13 novembro 2005

Alface, 6




















- Concorda que o Alface estralhaça a macacada toda…
- A macacada?
- Sim, personagem, narrador, fala, pensamento, enredo. Bate com as frases nas paredes antes de as deitar ao papel.
- E o que é que pode resultar daí? O quê?
- A deformação do romance.
- Ah bom! Pensei que fosse outra coisa…
- Veja, por exemplo, esta invocação, a páginas 155: «Prestar-se-ia lindamente esta ocasião a que as palavras nos faltassem.»
- O que é que tem?
- O gajo arreia na musa, Groucho, é o que tem. É violência poética pura!
- Escapa-me essa sua preferência alfacinha.
- Ora leia só mais esta:

«Enquanto o destino de Delfim Sardinha endrominava aracnideamente as linhas com que o historiador se coseria (ou seria cozido), António Leão inclinava-se à farmácia do Firmino a comprar um frasquinho de lágrimas. Um ou dois.

Por norma, em épocas normais, um frasquito durava-lhe três 15 dias. Desde porém que o Nobre Náldega (alcunha que D. Nelson Novaes nem sonhava lhe assentasse que nem uma luva) o expulsara da Lista para a nova Direcção do Rosa, Leão vira-se na contingência de aviar um recipiente lacrimal por dia.

Para poeta – convenha-se — António vertia pouco. Não significando tal um défice de sentimentos. Muito ao contrário: Leão fazia frequentemente suas as dores do mundo e comovia-se nisso para além do contável, assim enfileirando com os líricos da sua estirpe.

Só que o sentimento não arrastava a seus olhos o correspondente caudal choroso e o choriço, por se sentir discriminado, recorria ao vasilhame do Firmino com regularidade módica. Um poeta como ele, hábil de mão e coração, nunca aceitaria de bom grado traições da fisiologia.

Insuportável lhe foi, anos e anos, a ideia de o seu público o suspeitar fonte seca. Quando num amargo d’alma colocou certa noite o drama aos pés do seu amigo da botica, sentiu logo este o alfinete das fulgurâncias atravessar-lhe o pote encefálico. Acabava o botiqueiro de ter grande ideia. Mas calou-a e comandou: passa cá amanhã.

Ao outro dia, no abrir do estaminé deu Firmino de caras com o Tó Leão já de pé, impaciente pelo escancarar da loja. Atão?

Calmaria
, devolveu o prático levantando a grelha metálica que protegia a botica das ânsias nocturnas dos agarrados do quarteirão. Entraram.

Leão mal se tinha dos nervos e assistiu escandalizado ao período ritual com que o amigalhaço inaugurava funções. Vestida a bata, enroladas as mangas, descerrados os taipais, o botiquento extrai da malinha de couro um conta-gotas de plástico e pespega com o dito a um palmo da miopia do benfiquista. Qu’é lá isso, pá?

Firmino não podia sem mais nem ontem explicar (explicaremos nós à frente). Limitou-se a elucidar que ali trazia solução para as carências expressivas do outro. São lágrimas, Leão. Lágrimas (por assim dizer) de Portugal? Se quisermos...

O conteúdo da vasilha provinha directamente da inesgotável esposa dele (mas este é segredo a ficar muito bem guardado). Recapitulemos.» (Cá Vai Lisboa, 2004, pp. 120-121)

É de partir o coco!
- Mas que coco, Sr? Que coco?