09 março 2006

A morte absoluta

Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes! — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança duma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento.
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”

Morrer mais completamente ainda,
— Sem deixar sequer esse nome.


Manuel Bandeira, Lira dos Cinquent’anos (1940)

08 março 2006

Fogo-de-artifício 9 (reprise nocturna)

LM – Um silvo a cortar o ar frio da noite!
GR – Já viu, Clara, como o fogo sobe no ar!
CA – Já viu, meu querido Rubim, como a luz anuncia a chegada do som!
ABB – Lá no alto, chispas coloridas numa campânula de luz!
OMS – Uma tremenda expansão de energia contida!
PS – Depois um estouro, e depois outro, e outro, e outro, um rumor de estampidos.
FMO – Brancas, vermelhas, amarelas, azuis, as lágrimas cintilam em arcos de luz.
LQ – Um breve brilho brilhante bruxuleia.
MP – E as cinzas beijam o orvalho que as espera no chão.

Stadium




- Acenda aí, Groucho. Hoje acompanho-o.
- E aqui neste digestivo?
- Uma vez sem exemplo, mas sim.
(fumam e bebem)
- Grande adrenalina, não foi?
- E eu que nem sequer sou benfiquista.
- E tudo perfeito, não acha Mourão?
- Ah, estava a ver que nunca mais deixava o Sr. no tinteiro, Groucho!
- Hoje aprendi muito, amigo Mourão. Foi cá um dia! Mas você sabe, claro.
- Sabemos todos. (pensativo) Sabemos todos.
- E se quer que lhe diga, também um perfeito exemplo do porquê da produtividade nacional ser o que é!.. (riem ambos)
-
Mas ó Groucho, bem sabe que a criatividade não tem esses horários. Nós somos gente de passar os fins-de-semana a queimar pestanas e...
- Pronto, deixe lá isso, não era propriamente uma crítica.
- Claro, onde é que eu tinha a cabeça? (fumaça mais funda) Há muito tempo que não fumava!..
- Você é um bocado ascético, hein, Mourão?
- Isso era uma longa conversa... (pausa) Por falar nisso, aquilo lá por baixo é vivível, ou é mais como o Silvestre diz aí há uns posts atrás?
- Hum... Nem uma coisa nem outra, Mourão, antes completamente diferente. E mais não consigo dizer.
- Coisa só de experiência feita, estou vendo.
- De facto não está vendo, mas sim, é isso.
- E vai voltar de vez em quando, como agora?
- Não. Estou em trânsito, mas logo logo partirei de vez.
- Hum... E vai ainda, como dizer, despedir-se dos outros casmurros?
- De cada um à maneira de cada um.
Pausa. Groucho expele uma grande fumaça em arco, ficam os dois olhando e sorrindo.
- Aquele golo, Mourão...
- Pois...
- E tudo perfeito, reparou? O azar altíssimo dos ingleses, aquele Gerard enorme...
- E o público, que me diz daquele público? Aqueles cânticos logo depois da sentença do segundo golo, aquela nobreza...
- Um arrepio.
- Um estremecimento.
Fumam, bebem.

HIPER EXTRA! HIPER EXTRA!

O Groucho está no pé do Simão!
vocês viram aquilo, carago? e eu sou completamente azul, que não haja dúvidas acerca disso, mas vocês viram aquilo, carago? lembram-se de como o Groucho fumava? daquele modo de fazer o arco? ficava numa ponta do clube e mandava o fumo pelo janelão do meio, lembram-se? as volutas, os ornamentos, a leveza, a poesia? vocês viram aquilo, carago?

(viram sim senhor, que ninguém postou desde os dez minutos iniciais — isto sim, é um clube de cavalheiros sem pachorra para aquele cujo nome não devemos pronunciar!)

SUPER EXTRA! SUPER EXTRA!

Groucho era a alma de Alberto João Jardim!
Está parcialmente desvendado o mistério do desaparecimento de Groucho. Habitou a alma de Alberto João Jardim até à recusa deste em desfilar no último carnaval madeirense. Regressado dos mortos risíveis, tentou ainda enfiar-se num canto da alma daquele cujo nome não devemos pronunciar, mas o caminho era estreito e seco, e tudo indica que tenha perecido no insano intento.

ler mais desenvolvimentos aqui

EXTRA! EXTRA!

Fontes geralmente bem informadas asseguram que o Groucho — vulgo mordomo, vulgo aquela tendência marxista do mesmo nome, vulgo qualquer coisa assim — aceitou integrar a equipa da casa civil do Presidente da República, o tal cujo nome não devemos pronunciar.

Para o efeito, sujeitou-se a um processo completo — inquestionavelmente completo — de morte bloguística. Renascerá incognito nas suas novas funções.

Alento, pois, bom povo, pode ser que tudo aquilo ainda venha a ruir antes do tempo!
Ou — nem sei bem o que será melhor, quer dizer, pior — pode até acontecer que aquele cujo nome não devemos pronunciar seja inoculado de riso grouchista e a presidência entre em menoscabo.

(Ah, como é belo o paraíso visto pelas lentes de um post!)

Terapia breve

- Mas porquê?
- O diálogo. Pensando bem, a resposta mais simples é essa: o diálogo.
- Nunca tinha tido?
- Em parte, sim. Aliás, como tudo na vida: parece que é sempre em parte.
- Já está a elaborar, essa já não é uma resposta simples.
- Pois… Falar com o Groucho foi uma libertação. Não tenho outro modo de o dizer. Acha ridículo?
- Não tenho de achar, o que importa para já é o que você acha. Porque diz que seria ridículo? (pausa longa) Não pense tanto.
- Afinal de contas… Bom, afinal de contas era apenas um blog. Era apenas uma personagem. Será a vida assim tão desinteressante, que nos afeiçoemos a uma personagem a ponto de chorarmos a sua perda?
- Não sei, diga-mo você. Mas noto que faz uma distinção muito nítida entre vida e ficção.
- Pois… Mas percebe o que quero dizer.
- O que você me possa explicar é muito mais importante do que aquilo que eu possa perceber.
- Compreeendo. (pausa) Vai ser um bocado cansativo.
- A terapia é um processo de mudança e a mudança implica esforço.
- Seja. Não é que acredite muito... Mas por agora fiquemos por aqui.

Casa de férias 7 ou um crime deveras insolúvel

A acção decorre na véspera do infausto acontecimento marcado para dia 8. Nenhuma personagem está autorizada a pronunciar o nome daquele cujo nome não devemos pronunciar. Sala de estar fortemente iluminada. Mourão anda de um lado para o outro, por vezes vem à janela, respira fundo, abana levemente a cabeça, retoma a deambulação.
Som estridente da campainha. Duas vezes. Mourão vai abrir apressadamente. Entram dois homens. Não olham para Mourão nem lhe dirigem a palavra. Vão deambulando pela sala. Mourão regressa devagar, fala com um tom incrédulo e até um pouco medroso.

MOURÃO: Os senhores são quem eu penso que são?
UM: Sem dúvida.
OUTRO: Oui, Monsieur, não tenha disso a menor dúvida.
MOURÃO: Mas não é possível.
UM: Os tempos são outros. Os meios são outros. (aparte) Se bem que isto é um pouco bizarro.
OUTRO: Ora, Sr. Mourão, como pode pensar que a nossa presença aqui tenha o que quer que seja de estranho, se as circunstâncias não só a explicam como até a exigem?
MOURÃO: Mas quem os chamou? Os outros membros do clube?
UM: O caso foi-nos entregue, esse é o procedimento normal.
MOURÃO: A ambos? (dirigindo-se a Outro) A você também? Quem o contratou a si?
OUTRO: O importante agora é o caso, Sr. Mourão.
MOURÃO: Há qualquer coisa de errado... (pausa) Mas vamos lá tentar resolver isto de uma vez. (em tom decidido) Têm toda a cooperação que eu possa dar, mas ajudem-me a perceber, se é que sabem, a razão de estarem aqui. (dirigindo-se a Um) Inspector Maigret, quer ter a bondade de me dizer porquê?
MAIGRET: O crime aconteceu numa cidade de província, percebe, num bairro social... algumas pistas apontam para um crime fortuito, contendas com a vizinhança... numa palavra, vida empírica a mais, se é que me percebe.
MOURÃO: (em voz baixa) Disparate! (tom normal) Mas qual a relação entre Paris e um bairro social de uma cidade de província?
MAIGRET: O crime, Sr. Mourão. Naquele Paris os crimes eram muito classe baixa, psicologia previsível, procedimentos que...
MOURÃO: (interrompendo) Obrigado. (dirigindo-se a Outro) Sr. Hercule Poirot, quer ter a bondade?..
POIROT: Bien sur. Há também suspeitas de que o crime possa estar ligado ao clube. Um crime colectivo, são essas as suspeitas, para ser mais específico. Um crime envolvendo sem excepção toda a alta classe que passava pelo clube.
MOURÃO: Classe alta, o clube?!
POIROT: Alta classe intelectual, Sr. Mourão. Um crime intelectual perfeito. (Maigret desinteressa-se da conversa, Poirot entusiasma-se) Um crime único e perfeito: todos o mataram, incluindo o senhor, naturalmente, e afinal ninguém o matou.
MOURÃO: Não compreendo.
POIROT: Acredito que não. Mas acredite também que a sua responsabilidade é imensa. O senhor pô-lo a ler, a ver filmes, a passear, em férias… Enfim, repetindo o meu amável colega, demasiada empiria. Mas o ponto, bien sur, é que se todos o mataram, afinal ninguém o matou. Já estava morto há muito, Monsieur. Voilá.
MOURÃO: Mas então porque diz que todos o mataram? E se já estava morto, quem o matou? Ou de que morreu?
POIROT: Bien sur. (pausa; caminha até à janela) Ah, o mar…
(fica absorto, a olhar; Maigret regressa à conversa)
MAIGRET: Conhece bem as pessoas do prédio?
MOURÃO: Não.
MAIGRET: E os membros do clube?
MOURÃO: Pessoalmente, não todos.
MAIGRET: E os que conhece pessoalmente, quando os viu pela última vez?
MOURÃO: Já vai há uns tempos, ora deixe-me pensar…
MAIGRET: Um jantar, talvez?
MOURÃO: Não, acho que não…
MAIGRET: Uma amena cavaqueira regada a Barca Velha e a Mouchão 1988?
MOURÃO: Como não bebo, não dou muita…
MAIGRET: (interrompendo) Não bebe?!
MOURÃO: Quase nunca. Vinho, nunca gostei. De quando em vez, muito raramente, um licor…
MAIGRET: (em voz baixa) Era o que eu pensava. (normal) Mas então, a última vez que viu um dos membros do clube?.. Digamos, foi antes do Natal? Há mais tempo, há menos tempo?
MOURÃO: Há mais tempo, seguramente.
MAIGRET: Aí está.
MOURÃO: Aí está o quê?
MAIGRET: Não pode ter a certeza disto.
MOURÃO: Disto o quê, caramba? De que raio está você a falar?
(Maigret cala-se e acende o cachimbo. Poirot volta à conversa)
POIROT: O erro foi terem-no posto a falar, Monsieur.
MAIGRET: Porque é sabido: quando alguém começa a falar, em algum momento vai ter de calar-se. Enfim, é uma lei.
POIROT: E é muito diferente calar-se alguém que falava, ou continuar calado quem nunca falou.
(Mourão olha para ambos estupefacto, parece em transe. Maigret e Poirot falam como se não estivesse mais ninguém na sala)
MAIGRET: Deviam ter escolhido o Harpo.
POIROT: Voilá.
MAIGRET: Agora é tarde.
POIROT: Quel dommage…
MAIGRET: Acha que ele sobrevive?
POIROT: Não tem importância.
MAIGRET: Pois não, já não é connosco.
POIROT: Voilá.
(pausa)
MAIGRET: Vamos?
POIROT: Pra ?!
MAIGRET: Que ideia, claro que não! Não há lugar para nós. Completa empiria, aquilo.
POIROT: Pois, era o que me parecia. (pausa) Mas então, vamos para onde?
MAIGRET: Ora, para onde há-de ser? Vamos ter com ele.
POIROT: Claro, bien sur.
(pausa)
MAIGRET: Vamos?
POIROT: Vamos.
(não se mexem)

Fogo-de-artifício 1

LQ – Eles andam aí!
PS – Pois andam!
FMO – Eles quem?
LQ – E você de onde saiu?
FMO – Isso é comigo?
LQ – É consigo e comigo! Olha que merda!
MP – Chá! Chá! O chá está servido!
OMS – O chá não sei, mas a chacha já está de certeza…
MP – E o que é que isso quer dizer, vamos lá a saber?
ABB – E se vem a chacha, logo vem a chalaça…
CA – Cuidado! Que vem aí a chaleira!
FMO – A chaleira ou a chalaça?
LQ – A leste nada de novo!
FMO – Isso é comigo?
LQ – É consigo e comigo! Olha que merda!

Fogo-de-artifício 2

LM – Queimei a língua!
MP – Mas eu avisei que o chá estava a escaldar.
OMS – Sr. Portela, que espécie de deixa é essa?
MP – É uma deixa a andar!
CA – Então, senhores!, o Sr. Mourão queimou a língua!
GR – Quem anda à chuva molha-se!
ABB – Quem anda à chuva molha-se, Sr. Rubim? Não misture as metáforas.
LQ – Não é metáfora nenhuma. Olhem para a cara dele!
PS – Está aflito, coitado!
FMO – Queimou as papilas todas!
OMS – Sr. Portela, por amor de Deus, queimou as papilas todas? Queimou as papilas todas?
PS – O que tem a fala do homem?
FMO – Mas foi a fala ou foi a língua?
OMS – Tudo em prol da literatura dramática!
GR – Beckett e Ibsen. Sobretudo Ibsen!
CA – Faz bem em pôr água na fervura!
ABB – Pôr água na fervura, Clara? Não queime as metáforas. Guarde-as para melhor ocasião. [Puxa do caderninho de retórica e toma notas afanosas. Hipálage, aponta, com a ponta da língua de fora e o nariz em cima da folha.]
LQ – Não é metáfora nenhuma. Olhem para a cara dele!
PS – Está aflito, coitado!
FMO – Queimou as pupilas todas!
PS – Os olhos também?
MP – Os olhos não, porra! Via-se bem que era uma gralha, Sr. Oliveira!
FMO – Acha que fiz de propósito?
OMS – Tudo em prol da literatura dramática!

Fogo-de-artifício 3

LM – Queimei a língua!
MP – Outra vez?
LM – Isso pergunto eu!
MP – E como quer que eu saiba? Acaso moro na sua boca?
LM – Se soubesse que isto era assim, tinha ficado no multiplex!
LQ – Qual é o filme hoje, man?
FMO – Acho que é Estranhos no Telhado.
PS – Não, esse já foi. Hoje é Truz-truz, quem é?
GR – Truz-truz, quem é? ? Nunca ouvi falar.
OMS – E quem ouviu?
CA – Então, senhores!, o Sr. Mourão queimou a língua!
FMO – Bom, agora é tarde demais.
PS – A história segue o seu curso.
CA – O seu curso melancólico!
OMS – O anjo novo de Klee!
MP – Essa agora escapou-me!
ABB – E essa também!
PS – Tudo escapa!
FMO – Tubo escape!
LQ – Boa, Sr. Oliveira!, começa a entrar no espírito da coisa.
GR – Faço minhas as suas palavras!
PS – E eu as suas!
MP – E eu as minhas!
OMS – E quem faz suas as minhas?
CA – Eu é que não!
ABB – Usurpador-usurpado!
LQ – Perdão, obsevador-observado!
FMO – E isso significa o quê, hein?
LQ – Hibernador-hibernado!
FMO – E isso significa o quê, hein? Hein?
MP – O chá está na chávena!

Fogo-de-artifício 4

ABB – Estamos à sua espera!
LM – Nem pensem!
ABB – Mas acha assim tão mau?
LM – Experimente você!
ABB – Queimei a língua!
GR – Também?
ABB – Estava só a ensaiar.
CA – Mas eu avisei que estava a escaldar.
MP – Espere, que essa frase é minha.
LQ – Inda estão nisso?
ABB – Já expliquei que estava só a ensaiar.
OMS – Claro, um ensaísta ensaia.
PS – Um nick bloguista bloga.
FMO – Um street artist rua.
LQ – Um body artist bora lá.
CA – Bloga, rua, bora lá.
OMS – …da-se.
GR – Um actor actua.
LM – Um casmurro casmurra!
MP – Sr. Mourão, o que é que isso significa?
OMS – Segurem-me! Segurem-me!
CA – O que é que lhe deu?
GR – O mesmo que a mim!
CA – O que foi, Sr. Serra?
PS – Querem a morte do autor, parece-me.
CA – Mas isso seria matar o morto!
LQ – Morto ou não, caguei!, violência ritual nunca fez mal a ninguém.
FMO – Calma!
MP – Calma digo eu!
LM – E eu! que estava agora tão bem no multiplex!

Fogo-de-artifício 5

LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Tá-se bem!
MP (surpreendido) – O que faz aí em cima?
OMS (sarcástico) — Se calhar a didascália não lhe saiu das mãos?
ABB (conciliador) – Olhe que ele até a costuma dispensar.
FMO (acabado de chegar) – Dispensar quem?
GR (visivelmente irritado) – Talvez dispense a didascália, mas trocadilhos é um ver se te avias!
CA (olhando para o tecto) – Sr. Quintais, pendurado outra vez!
LQ (irónico) – Bem o pode dizer!
MP (atrapalhado) – O que é que eu hei-de fazer? Os Senhores e a Senhora não me dão tempo!
PS (entrando sem se fazer notar) – Tire-o dali!
LM (exortativo) – Realmente, isso não se faz! E já há precedente.
GR (escarnecedor) – A redundância é a mãe da invenção.
FMO (espantado) – Pensei que fosse a necessidade!
CA (impaciente) – Ora, Sr. Oliveira!
MP (insistente) – Quando cheguei ele já lá estava. Eu nem tinha sequer deitado as mãos ao papel.
OMS (mordaz) – Deitá-las ao papel, nem eu diria melhor — agora à obra, isso é que já não está nas suas mãos.

Fogo-de-artifício 6

ABB (pensativo) – Anáforas e epanáforas!
PS (intrigado) – Anáforas e epanáforas?
ABB (explicativo) – Sim, sim. É o truque dele.
OMS (indignado) - Truque? Isso é dar crédito demais à criatura. Ele sabe lá o que faz!
FMO (sempre oportuno) – De quem é que estão a falar?
LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Tá-se bem!
LM (fazendo avançar a acção) – E o que fazemos com aquele lá em cima?
PS (virando-se para ABB) – Mas ainda não percebi a descrição do método.
GR (zombando) – É Stanislavsky à procura de Pirandello.
FMO (inquisitivo) – Ai é? Deve ser uma coisa nova. Pensei que aqui só se praticava Brecht.
CA (corroborante) — E eu, que era só absurdo!
OMS (contundente) — Do absurdo é que não é! Mas lá que tem qualquer coisa a menos, disso nunca tive dúvidas!
LM (fazendo avançar a acção) – Do corpo, não vos parece?
PS (a testa franzida em sinal de ponderação) – Da palavra, diria eu.
ABB (triunfante) – Ora, era aí que eu queria chegar!
FMO (vingando os desaires anteriores) – Mas não foi aí que começou?
GR (galhofando) – O eterno retorno é a origem da tragédia.
PS (pronunciando as sílabas com gravidade) – Ou-tro mé-to-do? Mas o homem é inesgotável.
CA (desafiadora) – O problema persiste: como interpretar a Personagem no Candelabro?
FMO (olhando para o tecto) – Mas a peça já tem título, é?
ABB (à beira de perder as estribeiras) – Viu algum itálico, viu? Por acaso viu algum? Viu? Viu?
LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Tá-se bem!
LM (fazendo avançar a acção) – Mas o Sr. não consegue dizer outra coisa?
LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Conseguir, consigo! O problema não é esse.
FMO (interrogativo) – Mas que é dele, que não aparece?

Fogo-de-artifício 7

(pensativo) (apresentando-se) – Pensativo. Tenho estado a ouvir. Abel Barros Baptista? O das epanáforas?
ABB (solícito) – Precisamente! O próprio, ao seu dispor.
(pensativo) – Estes diálogos são curiosos. É pena os parêntesis.
ABB (intrigado) – Os parêntesis?
(intrigado) – Sim. Não nos deixam ouvir bem. Intrigado, muito prazer.
ABB (cortês) – O prazer é meu.
PS (ligeira vénia) - E meu.
(ligeira vénia) – Já agora. Deixe-me apertar-lhe a mão.
OMS (indignado) – Aperte-lha! Aperte-lha, a ver se pára.
PS (fazendo conversa) – E diga-me, de onde vem o seu apelido?
(ligeira vénia) – Nem sei bem, já está na família há várias gerações. Sei que o meu tetravô já era vénia.
(intrigado) – A linhagem é até muito conhecida.
(pensativo) – Nunca me falou disso.
FMO (sempre oportuno) – De quem é que estão a falar?
LQ (baloiça, suspenso do candelabro) – Tá-se bem!
LM (fazendo avançar a acção) – Há que pôr um ponto final nisto.
GR (enfadado) – Lá por isso. Põe-se um ponto final.
CA (aliviada) – Finalmente, vou poder descansar.
(aliviada) – E eu também!
PS (conformado) – Custou, mas foi.
ABB (saudoso) – Os caderninhos é que foi pena!
FMO (interrogativo) – Mas que é dele, que não aparece?
OMS (desdenhoso) – Se calhar, queriam mais chá?

Fogo-de-artifício 8

LM – Um silvo a cortar o ar frio da noite!
GR – Já viu, Clara, como o fogo sobe no ar!
CA – Já viu, meu querido Rubim, como a luz anuncia a chegada do som!
ABB – Lá no alto, chispas coloridas numa campânula de luz!
OMS – Uma tremenda expansão de energia contida!
PS – Depois um estouro, e depois outro, e outro, e outro, um rumor de estampidos.
FMO – Brancas, vermelhas, amarelas, azuis, as lágrimas cintilam em arcos de luz.
LQ – Um breve brilho brilhante bruxuleia.
MP – E as cinzas beijam o orvalho que as espera no chão.

07 março 2006

1281

- De momento, o número que marcou não está disponível. Por favor, deixe a sua mensagem após o sinal.
- Groucho, sou eu outra vez. Afinal não me ligou. Ouviu a mensagem? Se calhar nem ficou gravada. Já me aconteceu, sabe? Começa-se a falar, a falar, a tentar encontrar as palavras, a sentir os silêncios, a preenchê-los, a preenchê-los, parece que quanto mais se fala mais eles aumentam e depois já não se consegue parar, fala-se, fala-se, e começa-se a repetir, a repetir, parece que não se sai do mesmo lugar. Não me diga que já não sentiu isto? Mas isso nem é o pior. O pior é que nessa ânsia de falar e de abolir o silêncio e de repetir e de encher tudo de sinais, sim, encher tudo de sinais, transformar cada palavra, cada gesto, cada objecto, num sinal, nessa ânsia de falar diz-se o que não se queria dizer, percebe? O que não se queria dizer não enquanto desconhecimento do que se queria dizer e se descobre no acto de dizer, não, nada disso, mas sim o que não se queria mesmo dizer e só a ânsia de falar e de abolir o silêncio e de repetir e de encher tudo de sinais nos leva a dizer, percebe? A palavra tem uma agenda escondida. Um inconsciente? Não, não é bem um inconsciente, porque a linguagem sabe bem o que faz. É da sua natureza. Ser assim, insidiosa, infiltrar-se. No aparelho fonador, no cérebro, nos dedos. E deitar tudo a perder. Falar através de nós. Não de uma forma mecânica, nada disso. É muito mais esperta do que isso. Começa branda e doce, ao ponto de se confundir connosco. Mas não. Está sempre à espreita. E quando damos por ela, pronto, já está, dissemos o que não queríamos dizer. É uma lógica implacável, sabe? Começa-se a falar, a falar, a tentar encontrar as palavras, a sentir os silêncios, a preenchê-los, a preenchê-los, parece que quanto mais se fala mais eles aumentam e depois já não se consegue parar, fala-se, fala-se, e começa-se a repetir, a repetir, parece que não se sai do mesmo lugar. Mas não. Avança-se, avança-se sempre. Sem saber para onde. Diga-me, isto também se passa consigo? Seria isto que eu lhe queria perguntar? Não, não era com certeza. Bom, nem sei bem o motivo da chamada. Mas ligue-me, ligue-me quando puder.

05 março 2006

1275



- De momento, o número que marcou não está disponível. Por favor, deixe a sua mensagem após o sinal.
- Sou eu, Groucho. Não vou dizer o meu nome. Há-de reconhecer a minha voz na gravação, com certeza. Ou não? Às vezes, até a mim me soa estranha. Tenho tentado apanhá-lo, mas ninguém sabe onde pára. Pelo que leio, as suas férias têm corrido bem. Ao menos arranjou com quem conversar. E farta-se de ir ao cinema. E de passear à noite. Eu é que não posso dizer o mesmo. É uma canseira a engolir-me os dias e nunca percebi para quê. Um derrame de sangue. Um dom sem destino. Já há algum tempo que não conversamos, sabe? Vai-me dizer que nunca falámos. Que não me conhece. Que foi tudo imaginação minha. Olhe, eu próprio cheguei a pôr essa hipótese. Mas vi logo que não, que não podia ser. Que era delírio. Que era delírio pensar que era imaginação. Bem sei que isto foi ficando vazio, é verdade. Terá tido ecos disso, estou certo. Mas ainda há pouco conversámos os dois. Dirá que nos malentendemos quando muito. Talvez, mas essa era a nossa maneira de conversar. E até o que falha tem o sabor do amor. Sabe por que lhe estou a ligar? Imagino que não. Nem eu sei bem. Espero que saiba ao menos quem lhe está a ligar. Colaram um cartaz aqui na parede. Foi você? Isto era uma das coisas que lhe queria perguntar. Acho. Já nem me lembro da outra. Tenho de voltar a ligar. Ou então, ligue-me quando ouvir a mensagem. Espero que este seja o seu número. Não tenho outro. Adeus, Groucho.

03 março 2006

Casa de férias 6, adenda final

Mesa encostada à janela, de noite. Chove. A luz vem de fora, mas há também duas velas minúsculas na mesa. Jantam. Em fundo, música do último verão. Falam alto, animadamente.
— Afinal, você é mesmo um metafísico de todo o tamanho, ó Sr. Mourão!
— Nada disso, Groucho. Estava apenas a sublinhar que isto é tudo forma, matriz.
— Eu não digo? Até o Matrix lhe serve!
— Matriz, Groucho, matriz, não confundamos. Mas deixe-me pôr as coisas noutros termos.
— Ponha, ponha. E deite aí um bocado mais de massa. Disse que isto era tricolor integral?
— Qualquer coisa assim. Esses canudinhos verdes são de espinafre, os laranja de cenoura, os castanhos acho que é só trigo ou lá que coisa é a massa.
— A gente come a realidade, mas não tem de saber o que é a realidade, certo?
(riem ambos)
— Mas então deixe-me pôr as coisas assim, Groucho: é como se a arte fosse um jogo de dados. Mas digamos que em vez de você lançar dois dados, lança vinte. E que cada dado, em vez de ter seis faces, tem doze.
— Mas ó Sr. Mourão, você sabe matemática suficiente para o raciocínio que me parece que aí vem?
— Nada, Groucho, usemos apenas a imaginação. Um jogo assim tem combinatórias que cheguem para o universo inteiro, mas suponho que matematicamente, ou será estatisticamente?, é possível dizer-se que todas as combinatórias acabarão por sair.
— Suponhamos que sim.
— Chamemos a isso a lei interna do jogo. Para que as combinatórias se realizem, é preciso apenas que alguém lance os dados.
— Boa piada, estou a ver. Mozart e Picasso e Joyce como jogadores de dados...
— Mas o ponto é que desde que alguém lance os dados, não importa quem, as combinatórias saem.
— E por isso você diz que se Mozart não tivesse existido, um outro compositor, ou um conjunto de compositores, teriam necessariamente realizado todas as obras que Mozart realizou.
— Nota por nota, Groucho.
— Não posso dizer que esteja convencido, nem que não seja metafísico. Mas isso deixa-o a si em que lugar do jogo?
— Como assim?
— Você vai lançar os dados, Sr. Mourão?
— Mas é isso que lhe estou a explicar, Groucho, a pergunta, como pergunta de responsabilidade por um destino qualquer da arte, não tem sentido. Podemos jantar tranquilamente, está a ver?
— Sim, mas em relação a si, só a si mesmo?
— Ora, Groucho, já viu quantos milhões somos, hoje? De alguma forma, todos nós lançamos os dados. Sai muita coisa repetida, não vale a pena perder o sono com isso.
— Um metafísico tranquilo, estou a ver.
— E que tal este tofu, Groucho? Não comia disto lá no clube, pois não?
Continuam a falar alto, animadamente. Não voltam ao assunto.

Casa de férias 5, adenda final



— Ainda preocupado com o kairos, Groucho?
— De todo. Percebi qual é a grande vantagem, ou pelo menos uma das grandes vantagens, da literatura e da arte face à vida.
— Ora venha de lá mais um lugar comum...
— De facto, será um lugar comum. Mas sabe que isto de vir a ser comum também tem muito que se lhe diga...
— Vá, corte os apartes, ao menos que alguém no clube vá directo ao assunto.
— A literatura permite sempre uma terceira inúmera oportunidade.

Casa de férias 4, adenda final


(...) A manhã não é o sol,
É esta atitude dos nervos,

Como se um intérprete obtuso agarrase
Os matizes da viola azul.

Tem de ser esta rapsódia ou nenhuma outra,
A rapsódia das coisas como são.


— Vejo que voltou ao poema original do Wallace Stevens, Groucho.
— Bem prega Frei Tomás...
— E isso quer dizer?..
— Então depois da sua conversa nocturna de ontem, vem-me dizer que voltei ao poema original?
— Queria apenas dizer que...
— Eu percebi, mas o Sr. Mourão é que talvez não. É evidente que não é o mesmo poema. É o mesmo poema depois de eu o ter transformado e destransformado de volta. Faz uma grande diferença.
— Por exemplo?
— Ora olhe bem para lá: não se percebe melhor agora que toda a carga não está na rapsódia das coisas como são mas nos nervos do não sei quantos obtuso?
— Intérprete obtuso.
— Não sei quantos obtuso: wallace obtuso, vergílio obtuso, qualquer um por vir obtuso.
— Se você acha, Groucho...

02 março 2006

Casa de férias 6, variação



Sala às escuras, iluminada apenas pela luz de fora que entra pela janela. Bebem licor. Olham sempre para a janela, nunca um para o outro.
- Ouça... (pausa) Aquela coisa do poema não é para levar a sério.
- Ora, Groucho, deixe-se disso.
- Mas deixo-me disso porquê? Porque não me levou logo a sério ou porque...
- (interrompendo) Porque isso não interessa coisa nenhuma, se você se levou a sério ou não. Quando muito interessará numa alínea qualquer da psicologia da criação...
- ... ou da ilusão da criação...
- ... mas o que interessa é o que ficou escrito, e isso já não é nada consigo. Só com quem lê.
- Não é meu?
- Para algumas coisas laterais e civis, digamos assim, seria sem dúvida seu. Para o que interessa a quem lê, passou através de si, pouco mais.
- Mas ter passado através do Vergílio Ferreira não é a mesma coisa que ter passado através de outro, pois não?
— Não, seguramente não. (pausa) Coloque a hipótese de que «passar através de» dará o mesmo resultado que transcrever uma música para outros instrumentos ou outro tipo de agrupamentos.
— Hipótese perigosa, Sr. Mourão. Entrevejo uma origem metafísica, um uno, o um, qualquer coisa por esses lados... Nunca ouvi tal coisa no clube...
— Nem o ouvirá de mim, Groucho. Transcreve-se as coisas como são, e tudo o que sabemos do como está nas várias transcrições. Mas sobretudo, sublinhe coisas.
— Pluralidade irredutível...
— E estúpida alegre angustiante enigmática fascinante, essa treta toda até ao fim dos confins e ainda mais para lá... Bom, respira-se melhor assim, enquanto valer a pena respirar.
— O licor é bom...
— E a noite vai de feição, Groucho. Já viu o silêncio que há no prédio?

Casa de férias 5, variação



- Mas claro que pode fazer, Groucho, porque não haveria de poder re-escrever tudo o que existe?
- Não é o poder da potência a que me refiro, é o poder do kairós...
- A oportunidade?
- Sim, a oportunidade. Mas um pouco mais do que isso, também. Alguma coisa parecida com a oportunidade coincidir com o destino.
- Percebo. Quer dizer, parece-me que o percebo. Mas nesse caso esqueça a questão.
- E porquê, se é que se pode saber?
- Porque é uma questão da crítica, não do escrever.
- Mas escrever não é desde logo a crítica de tudo o que foi escrito?
- Claro, Groucho, tem toda a razão. Crítica e homenagem e outras coisas que podemos ler nos ensaios e que os autores sabem muito bem, mesmo que não o saibam segundo a linguagem dos ensaios. Mas escrever só começa depois.
- Depois?
- Depois. (pausa) O problema é que nunca se sabe exactamente quando é que começa o depois. Ou quando já começou a ser depois.
- Percebo, só se sabe muito depois do depois já ter começado.
- É assim que as coisas são.
- Porque são como são.
- Porque são como me são.
- Foi o que eu disse.
- Este silêncio chega-lhe, Groucho?

Casa de férias 4, variação





(...) A manhã é o sol,
Não esta atitude dos nervos,

Como se um intérprete obtuso agarrase
Os matizes da viola azul.

Não tem de ser esta rapsódia nem nenhuma outra,
Apenas a música das coisas como me são.



Variação do Groucho a partir de Wallace Stevens, O homem da viola azul (1937)
depois de uma longa conversa nocturna com o Sr. Mourão acerca de Vergílio Ferreira

01 março 2006

Casa de férias 6


Mesa encostada à janela, de noite. Bebem chá em silêncio.
Groucho levanta-se e vai lá dentro. Traz «O homem da viola azul», que coloca no parapeito da janela. Faz um gesto, como se fosse iniciar uma frase, mas continua calado. Bebe mais chá. Aponta o livro.

— Se tivesse de falar aos seus alunos sobre as “coisas como elas são”...
(interrompendo) Não tenho.
— Mas se tivesse...
— Não tenho, porque os alunos são tudo menos as coisas como elas são. (pausa) E era você quem queria falar.
— Pois, o kairos... Talvez noutra altura. (pausa longa) Acha que amanhã de manhã haverá silêncio que chegue?

Mourão encolhe os ombros. Acabam o chá. Groucho pega no livro, folheia, lê de onde a onde. Mourão pergunta, olhando para a janela.

— Sabe que faz hoje dez anos que morreu o Vergílio Ferreira?

Groucho fica a olhar para ele. Não diz nada.

Casa de férias 5


- Mas claro que pode falar, Groucho, porque não haveria de poder?
- Não é o poder da potência a que me refiro, é o poder do kairós...
- A oportunidade?
- Sim, a oportunidade. Mas um pouco mais do que isso, também. Alguma coisa parecida com a oportunidade coincidir com o destino.
- Percebo. Quer dizer, parece-me que o percebo.
- Por isso lhe perguntava se podia falar, uma oportunidade e um destino serão a coisa mais solitária do mundo, mas dirigida sempre àquilo que não somos nós.
- Mesmo que se trate de falar de um poema...
- Sobretudo se se trata de falar apenas de um poema.
- Ah, apenas... Nesse caso é preciso criar um silêncio muito grande, melhor logo à noite.

Casa de férias 4




(...) A manhã não é o sol,
É esta atitude dos nervos,

Como se um intérprete obtuso agarrase
Os matizes da viola azul.

Tem de ser esta rapsódia ou nenhuma outra,
A rapsódia das coisas como são.


Wallace Stevens, O homem da viola azul (1937)
Trad. de Maria Adelaide Ramos
Relógio D'Água, 2005