
- Já reparou, Groucho, no que está a suceder ao intelectual (perdão: ao não-intelectual) Pacheco Pereira?
- A que se refere, senhor?
- Ora, Groucho, anda distraído. Ao longo dos anos, como sabe, ele foi-nos facultando a sua periódica indignação contra a demagogia e o sectarismo dos média, não esquecendo a forma como os jornalistas se arrogam hoje o papel de consciências vigilantes, e punitivas, do espaço público, contra a sua degradação às mãos dos baixos, mesquinhos e vis interesses da política e dos políticos.
- Com carradas de razão, senhor, se me permite. Os jornalistas, como sabemos e sofremos, são reencarnações kantianas: o céu está sempre cheio de estrelas refulgentes acima deles, enquanto a lei moral os habita e possui.
- Admito sem custo, meu caro. Mas voltando ao intelectual (perdão: ao não-intelectual) frio. No papel de Grande Denunciador (alguma coisa lhe havia de ter ficado dos idos da revolução…), Pacheco Pereira lançou campanha atrás de campanha contra a hidra sulfurosa dos média, de que é, aliás, tão íntimo…
- Deixemos as denúncias, tão facilmente debordianas, de ambíguas conjugalidades no mundo do espectáculo, para os outros, senhor.
- Tem razão. Deixemo-las para o nosso não-intelectual. Como se lembra, até Timor lhe serviu para dar largas às suas razões: aquilo – a repressão, a resistência, o anseio de libertação – não era bem assim, pois na verdade tratava-se de uma mistificação dos média, que mais uma vez trocavam o seu dever de imparcialidade pelo terrorismo político e pelo sentimentalismo demagógico. «Um dia, dizia Pacheco Pereira, de dedo em riste e segurança histórica no sobrolho de coruja, eles vão-se entender com os indonésios, e depois eu quero ver em que ficamos… Sim, porque até a política oficial do Estado português anda hoje a reboque da internacional mediática pró-Timor…» Depois, foi o que se viu. E sobretudo viu-se como ele ficou caladinho
a posteriori, como se nada na fenomenologia histórica pudesse abalar a solidez dos seus
insights, mesmo quando a dita fenomenologia acabava de manifestar todo o seu desprezo por eles.
- Bem me lembro, senhor. Tanto me custou essa decepção provocada por uma das minhas referências político-intelectuais…
- É bem feito, que é para você ter juízo, Groucho. Mas reentrando em matéria, eis senão quando o advento presidencial do Messias de Boliqueime suscita na corporação mediática uma comoção só comparável à da defenestração do mesmo Messias, há uma década, por Guterres, na pessoa do
factotum Fernando Nogueira… E eis que, quando nós esperávamos que Pacheco Pereira denunciasse agora a falta de parcialidade que há 10 anos tanto o indignou, o que é que acontece? Acontece que o nosso homem nos oferece o espectáculo do seu copioso silêncio…
- [Groucho tosse por duas ou três vezes]
- Não acha que é caso para perguntar: atão e agora, pá? Por onde anda essa denúncia dos malefícios e perigos dos média para a paridade no tratamento informativo da agenda noticiosa? Que tem o nosso homem a dizer-nos sobre a já famosa emissão da SIC Notícias, desde o momento em que Cavaco saiu de casa até ao CCB e depois? Parecia uma daquelas emissões em que se acompanha o autocarro do Benfica, do hotel até ao estádio, enquanto a população agita as bandeiras do glorioso. Ou será que afinal tudo está bem quando a razão mediática coincide com a do mundo de Pacheco Pereira?
- Essa analogia com o Benfica é capaz de ser um bocadinho injusta, senhor.
- Não vejo porquê. Digo-lhe mais: é por isso que nunca seria capaz de ser do Benfica. É que não dá gozo nenhum ter permanentemente
A Bola, o
Record, a TVI e a Sport TV a puxarem pelo clube, ao mesmo tempo em que proclamam, mais ou menos histericamente, a independência e equidade do seu tratamento informativo (cruzes, canhoto!). Ora, eu estou convencido, meu caro Groucho, de que a malta dos jornais gosta tanto do Pacheco Pereira (sim, sim) que se ele lhes dissesse para tentarem moderar o entusiasmo, eles até lhe davam ouvidos. A começar pelos dois directores do
Expresso, por exemplo. Ouviu o Henrique Monteiro a defender a superioridade do discurso de apresentação de candidatura de Cavaco em relação ao de Soares, por aquele ter falado apenas 8 minutos? E como ele insistia no número mágico: 8 minutos! Dá ideia que é o máximo que o zapping, ou as suas consequências, hoje permite como atenção a um discurso. Mas se o futuro director do
Expresso só aguenta 8 minutos de discurso, como entender que esse mesmo jornalista de vez em quando se manifeste, como tanta gente hoje, no
Expresso e em todo o lado, contra a escola dos nossos dias, que não educaria para a atenção, a morosidade do trabalho, etc.?
- De facto, eu também não aguento o
Expresso por mais de 8 minutos, senhor…
- Como o compreendo, Groucho.
- Mas voltando ao Pacheco Pereira, senhor, creio que não lhe está a fazer justiça. Receio que o preconceito labore aqui contra a justa compreensão a que ele tem direito, se me permite.
- Preconceito? Justa compreensão? Enfim, você tem cada uma. Mas desembuche, homem, o que quer dizer com isso?
- É simples, senhor. Justamente por as posições dele sobre os média serem as que acabou de descrever, a ele só lhe resta, neste momento, o silêncio.
- Não o acompanho, amigo Groucho.
- Repare que o que está a acontecer com a pouco encapotada comoção mediática em torno de Cavaco («Ele vem aí! Ele está para chegar! Ele vai-nos salvar!») ratifica as teses de Pacheco Pereira sobre a conivência dos ditos média com os
ways of the world. Digamos que a situação é uma tão maciça corroboração empírica da teoria que ele só tem de ficar calado a saborear o seu triunfo. Permita-me que lhe adivinhe um sorrisinho enquanto vê a TV no sofá, ou lê os jornais.
- Percebo: um sorrisinho autopoiético, como diria o Luhmann…
- Nem mais, senhor.
- Pois, percebo, Groucho. Mas permita-me que lhe faça ver o reverso da medalha.
- Por quem é.
- Se o silêncio de Pacheco Pereira é a dicção negativa com que ele nos diz a mútua acomodação de teoria e mundo, então o mesmo silêncio deveria ocorrer sempre que essa acomodação feliz se verifica. Ora, como na lógica de Pacheco Pereira isso está sempre a acontecer, pois os média
são isso, ele deveria remeter-se a um silêncio perpétuo. Ter sempre razão implicaria estar sempre calado. O problema é que ter sempre razão é algo que só está ao alcance de posições teológicas (fideístas, pelo menos); ou melhor, é algo que equivale a não ter nunca razão.
- Percebo. O senhor está agora a invocar o fantasma popperiano da contrastação. A teoria de Pacheco Pereira não seria falsificável.
- Exacto. É uma teoria típica de um não-intelectual, meu caro Groucho. Ou, noutros termos, de um líder da opinião. Que, pela sua própria ontologia, não se pode dar ao luxo de estar calado, pelo que ele mesmo se encarrega de arruinar a perfeição lustrosa do seu edifício teórico. Ou, o que vale o mesmo, das suas consequências.
- Tenho de lhe confessar, senhor, que após esta conversa já não vou comprar o
Público. Fico-me antes pel’
O Jogo. Ao menos na imprensa desportiva ninguém finge que é imparcial.
- Ora, até que enfim que o vejo chegar-se à boa imprensa. E aos bons jornalistas. Vai ver que em breve perceberá as vantagens de trocar o José Manuel Fernandes pelo José Manuel Ribeiro. Desde logo em opulência de estilo…