensar as formas de promoção do livro: entrevistas, recensões, etc. Aqui no Expresso e noutros meios de comunicação.
(Quase-ex) Sempre às ordens, meu caro. Também nisso, tenho já um importante capital de experiência acumulado.
(Ainda-putativo) Eh pá, Zé Tó, amigos como tu há mesmo muito poucos.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Inspiração poética: Para se saber o que é, e uma vez que já não se pode recorrer a Sophia de Mello Breyner, perguntar a Manuel Alegre.

Instalação: 1. Obra de arte contemporânea, que quase nunca é obra e raramente é arte. 2. No início servia para reciclar lixo urbano e para mostrar gente seminua e peluda. Agora usa vídeo, néon, o digital, dispõe-se em museus e galerias e tornou-se coisa chique que todo o artista deve incluir no currículo. 3. É uma chatice para os coleccionistas, pois às vezes é tão informe que não dá para expor e, quase sempre, exige muitas assoalhadas. 4. Nada tem a ver com a obtenção de um emprego vitalício na Função Pública.

Atão e agora, pá?!














- Já reparou, Groucho, no que está a suceder ao intelectual (perdão: ao não-intelectual) Pacheco Pereira?
- A que se refere, senhor?
- Ora, Groucho, anda distraído. Ao longo dos anos, como sabe, ele foi-nos facultando a sua periódica indignação contra a demagogia e o sectarismo dos média, não esquecendo a forma como os jornalistas se arrogam hoje o papel de consciências vigilantes, e punitivas, do espaço público, contra a sua degradação às mãos dos baixos, mesquinhos e vis interesses da política e dos políticos.
- Com carradas de razão, senhor, se me permite. Os jornalistas, como sabemos e sofremos, são reencarnações kantianas: o céu está sempre cheio de estrelas refulgentes acima deles, enquanto a lei moral os habita e possui.
- Admito sem custo, meu caro. Mas voltando ao intelectual (perdão: ao não-intelectual) frio. No papel de Grande Denunciador (alguma coisa lhe havia de ter ficado dos idos da revolução…), Pacheco Pereira lançou campanha atrás de campanha contra a hidra sulfurosa dos média, de que é, aliás, tão íntimo…
- Deixemos as denúncias, tão facilmente debordianas, de ambíguas conjugalidades no mundo do espectáculo, para os outros, senhor.
- Tem razão. Deixemo-las para o nosso não-intelectual. Como se lembra, até Timor lhe serviu para dar largas às suas razões: aquilo – a repressão, a resistência, o anseio de libertação – não era bem assim, pois na verdade tratava-se de uma mistificação dos média, que mais uma vez trocavam o seu dever de imparcialidade pelo terrorismo político e pelo sentimentalismo demagógico. «Um dia, dizia Pacheco Pereira, de dedo em riste e segurança histórica no sobrolho de coruja, eles vão-se entender com os indonésios, e depois eu quero ver em que ficamos… Sim, porque até a política oficial do Estado português anda hoje a reboque da internacional mediática pró-Timor…» Depois, foi o que se viu. E sobretudo viu-se como ele ficou caladinho a posteriori, como se nada na fenomenologia histórica pudesse abalar a solidez dos seus insights, mesmo quando a dita fenomenologia acabava de manifestar todo o seu desprezo por eles.
- Bem me lembro, senhor. Tanto me custou essa decepção provocada por uma das minhas referências político-intelectuais…
- É bem feito, que é para você ter juízo, Groucho. Mas reentrando em matéria, eis senão quando o advento presidencial do Messias de Boliqueime suscita na corporação mediática uma comoção só comparável à da defenestração do mesmo Messias, há uma década, por Guterres, na pessoa do factotum Fernando Nogueira… E eis que, quando nós esperávamos que Pacheco Pereira denunciasse agora a falta de parcialidade que há 10 anos tanto o indignou, o que é que acontece? Acontece que o nosso homem nos oferece o espectáculo do seu copioso silêncio…
- [Groucho tosse por duas ou três vezes]
- Não acha que é caso para perguntar: atão e agora, pá? Por onde anda essa denúncia dos malefícios e perigos dos média para a paridade no tratamento informativo da agenda noticiosa? Que tem o nosso homem a dizer-nos sobre a já famosa emissão da SIC Notícias, desde o momento em que Cavaco saiu de casa até ao CCB e depois? Parecia uma daquelas emissões em que se acompanha o autocarro do Benfica, do hotel até ao estádio, enquanto a população agita as bandeiras do glorioso. Ou será que afinal tudo está bem quando a razão mediática coincide com a do mundo de Pacheco Pereira?
- Essa analogia com o Benfica é capaz de ser um bocadinho injusta, senhor.
- Não vejo porquê. Digo-lhe mais: é por isso que nunca seria capaz de ser do Benfica. É que não dá gozo nenhum ter permanentemente A Bola, o Record, a TVI e a Sport TV a puxarem pelo clube, ao mesmo tempo em que proclamam, mais ou menos histericamente, a independência e equidade do seu tratamento informativo (cruzes, canhoto!). Ora, eu estou convencido, meu caro Groucho, de que a malta dos jornais gosta tanto do Pacheco Pereira (sim, sim) que se ele lhes dissesse para tentarem moderar o entusiasmo, eles até lhe davam ouvidos. A começar pelos dois directores do Expresso, por exemplo. Ouviu o Henrique Monteiro a defender a superioridade do discurso de apresentação de candidatura de Cavaco em relação ao de Soares, por aquele ter falado apenas 8 minutos? E como ele insistia no número mágico: 8 minutos! Dá ideia que é o máximo que o zapping, ou as suas consequências, hoje permite como atenção a um discurso. Mas se o futuro director do Expresso só aguenta 8 minutos de discurso, como entender que esse mesmo jornalista de vez em quando se manifeste, como tanta gente hoje, no Expresso e em todo o lado, contra a escola dos nossos dias, que não educaria para a atenção, a morosidade do trabalho, etc.?
- De facto, eu também não aguento o Expresso por mais de 8 minutos, senhor…
- Como o compreendo, Groucho.
- Mas voltando ao Pacheco Pereira, senhor, creio que não lhe está a fazer justiça. Receio que o preconceito labore aqui contra a justa compreensão a que ele tem direito, se me permite.
- Preconceito? Justa compreensão? Enfim, você tem cada uma. Mas desembuche, homem, o que quer dizer com isso?
- É simples, senhor. Justamente por as posições dele sobre os média serem as que acabou de descrever, a ele só lhe resta, neste momento, o silêncio.
- Não o acompanho, amigo Groucho.
- Repare que o que está a acontecer com a pouco encapotada comoção mediática em torno de Cavaco («Ele vem aí! Ele está para chegar! Ele vai-nos salvar!») ratifica as teses de Pacheco Pereira sobre a conivência dos ditos média com os ways of the world. Digamos que a situação é uma tão maciça corroboração empírica da teoria que ele só tem de ficar calado a saborear o seu triunfo. Permita-me que lhe adivinhe um sorrisinho enquanto vê a TV no sofá, ou lê os jornais.
- Percebo: um sorrisinho autopoiético, como diria o Luhmann…
- Nem mais, senhor.
- Pois, percebo, Groucho. Mas permita-me que lhe faça ver o reverso da medalha.
- Por quem é.
- Se o silêncio de Pacheco Pereira é a dicção negativa com que ele nos diz a mútua acomodação de teoria e mundo, então o mesmo silêncio deveria ocorrer sempre que essa acomodação feliz se verifica. Ora, como na lógica de Pacheco Pereira isso está sempre a acontecer, pois os média são isso, ele deveria remeter-se a um silêncio perpétuo. Ter sempre razão implicaria estar sempre calado. O problema é que ter sempre razão é algo que só está ao alcance de posições teológicas (fideístas, pelo menos); ou melhor, é algo que equivale a não ter nunca razão.
- Percebo. O senhor está agora a invocar o fantasma popperiano da contrastação. A teoria de Pacheco Pereira não seria falsificável.
- Exacto. É uma teoria típica de um não-intelectual, meu caro Groucho. Ou, noutros termos, de um líder da opinião. Que, pela sua própria ontologia, não se pode dar ao luxo de estar calado, pelo que ele mesmo se encarrega de arruinar a perfeição lustrosa do seu edifício teórico. Ou, o que vale o mesmo, das suas consequências.
- Tenho de lhe confessar, senhor, que após esta conversa já não vou comprar o Público. Fico-me antes pel’ O Jogo. Ao menos na imprensa desportiva ninguém finge que é imparcial.
- Ora, até que enfim que o vejo chegar-se à boa imprensa. E aos bons jornalistas. Vai ver que em breve perceberá as vantagens de trocar o José Manuel Fernandes pelo José Manuel Ribeiro. Desde logo em opulência de estilo…

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Incêndios: 1. Surgem, e surdem alegremente, no Verão, por todas as florestas do país. 2. A estação é também propícia a que sejam ateados na cama. 3. Os bombeiros vêem-se gregos para apagar os primeiros. Quanto aos segundos, não há nada a fazer: é deixar arder. 4. Citar Sá de Miranda, para qualquer das ocorrências: «Que farei quando tudo arde?»

Inconsciente: 1. Como Popper demonstrou, não há provas de que exista (por outro lado, basta ler João Carlos Espada para depararmos com abundantes manifestações da sua existência). 2. Jung dizia que havia um «inconsciente colectivo», o que é uma boa descrição do povo português. 3. Lacan descrevia a admissão da sua existência como uma «imputação caritativa» que fazemos ao Outro, o que é provavelmente a única forma de aceitarmos a existência dos últimos 4 ou 5 primeiros-ministros de Portugal.

Independente, O: 1. A Bíblia da deontologia jornalística portuguesa, desde a sua fundação pelo dream team Portas-Esteves Cardoso. 2. Inês Serra Lopes tem-se esforçado por estar à altura do legado.

Independentes: 1. Há muitos, na política portuguesa, das autarquias ao governo. 2. São uma garantia de qualidade, em relação ao pessoal partidário, mas também só aceitam cargos com certas garantias, sobretudo em matéria de reformas. 3. Uma contradição nos termos, já que não se vê como pode um político ser independente em relação ao programa partidário ou de governo. 4. Por outro lado, talvez ganhe em ser visto apenas como um termo sem qualquer correspondência empírica. Daí a sua independência em relação ao real.

Importa-se de repetir? (II)

- Não sei, senhor. Pareceu-me injusto decretá-lo extinto em 1976. Afinal de contas, depois disso os Hospitais da Universidade de Coimbra salvaram-no in extremis e daí resultou a Senhora das Tempestades, com todo aquele cortejo de prémios e reconhecimento crítico.
- De facto, e muito ao invés do que sugere o Pulido Valente, a mim parece-me vivíssimo da costa. Também, nestes 30 anos de parlamento, não dei por que se afadigasse em excesso.
- Sabe que o parlamento é ingrato, desse ponto de vista, pois há muito trabalho de gabinete que nunca chega à praça pública. Horas perdidas em dossiês, estudos, debates à porta fechada, enfim, uma vida dura.
- Vejo que o Groucho decorou bem a cartilha da propaganda da nossa Assembleia da República. Mas voltando ao assunto que propõe, olhe que não sei se essa tal Senhora das Tempestades não corrobora, e radicaliza mesmo, o juízo do Pulido Valente.
- E como, senhor?
- Bom, o Pulido Valente decreta-o póstumo a partir de 76, não é? Mas lendo essa Senhora, a gente facilmente se apercebe, como ainda há pouco dizia a Clara Antunes em tom embevecido, que um espectro percorre todo aquele texto: o de Antero. E a coisa é de tal forma que bem se pode dizer que aquilo é um livro de poesia do século XIX. Mais ainda, meu caro: na medida em que essa obra, que a crítica decretou cimeira no corpus do poeta, condensa a poética e mundividência do autor, ela constitui-se fatalmente num vantage point que ilumina retroactivamente o dito corpus. E sabe o que acontece, quando de facto ligamos esse holofote retroactivo?
- Diga, diga…
- Ora, percebemos então que não é só esse livro que é poesia do século XIX no final do século XX, mas que é toda a obra de Alegre que é típica poesia oitocentista (convinha aqui ler o Ortega da Desumanização da Arte para perceber as incongruências de se ser «um poeta do século XIX no século XX» e como isso, só por si, o impede de ser o «grande poeta» que certas almas, a começar por Mário Soares, nele vêem - ou viam?). Antero vintage, entre as tonitruâncias das Odes Modernas e a metafísica tão gabada dos sonetos. Metafísica que, com franqueza, existe à custa dos mesmos sonetos. No nosso neo-oitocentista a coisa é diferente, pois ele usa a forma anteriana para exprimir uma ausência de ideias que o aproxima mais da versão crítica que muitos (os anterianos) apresentam do Eça: muita forma, zero de ideias. Neste caso, muita rima, muita métrica, muitas vogais ribombantes, e muita proclamação fátua (e sempre enfatuada, claro). Letras para canções, de facto. Mas muito longe da qualidade das do Leonard Cohen, por exemplo. Ou, em português, do Tom Zé ou do Caetano Veloso. Ou mesmo de algumas de Zeca Afonso.
- Mas então como explica o triunfo crítico desta poesia nas últimas décadas?
- Olhe, por um lado porque a poesia de Alegre faz o pleno ideológico: é historicamente património da esquerda, mas na medida em que andou décadas a fazer revisão da epopeia camoniana e a poetar sobre o império, num interminável e armadilhado trabalho de luto, agrada também à direita. Depois, porque não há que alimentar ilusões sobre a crítica: assim como os poetas fazem coisas muito diferentes sob a rubrica de «poesia», também os críticos se dividem entre os que gostam de poesia cívica, amorosa, metafísica, etc. Mas, antes mesmo dessa repartição departamental, convém não esquecer que o terramoto moderno deixou muita gente, críticos incluídos, desamparados. Melhor: sem pé, porque entre outras coisas, como dizia o Professor Mallarmé, «On a touché au vers». Ora, se há coisa que Alegre não faz é «tocar no verso».
- Outros o puseram a tocar, com acompanhamento à guitarra…
- Exacto. Coisa muito tonal, «mundana», autopreservada e satisfeita, como se o século XX (o Pessoa, por exemplo) não tivesse existido, ou pudesse ser substituído pelo rei Dinis. Ora, meu caro Groucho, não se iluda: assim como há tão pouca gente que prefira a música moderna à dos séculos XVIII ou XIX, também há muito crítico saudoso do tempo em que a poesia «dizia coisas» de alma para alma - a começar pelo Joaquim Manuel Magalhães, como sabe. Há muita gente que ainda ressente a perda da praça da canção em que a poesia funcionou até… olhe, até ao Antero. Que ainda pra mais é também património da esquerda.
- Percebo, senhor. Ocorreu-me agora que a gesta presidencial do nosso poeta se podia resumir toda num verso de Antero, sabe?
- E qual?
- Óbvio: «Sonho que sou um cavaleiro andante», etc.
- Diria mesmo mais, meu caro Dupont: óbvio!

Importa-se de repetir?

Vasco Pulido Valente, no Público de sexta-feira, último parágrafo, explicando o aparente, e esquisito, triunfo póstumo de Manuel Alegre sobre Mário Soares (e ainda há quem diga, com EPC à cabeça, que o homem não percebe de literatura…):

“Basta que se pense na extraordinária aparição de Alegre, que ninguém, nem o próprio Alegre, consegue explicar. Um homem que na prática acabou em 76 e que as sondagens põem à frente dele? Como? Porquê? Porque Alegre passa por poeta e escreve letras de fados; porque a pose, a ênfase, a mediocridade o fazem popular; porque ele pertence a um universo demótico, a uma ‘praça da canção’, a que Soares não pertence e nunca pertenceu; e, sobretudo, porque uma parte do Partido Socialista e arredores, que detesta Sócrates, prefere perder com a ‘boa imagem’ de apoiante de Alegre a perder com a ‘má imagem’ que lhe daria o candidato oficial e convencional Soares. É o Zeitgeist, que Soares não compreende, nem partilha”.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Imperialismo: 1. É hoje americano, por definição, embora há 500 anos tivesse sido episodicamente português. 2. Já consistiu em «expandir a Fé e o Império», quando era movido por razões nobres (as nossas). 3. Hoje só o petróleo o move, o que mostra bem a decadência da ideia imperial. 4. Na verdade, o americano é uma treta, pois precisam de ter a tropa toda no Iraque e ainda assim morrem lá como tordos. Nada que se compare com Roma ou com o braço longo e frígido da Rainha Vitória. 5. O que lhe vale é que Hollywood trata de ganhar a posteriori todas as batalhas, sobretudo as perdidas ingloriamente. 6. A Microsoft também dá um jeito, impondo-nos a sua janela para o mundo.

Impérios: 1. Houve o de Alexandre, o de Roma, o de Carlos Magno, o da Rainha Vitória, o de Hitler (que durou menos de mil anos), o de Estaline (que durou quase mil anos), e, enfim, o americano. 2. Os chineses, ao que parece, também tiveram um até há 500 anos (até nós chegarmos…), mas isso fica lá longe e não nos diz respeito. 3. O espanhol acabou no final do século XIX, sem honra nem glória, ao contrário do nosso. 4. O nosso era remediadinho mas honesto e, por mérito da gestão poupadinha de Salazar, bem como da nossa capacidade congénita para nos misturarmos com as raças inferiores, durou para lá da extinção de todos os outros. 5. Fernando Pessoa, na esteira do Padre Vieira, propôs uma versão nova do império ultramarino – o 5º Império – que poderia dispensar colónias e viveria apenas da língua, cultura, poesia e gramática, mas os economistas, a começar por João César das Neves, acham a coisa inviável pois não há impérios grátis e, quer os livros de poesia quer os de gramática (para já não falar dos dicionários), custam dinheiro e têm um retorno lento.

The Horror!



















Um amigo, poeta neo-gótico e ensaísta com coutada reservada em fantasmas, escreve-me no verso de um postal do filme Alice:

“Que tal a perspectiva de um Cavaco (não burlesco) para a Presidência?
A política, bem se pode dizer, é terror (como a poesia?)»

Postal bem apropriado, diga-se, esse de um filme sobre a perda de uma filha, para uma situação em que o filho perdido anseia por um Grande Pai de régua na mão, disposto a infligir-lhe os necessários castigos corporais. Porque é preciso estar muito mal em matéria de auto-estima, e completamente desprovido de Super Ego, para ansiar por uma figura tão detestável como Cavaco.
Uma figura tão detestável e factícia – sim: factícia - como Cavaco: o superambicioso político que afinal o não é (como ele mesmo confessava, numa daquelas entrevistas em que o Expresso há uns 15 anos fabricou o mito, quando ouviu Sá Carneiro pela primeira vez, disse para si mesmo: «Este é que me leva lá…»); o homem que está sempre a confundir política e finanças, como se a taxa de juro precedesse ontológica e filosoficamente os direitos, liberdades e garantias constitucionais – e como se isso o libertasse do fardo da ideologia, tanto mais que um Professor, em virtude da ciência que pratica (ainda que se trate de uma ciência tão humana quanto a económica), está para além disso; o democrata que só aceita debater quando de todo o não pode evitar (vide o seu comportamento em eleições legislativas no passado, ou a forma como tratou o parlamento e todo o equilíbrio de poderes – lembremos a denúncia das famosas «forças de bloqueio»); o «social-democrata», como agora se diz, historicamente mais responsável pelo facto de Portugal ser o país com maiores desigualdades de rendimento e sociais da Europa (quando se lhe perguntava, ao longo do consulado de 10 anos de cornucópia europeia, pelas políticas de combate à desigualdade, a resposta era invariável, e invariavelmente cega: aumentar a produtividade, aumentar a riqueza. Viu-se o resultado, e viu-se o que é a social-democracia à Cavaco: um país em que uma taxa escandalosa de BMW’s e jipes convive com níveis de desigualdade e pobreza que fazem de nós a América Latina da Europa); o homem que não é de direita mas em quem a direita tanto confia (porque será?) que se ausenta por completo da eleição; o homem cuja essência é o mando e por isso está sempre disponível para confundir autoridade com autoritarismo – e, não, não é o preconceito que me leva a dizer isto, mas tão-só a sofrida observação do consulado -, o que, ainda assim, não o impediu de proporcionar um dos momentos mais felizes para a alma, mesmo que bissexta, de qualquer anarca: a memorável cena de pancadaria entre polícias no Terreiro do Paço (obrigado, Professor!); o homem sem uma ideia em matéria de política internacional e do lugar de Portugal no mundo, e que, quando tentou ter ideias na matéria, acabou por nos enfeudar ao regime corrupto e assassino de Luanda - ele e o seu delfim Durão Barroso.
O amigo que me enviou o postal fala em terror. Por mim, falaria antes em repulsa. Por razões ideológicas, éticas e estéticas.
E porque me repugnam os messias, sobretudo os que já vieram há muito e nos oferecem apenas, como alguém, de forma definitiva, dizia, uma repetição farsesca da história.
Ou, para terminar melancolicamente com uma muito apropriada citação de Salazar: «Os homens mudam pouco, e então os portugueses quase nada».

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Identidade: 1. Todos temos uma e, na maioria dos casos, mais do que uma. Ex.: português, europeu, macho (hetero ou homossexual), solteiro, casado ou divorciado, licenciado em Direito em Coimbra ou em Comunicação na Nova ou em Gestão na Católica, leitor de Eduardo Prado Coelho ou de João César das Neves, apoiante de Cavaco Silva ou de Manuel Alegre para a presidência, etc. 2. Segundo certos teóricos, todos estamos reféns delas. 3. Há outros teóricos que dizem que nem tanto, pois nem sempre uma mãe possessiva dá um filho gay. Depende das mães (e dos filhos). 4. Uma das mais florescentes indústrias da actualidade, rentabilizada em secretarias de Estado, colóquios, slogans, desfiles, t-shirts e mesmo preservativos.

Ideologia: 1. Acto de produzir esforçadamente ideias. 2. Conjunto de ideias gerais, nem boas nem más, antes pelo contrário, sobre tudo e o oposto disso. 3. Versão moderna e secular do espírito santo, pois, como ele, está em toda a parte. 4. Antigamente, havia políticos que a usavam e abusavam mas agora deixaram-se disso, pois é bem mais importante saber fazer contas. 5. Só persiste nos extremos do quadrante político-partidário (BE e CDS-PP), naqueles raros que a acham mais afrodisíaca do que o poder. 6. Pertence, por definição, aos outros, os preconceituosos.

Iliteracia: 1. Propriedade daqueles que, mesmo depois de passarem pela escola, não conseguem ler um horário de comboios, o que é uma grave lacuna ontoteleológica (nesse caso, o melhor é ir de autocarro). 2. Não é bem a mesma coisa que «analfabetismo» (quando se pretender usar o termo, junte-se «funcional»), mas anda lá perto, embora fique mais caro, já que quase sempre pressupõe permanência longa na escola.

PENis Clube



























Estive a ler a lista dos premiados do PEN Clube deste ano. Tudo emparelhado ex aequo, o que aliás não é caso virgem por lá. Vê-se que os membros dos júris do PEN são leitores empenhados de Ronald Dworkin e crentes ainda na virtude política da Igualdade (o que não deixa de ter os seus méritos em tempos tão desenfreadamente liberais). Daí, sem dúvida, o alto preço em que têm a repartição equitativa das recompensas.
Não percebo contudo o chinfrim em torno da suposta paridade que a lista de premiados evidenciaria. Paridade o tanas! Pois a verdade é que mais uma vez os homens triunfam em toda a linha, por 4-2 neste caso. E, claro, o Ensaio continua a ser coutada da Razão do Macho, pois aí as mulheres estão a sofrer uma goleada histórica, como se diz nesse desporto que tanto os transtorna. Não haveria nenhum livro publicado por uma mulher que batesse os lugares-comuns identitários da obra de José Gil ou o biblismo de segunda de Tolentino? Nem a Silvina, nem a Morão, nem a Buescu, nem (a minha favorita) a Rosa Martelo?
Moral da história: é certo que os prémios deste ano tiveram o grande mérito de não eleger o próprio presidente do PEN como recipiente, ou João Barrento, um premiado crónico (esperemos pelo prémio de tradução, para ver se o júri o atribui de novo a tradutores de russo, ou línguas identicamente exóticas, sem que no júri um único membro saiba russo). Mas no resto, em questões de género, o PEN continua a ser um PENis Clube. Recorrendo à sugestão fálica (e falocêntrica e falocrática) do nome do clube, seria caso para a reduplicar ad infinitum (ou quase…) até termos tantas canetas em riste quantos os homens premiados: PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PEN PÉNIS Clube…

Diário de uma apoiante de Manuel Alegre à Presidência















Um homem que não se rende! Um homem que resiste, em nome de valores mais altos: a dignidade de cada um e de todos, o direito de homens e mulheres à emancipação pessoal e colectiva, os grandes ideais da esquerda eterna, a da Grande Revolução: Liberdade, Fraternidade, Igualdade.
Um homem que é toda uma história: a da luta pela liberdade no Portugal contemporâneo. Coimbra, a resistência juvenil, a «punição» africana, Nambuangongo (Nambuangongo!), Argel, a França farol da revolução, a luta contra a subversão das liberdades após o 25 de Abril, a generosa e árdua doação cívica por quase 30 anos no Parlamento.
E, claro, a poesia de mão dada com a política, numa aliança «natural». A grande ascendência da poesia trovadoresca, os cantares do rei Dinis, o encontro electivo com Camões, quer na lírica amorosa (e quão erótica, por vezes), quer na reescrita pós-colonial da epopeia, o encontro, na fronteira da morte, com o Antero (tão esquecido…) da Senhora das Tempestades. Para não referir o memorialismo recente, ou os livros de contos – enfim, uma obra tão justamente reconhecida pelos nossos maiores críticos e tão premiada, a que só falta o Prémio Camões que certamente não tardará. Que não pode tardar!
Numa palavra: o Intelectual, essa figura do letrado na sua encarnação pública, figura hoje tão preciosa quanto rara. Como não aderir pois à proposta de um homem cuja candidatura é apresentada como «um gesto poético»? Há quanto tempo deixou a política de poder ser caracterizada, pensada e sonhada como «um gesto poético»? No sentido grego de poiesis, claro: a arte, a poesia enquanto produção, criação de mundos possíveis, mundos da utopia, rostos do Grande Outro resgatados às trevas da vida pobre, danificada e vegetativa que é hoje aquilo que a política enquanto contabilidade nos propõe.
Alegre é outra coisa, é o verbo (poético e político) arrastando atrás de si o mundo em tropel, atemorizando os poderes e as cliques, bradando na praça da canção as palavras, as frases, os versos em que se começa a reconhecer a comunidade por vir da democracia que agora começa a renascer entre nós, quase 30 anos após a extinção da generosa chama de Abril. Alegre é a rosa da democracia, com a inscrição memorial (e pedagógica) da gota de sangue que os espinhos da ditadura historicamente provocaram. Aquela rosa da qual se pode apenas dizer que é uma rosa que é uma rosa que é uma rosa. Nas mãos do poeta-presidente. Nas nossas mãos dele. Sem vampiros que a roubem, por mais que tentem. Porque não passarão!

Da literatura, mas em sentido lato (sempre o melhor sentido)

Quis falar do assunto. Depois, por mero acaso, passando ali, encontrei este justíssimo protesto. Aprendi que os mapas são tudo menos assunto para geógrafos ― antes uma competência da literatura ― e, reconhecendo que não tinha nada que se comparasse para ensinar, desisti do intento. Aproveito só para fazer coro.