22 novembro 2005

Pollock, a chave

dali não se via quase nada

dali não se via quase nada. estava escuro. apenas alguns raios de luz traçavam o contorno rectangular da porta. os objectos que enchiam o laboratório mal se podiam adivinhar. rodando a cabeça para a esquerda, conseguia seguir a aresta da bancada. um risco cinzento prolongava-se até se intersectar com a linha definida pela ponta dos pés. rodando a cabeça para o lado direito, e para trás, começava a localizar o lugar da janela na parede. estavam fechadas as portadas, mas a caixa negra em que dera por si ia agora ganhando sombras diferenciadas. as células dos olhos funcionavam perfeitamente, um pensamento suficientemente persistente para ficar registado na estação de trabalho.

Spam, 2














Para aqueles que têm mau hálito, não adianta camuflar com chiclete ou bala, que misturados ao odor só pioram o resultado. Com isso desenvolvemos um produto fora do comum, para aqueles que querem acabar rapidamente com esse problema. Halitox, além de auxiliar o fluxo salivar, ameniza bastante o hálito e tem como principal objetivo a remoção da saburra lingual. Acabe agora mesmo com seu mau hálito utilizando Halitox, que irá auxiliá-lo, deixando-o com um saudável frescor. Sabemos que o mau hálito, na grande maioria das vezes, não se constitui em um problema de saúde, e sim numa simples alteração fisiológica que termina por alterar o odor do hálito, que ao adquirir um odor ruim torna-se um grande obstáculo ao estabelecimento de relações sociais. Adquira agora mesmo o seu Halitox, sua boca vai sentir a diferença.

17 novembro 2005

Schwitters, cinzento e amarelo

não estava à espera disso

não estava à espera disso. uma dobra e depois outra. e outra. e ainda assim nada. nada deste lado. nada desse lado. não era uma curva que se pudesse seguir. ou uma linha ensimesmada. o rasgo que se abria mal se notava. seria uma ilusão óptica. um sombreado que escurecia ligeiramente a superfície. entre o plano de cá e o plano de lá, uma sutura pedia para ser distinguida. e produzia o olhar com que era percorrida. circunvolução que fagocitava o real, pulsava. os sensores davam-lhe a densidade do ar. estava quase pronto. os terminais nervosos retraíam-se a cada toque. quem diria?

16 novembro 2005

Tinguely, triciclo

Soneto 29

Quando, perante os homens e a Fortuna,
Chorar o mal da minha condição,
Num pranto alto que o céu surdo importuna
Com meu destino e minha maldição,
E me quiser mais cheio de esperança,
Como este trajar e amigos possuir,
Daquele a arte, doutro a abastança,
Mais tenho o que menos posso fruir;
No desprezo que a mim voto, todavia,
Penso no vosso, e neste estado meu,
Como na alvorada ergue a cotovia
Da terra triste o canto em hino ao céu.
Pois é tão rico o vosso amor lembrado
Que nem p’lo dos reis troco o meu estado.

William Shakespeare (tradução MP)

13 novembro 2005

Alface, 1




















- Boas!
- Ora viva, Groucho!
- Mais animado hoje?
- Animado?
- Quer dizer, com mais ânimo para enfrentar a adversidade…
- A adversidade?
- Vejo que já lhe passou a angústia.
- Sim, pode dizer-se que sim. Mas deixe-me perguntar-lhe: já leu o Alface?
- Bom, esse artigo não pode estar certo. E quanto a leituras vegetais, fico-me pelas folhas de chá. E de couve — se contarmos o Casmurro, claro.
- Está-me a baralhar.
- Não me admira. Não lhe parece que o verbo era comer?
- Que verbo?
- O verbo que regia a asterácea hortense!
- Groucho, por favor! Voltemos atrás.
- Mas se não fazemos outra coisa!
- O Sr. faz-me tonturas.

Alface, 2




















- Leu ou não leu?
- O quê?
- O Alface.
- A alface lê-se?
- Não é a, é o, Groucho.
- O Groucho?
- Não, Groucho, o Alface!
- E a Alface deixa-se ler?
- Ai se se deixa!
- E como é que se lê a Alface?
- Como é que há-de ser?
- Não sei… com a Pepino?… com a Tomate?… com o Cebola?…
- Se vamos por aí… olhe, lê-se com os olhos!
- Os olhos também comem, é bem verdade!
- Não é nada disso, Groucho. Alface é um escritor.
- Ao menos faça a concordância, Sr. Portela.

Alface, 3




















- A gramática tem sido respeitada até agora e já lá vão quase mil posts.
- Esse é que é o problema, sabe?
- O problema?
- Sim, o respeitinho a formas obsoletas.
- Então é essa a sua definição de gramática?
- Não sei se é, ou se não é. O que eu digo é: a gramática inventa-se!
- Não esperava ouvir isso da sua boca. O que dirão os outros retóricos do clube?
- Caguei.
- Cagou!? Um mal nunca vem só: vai-se a gramática e a civilidade no mesmo pontapé.
- Foi só uma força de expressão.
- Não sei que força pode haver na cagadela.
- Não era disso que eu estava a falar. O Sr. está sempre a desviar a conversa. Falar consigo é um combate perdido.
- Que combate?
- Sócrates e Diotima lutavam melhor.
- Mas era um diálogo platónico!
- Posso continuar ou não?
- Então eu é que decido isso? Se quer falar da alface, fale da alface!

Alface, 4




















- Avó Não Pise o Cocó.
- Acho bem!
- Um Pai Porreiro Ganha Muito Dinheiro.
- Ai ganha?
- Uma Mãe Porreira é Prá Vida Inteira.
- O Sr. lá saberá!
- Filhos Assim Dão Cabo de Mim.
- Até as crianças não lhe dão sossego, não é?
- A Prima Fica Por Cima.
- Sobre isso já não digo nada.
- Groucho, então não viu que era tudo em itálico?
- Bom, se começa a falar itálico… digo-lhe que nunca passei da iniciação.
- As Noites Brancas do Papa Negro.
- Diga-me que não está a falar itálico, por favor…
- Beijinhos.
- Beijinhos?
- Cuidado com os rapazes.
- Quais rapazes?
- O Fim das Bichas.
- Perdi a ponta. Baralhou-me, admito!
- Groucho, são os títulos do Alface!
- O quê? Vegetal e aristocrata?
- Já percebeu com certeza. Só não vê quem não quer.
- O quê?
- Cá Vai Lisboa.
- Ainda?
- E faltam Os Lusíadas.
- Os Lusíadas também?
- Sim, foi aí que tudo começou. Acho que quis registá-lo na Sociedade de Autores.
- Quem?
- O Alface. E parece que já tinham publicado qualquer coisa com esse nome.
- Azar!

Alface, 5





















- Como vê, a lista é extensa.
- Alface para todos os gostos…
- Deixe que lhe dê uma ideia do labor alfácico: «Para baratinar o minguado decidi também cerrar taipais mantendo uma frincha alerta só para apreciar o trombil do incontinente posto perante a ferrada plateia.» (Cá Vai Lisboa, p. 43) Topa a sarcástica facúndia, Groucho?
- Não topo nada, se quer que lhe diga. Repolhuda, mais do que alfacenta.
- Então repare bem nesta amostra: «Com desabrida berraria reabriu Delfim as pálpebras no momento em que uma falange descarnada estava prestes a vazar-lhe o globo. Num ápice deu mecha às solas. Nem tarde nem cedo. Um sopapo no longevo acusador e ala, ele aí vai com uma perna às costas.» (Cá Vai Lisboa, p. 93)
- Qual o motivo do entusiasmo?
- «Olhou estoirado em volta. A pouca e pálida luz da manhã esgueirava-se por clarabóia anoréxica.» (Cá Vai Lisboa, p. 115)
- Clarabóia anoréxica?
- «Pilar Boaventura e Delfim Sardinha nem deram por nada, de engalfinhados que estavam no necrotério, ao invés do doutor Justino que escamado atirou os aparelhos ao tecto quando os “arenques” por autopsiar começaram com a tremedeira a cair despedidos das prateleiras.» (Cá Vai Lisboa, p. 162)
- Poupe-me, Sr. Portela!
- «O rabo cetáceo tornava-se imensa beterraba roxa e a excitação da zurzida em breve se liquefaz num orgasmo-monção que encharcou a colcha azul-bebé.» (Cá Vai Lisboa, p. 173)
- E então? Frases respigam-se em qualquer lado.
- Não são só as frases que amalucam, Groucho. O enredo também é paródia satírica do mais hilariante. Veja lá: um despique entre a Academia Musical 25 do Corrente e o clube gay Rosa Tatuada para representarem Alfama nas marchas de Lisboa. Política local, filme policial, batalhas épicas, priapismo, ninfismo. Uma caricatura pegada.
- Uma salada de alface…
- Do Alface, Groucho, do Alface.
- Ou isso…

Alface, 6




















- Concorda que o Alface estralhaça a macacada toda…
- A macacada?
- Sim, personagem, narrador, fala, pensamento, enredo. Bate com as frases nas paredes antes de as deitar ao papel.
- E o que é que pode resultar daí? O quê?
- A deformação do romance.
- Ah bom! Pensei que fosse outra coisa…
- Veja, por exemplo, esta invocação, a páginas 155: «Prestar-se-ia lindamente esta ocasião a que as palavras nos faltassem.»
- O que é que tem?
- O gajo arreia na musa, Groucho, é o que tem. É violência poética pura!
- Escapa-me essa sua preferência alfacinha.
- Ora leia só mais esta:

«Enquanto o destino de Delfim Sardinha endrominava aracnideamente as linhas com que o historiador se coseria (ou seria cozido), António Leão inclinava-se à farmácia do Firmino a comprar um frasquinho de lágrimas. Um ou dois.

Por norma, em épocas normais, um frasquito durava-lhe três 15 dias. Desde porém que o Nobre Náldega (alcunha que D. Nelson Novaes nem sonhava lhe assentasse que nem uma luva) o expulsara da Lista para a nova Direcção do Rosa, Leão vira-se na contingência de aviar um recipiente lacrimal por dia.

Para poeta – convenha-se — António vertia pouco. Não significando tal um défice de sentimentos. Muito ao contrário: Leão fazia frequentemente suas as dores do mundo e comovia-se nisso para além do contável, assim enfileirando com os líricos da sua estirpe.

Só que o sentimento não arrastava a seus olhos o correspondente caudal choroso e o choriço, por se sentir discriminado, recorria ao vasilhame do Firmino com regularidade módica. Um poeta como ele, hábil de mão e coração, nunca aceitaria de bom grado traições da fisiologia.

Insuportável lhe foi, anos e anos, a ideia de o seu público o suspeitar fonte seca. Quando num amargo d’alma colocou certa noite o drama aos pés do seu amigo da botica, sentiu logo este o alfinete das fulgurâncias atravessar-lhe o pote encefálico. Acabava o botiqueiro de ter grande ideia. Mas calou-a e comandou: passa cá amanhã.

Ao outro dia, no abrir do estaminé deu Firmino de caras com o Tó Leão já de pé, impaciente pelo escancarar da loja. Atão?

Calmaria
, devolveu o prático levantando a grelha metálica que protegia a botica das ânsias nocturnas dos agarrados do quarteirão. Entraram.

Leão mal se tinha dos nervos e assistiu escandalizado ao período ritual com que o amigalhaço inaugurava funções. Vestida a bata, enroladas as mangas, descerrados os taipais, o botiquento extrai da malinha de couro um conta-gotas de plástico e pespega com o dito a um palmo da miopia do benfiquista. Qu’é lá isso, pá?

Firmino não podia sem mais nem ontem explicar (explicaremos nós à frente). Limitou-se a elucidar que ali trazia solução para as carências expressivas do outro. São lágrimas, Leão. Lágrimas (por assim dizer) de Portugal? Se quisermos...

O conteúdo da vasilha provinha directamente da inesgotável esposa dele (mas este é segredo a ficar muito bem guardado). Recapitulemos.» (Cá Vai Lisboa, 2004, pp. 120-121)

É de partir o coco!
- Mas que coco, Sr? Que coco?

12 novembro 2005

Intermitências da vida, 1

















- Groucho, bons olhos o vejam!
- Bem posso dizer o mesmo! Por onde tem andado?
- Sei lá. É uma aflição estes dias. E estas noites. Uma correria. Falta-me o ar.
- Não me diga…
- Mal me levanto e já estou a fechar os olhos outra vez.
- Isso não pode ser assim, Sr. Portela. Está com certeza a dramatizar.
- Não estou, não. E sabe o que é pior?
- O quê?
- Há pedaços inteiros que desaparecem.
- Pedaços inteiros que desaparecem?
- Sim, pedaços inteiros que não deixam rasto. Por exemplo, vou a guiar e reparo em mim a conduzir.
- E então?
- Não sei como cheguei até ali. É como se se tivessem desvanecido quilómetros e quilómetros, como se tivesse atravessado um buraco no tempo e no espaço. Há uma falha nesse percurso no chão do mundo. Nesse contacto.
- São intermitências da vida…
- Da vida ou da morte?
- Não sei, não sei…

Intermitências da vida, 2
















- Percebeu o que eu lhe disse?
- Tempus fugit!
- Não, Groucho. Não é nada disso.
- Falta-lhe o tempo, Sr. Portela.
- Não, já lhe expliquei. Não é o tempo. É o ar.
- Já me aconteceu. Isso é alguma insuficiência respiratória.
- Não é nada disso, Groucho. Já lhe disse.
- Mas o que diz o pneumologista?
- O pneumologista não diz nada.
- Mas não diz nada como?
- Não diz nada porque não há nada a dizer.
- Mas se lhe falta o ar…
- Falta-me o ar e falta-me o mundo, percebe?
- São intermitências da vida…
- Da vida ou da morte?
- Não sei, não sei…

Intermitências da vida, 3

















- Ausentou-se?
- Não, não me ausentei. Estive presente.
- Se esteve presente, não vejo como isso é possível.
- Estive, mas não estive em mim.
- Quer dizer que esteve fora de si?
- Não, também não estive fora de mim. Se assim fosse, ter-me-ia visto.
- Ter-se-ia visto?
- Sim, ter-me-ia visto a fazer o que estivesse a fazer. Ou simplesmente a ser.
- A ser o quê?
- A ser aí.
- Aí aonde?
- Aí no espaço-tempo. Parece que cada vez são mais frequentes…
- Mais frequentes?
- Sim, as desaparições, os hiatos, as brancas…
- São intermitências da vida…
- Da vida ou da morte?
- Não sei, não sei…

Intermitências da vida, 4
















- Telefonemas e mais telefonemas, papéis e mais papéis, posts e mais posts. E, no meio disso tudo, buracos. Buracos e mais buracos.
- Desculpe, mas não entendo.
- Imagine os seus gestos repetidos.
- Os meus gestos repetidos?
- Sim, Groucho. Chegar aqui todos os dias, ou de vez em quando, e não sentir que esteve cá. Faltar-lhe a consciência de si.
- Ah, mas isso falta-me sempre!
- Não é a isso que me refiro. Não é ao ventriloquismo. Sei que eles o põem a falar. Até eu às vezes caio nessa tentação. Mas felizmente o Sr. lá vai ripostando.
- Então a que espécie de inexistência se refere?
- Bem sei que a repetição organiza o mundo. Dá-lhe plenitude. E que a condição do sujeito é semelhante à da personagem. Mas não é bem isso que eu quero dizer.
- Então o que é? Como é que eu o hei-de entender assim?
- Não é o papel que me insatisfaz. É a chamada do real que deixa de se ouvir. O ruído de fundo que faz a intensidade do mundo desaparece. Percebe?
- Não percebo, mas parece-me que o seu é mais um caso de tropologista…
- Afligem-me estes rumores brancos, estes buracos no coração…
- São intermitências da vida…
- Da vida ou da morte?
- Não sei, não sei…

02 novembro 2005

Dia de todos os santos, 1



- Groucho, Groucho! Chegue aqui.
- O que é que se passa?
- Isso pergunto eu!
- ...?
- Este alvoroço, homem!
- Alvoroço?
- Sim, tanta sorna e agora isto!
- O quê, não me diga que esteve a emagrecer?
- Eu? Eu não.
- Então, foi à castanha?


Dia de todos os santos, 2




- Groucho, explique-me uma coisa.
- Diga lá!
- Tem andado por cá?
- De vez em quando, sim. Lá calha uma espreitadela.
- E então?
- ...?
- Quer dizer, não tem visto as paredes sem nada?
- Sim, pode dizer-se que sim. Meia dúzia de posts.
- A amarelecer. A enrolarem com a humidade.
- Uma pasmaceira pegada.
- Então como explica isto?
- Não sei, não sei.

Dia de todos os santos, 3



- E a lagartixa?
- Qual lagartixa?
- E o gafanhoto?
- Qual gafanhoto?
- E o castor adormecido?
- Qual castor adormecido?
- E o monstro do lago Ness ferradinho?
- Qual monstro do lago Ness ferradinho?
- Não me diga que não os viu?
- Eu não vi nada.
- E o clube de leitura?
- Qual, o de fãs?
- Não, o de leitura.
- Nunca ouvi falar.
- E o burro? O burro deitado?
- Vi um, mas estava de pé.
- Mas por onde tem andado, Groucho, por onde?
- Olhe, por aí, por aí... por onde quer que ande?

Dia de todos os santos, 4





- Ainda não consegui entender.
- O quê?
- O que se passou nesse dia.
- Não vou cair nessa armadilha.
- Qual armadilha, Groucho?
- Não seja sonso.
- Bom, estamos aqui os dois a falar civilizadamente.
- Isso é o que o Sr. diz sempre.
- Digo e faço. Ou antes: digo e falo.
- Está a ver? Está a ver?
- O quê?
- Essa tendência irritante para o trocadilho e para o quiproquó.
- Mas ainda não me respondeu.
- Nem respondo.
- Mas concorda que foi um dia crítico.
- Eu não disse? Estava-se mesmo a ver.
- Agora sou eu que não o estou a seguir.
- Foi o dia de todos os santos.
- De todos?
- Bom, se não foi de todos... foi pelo menos de São Silvestre!