31 agosto 2005

Menino

— Graças a Deus, ainda bem que o apanho aqui…
— Por pouco tempo, estou de saída. Aconteceu alguma coisa?
— Mais ou menos, mais ou menos. Mas diga-me, o que há de errado em tratar a… menina Clara Antunes por… menina… menina Clara, quero dizer?
— Acho que nada, porquê? É formal, modalidade entre o respeitosa e o carinhosa, pode ser familiar, até tradicional… se bem que equívoca em certos contextos. Mas neste, dita por si… não, não vejo problema. Não me diga que ela não gosta…
— Bom, ela, a bem dizer, nunca me disse nada, nem que sim nem que não… tem havido outros, é mais os cavalheiros. Ainda há pouco o Sr. Rubim telefonou só para se meter comigo: e desatou a tratar-me por menino Groucho…
— Boa piada, essa, acho que vou seguir o exemplo dele. Menino Groucho: é bom, muito bom mesmo.
— Mas eu recuso, repudio, rejeito, não tolero…
— Ora, Groucho, deixe-se disso, não adianta. As formas de tratamento são formas de poder, ou melhor, quem tem o poder decide a forma de tratamento. Fica menino Groucho. Está decidido.
— Mas o senhor agora é que manda?
— Que manda ou quem manda?
— Responda, por favor: alguém o fez chefe?
— Não, não sou chefe, não mando nada, claro que não — foi um delírio. Um delírio terrível. Desculpe-me, Groucho, foi lastimável, muito lastimável. Que coisa…

De hominis dignitate

























Excerto do já histórico discurso em que Manuel Alegre, em Viseu, numa reunião prandial de apoiantes (a 30 de Agosto), renunciou à candidatura à Presidência da República:


Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
D’ua austera, apagada e vil tristeza.

Gauguin pintando de encomenda para um blog de "coisas simples"

A vingança

― Está?
― Estou sim, Clube Casmurro, boa tarde. Quem fala, por favor?
― Rubim.
― Sr. Rubim, como vai?
― Bem, obrigado. E o menino Groucho, passou bem?
― Si… Como disse?! “Menino”?!
― Então não é como devemos tratá-lo agora? Menino Groucho?
― Oiça… O senhor faça o favor de não… Olhe que eu…
― (Explode a rir.) Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah!... Menino, menino Groucho... eh! eh! eh! eh! eh!
― Ria, ria para aí, se lhe dá gosto. Antes isso que chorar.
― (Contém-se.) E a Clarinha, está boa?
― A Don… a men…a senh…sim, a Clara está…
― (Interrompendo-o.) Ih! ih! ih! ih! ih! ih! ih!... Ó homem, páre, quer que eu me desmanche aqui a rir ou quê? Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah!

O Blindfold Test do Groucho (última sessão)

- Ah, menina Clara, nem imagina como me alegra poder ainda integrá-la no naipe de participantes no meu Blindfold Test!
- Parece-me uma reacção um tanto excessiva e sobretudo prematura…
- Ah não, menina Clara! Pior do que isto tem sido não é possível.
- Admito, mas se não se importa, Groucho, gostava de lhe colocar uma questão preliminar.
- Com certeza, menina Clara. Ao seu dispor, agora e sempre!
- Pois, a questão é justamente a forma como o Groucho me trata aqui no clube. «Menina» Clara para aqui e para ali, «agora e sempre» e outras fórmulas de uma cortesia um tanto deslocada… Não posso deixar de notar que trata os restantes casmurros por «Senhor» e a mim me destina a «Menina». Como também não posso deixar de notar essa cortesia que apenas reserva para mim, pois com os outros membros do clube a coisa descamba com frequência para uma certa agressividade.
- Mas, Menina Clara… Quero dizer: Senhora Dona Clara. Perdão: Senhora Clara… É tudo com a melhor das intenções, peço-lhe que acredite!
- Não ponho em causa, Groucho. E nem me agrada um tratamento tão formal como esse de Senhora (quanto à Senhora Dona, desculpe lá, mas isso é coisa do Estado Novo). Agora, Menina, atendendo à minha idade e ao meu estatuto de ex-donzela há muito, é que me custa a suportar. Prefiro que me chame apenas Clara. E que guarde esses excessos de deferência para outras pessoas, pois a mim isso incomoda-me. Quer como mulher, que aprecia outros tipos de tratamento (não sei se me faço entender…), quer como estagiária deste clube…
- Mas, Menina… Perdão: Clara. Deixe-me protestar a minha inocência. Eu respeito-a de corpo e alma!
- Agrada-me que também meta aí o corpo, mas sucede que eu tendo a rejeitar manifestações de respeito desse teor. E de corpo e alma, também.
- Eu… Por favor… A Menina… Perdão, a Clarinha. Perdão! Mil vezes perdão! A Clara deixa-me sem fala.
- Se calhar, enquanto está sem fala eu posso ir lendo o poema, não?
- O poema?!... Ah sim, o poema! Aqui está, aqui está. Faça a Menina o obséquio… perdão, Clara…
- Obrigada. Ora deixe cá ver.


AS DUAS IRMÃS CHOLMONDELEY DA TATE GALLERY


Biodegradáveis como a arte

Macabras como fotocópias
de Maria e do bebé

Limão do Entroncamento
dupla esfinge
para os turistas

Quatro trompas de Falópio contentes
que nem ratos

(Eram gémeas
e deram à luz
no mesmo dia
do século XVII)


- Se a Clara me permite, eu gostava de dissipar…
- Escusa de dissipar o que quer que seja sobre o poema pois sei bem quem é o autor. Ou antes, a autora.
- Como?... Pra dizer a verdade, não era isso que eu queria dissipar, mas… Sabe quem é a autora?
- Claro, é fácil: é da Adília Lopes. Não me lembro ao certo do livro, mas é um dos melhores dela.
- Nem acredito que alguém tenha conseguido acertar na resposta! A Menina, de facto! Perdão… Mil vezes perdão!... Bom, o livro é o Clube da Poetisa Morta, de 1997.
- É esse, é. A Adília é uma das nossas grandes poetas na área da poesia ecfrástica (o que nem é bem o caso aqui) e, mais latamente, da reflexão sobre as artes. Claro, fala-se mais do Graça Moura, que é uma espécie de Museu ambulante e falante (é uma espécie de «Abrupto» avant la lettre…), mas olhe que ela… Deixe-me ir ali à Biblioteca buscar a Obra dela para lhe ler um excerto a propósito. [Levanta-se e percorre as estantes].
- [Groucho tartamudeia, sem parar] Pior a emenda que o soneto! Só fazes asneiras, grande palerma! Agora, aquela do ex-donzela há muito é que eu não esperava… E eu a julgá-la a Beatriz…
- [Clara regressa] Ora oiça este excerto de um poema da Adília chamado «Um figo»: «Deixou cair a fotografia / um desconhecido correu atrás dela / para lha entregar / ela recusou-se a pegar na fotografia / mas a senhora deixou cair isto / eu não posso ter deixado cair isto / porque isto não é meu / não queria que ninguém / e sobretudo um desconhecido / suspeitasse que havia uma relação / entre ela e a fotografia / era como se tivesse deixado cair / um lenço cheio de sangue / porque era ela quem estava na fotografia / e nada nos pertence tanto como o sangue». Que tal, menino Groucho?
- A Menina… Perdão… A Clara brinca com coisas sérias. Para o meu gosto, a analogia entre a representação e o sangue é um bocado forte. Ou extemporânea.
- Acha? Para uma mulher, a coisa é uma espécie de «universal», sabe? O memento cíclico da nossa condição animal de «ser para a maternidade», o dilema de desejar que isto acabe e saber que, quando acabar, também a juventude do nosso corpo acabará, pois cessará a sua capacidade de renovação. Aliás, sabe o que diz a Adília sobre tudo isto?
- Temo não poder escapar-me…
- Pois não: «quanto a comentários / a poesia e a menarca / são parecidas». Por isso mesmo, vou ser parca nos comentários ao poema dela. Sabe que um dos aspectos mais interessantes da poesia «ecfrástica», lato sensu, da Adília, reside na escolha dos objectos artísticos tratados. O Groucho conhece o quadro em causa?
- As «Cholmondeley Sisters»? Confesso que não.
- Eu mostro-lho aqui no computador. Deixe-me só googlar um pouco… Aqui tem. Diga lá se não é extraordinário!
- Deveras extraordinário…
- Pois é. Os outros tratam de Rafael, Botticelli, El Greco, Goya, as evidências. A Adília descobre isto. E a partir daí, assistimos à manifestação de uma das grandes «figuras» da sua obra: o duplo: «Gémeas», «Dupla esfinge», «Fotocópias», «Quatro trompas de Falópio». Notável, a deflação do sublime feminino naqueles versos «Quatro trompas de Falópio contentes / que nem ratos», não? Diz-se tanta tolice sobre ela, e nunca se diz que é uma «Autora», no sentido em que os jovens turcos dos Cahiers falavam do Hitchcock ou do Hawks: alguém que tem e faz mundo. Mas já agora, e ainda que mal pergunte, Groucho…
- Diga, Men… Clara.
- Não posso deixar de reparar que até aqui o seu teste apenas recorreu a poemas de autores homens. Houve pós-coloniais e tudo, mas sempre homens. Agora, de súbito, é só mulheres: a testada e a poeta.
- Uma coincidência, Clarinha… Perdão, Clara.
- Coincidência? Enfim, o que uma mulher tem de ouvir. Desculpas esfarrapadas, isso sim. O menino Groucho achou é que, sendo uma mulher, seria «simpático» presenteá-la com um poema de uma outra mulher. O altruísmo masculino no seu melhor...
- Garanto-lhe, Clara, que nada disso me passou pela cabeça!
- Pois não, e eu acredito. Mas olhe, sugiro-lhe umas leituras para o fim-de-semana. De Freud. Comece pela Psicopatologia da vida quotidiana. É só sobre lapsos. Mais divertidos do que este seu…
- Volto a garantir que…
- Adeus, Groucho, tenho um comboio para apanhar. Já agora, aproveite e leia alguns poemas da Adília. Vai ver que os vai achar instrutivos.
- Adeus, Clarinha… Perdão, Clara.

Klee pensando no blog ideal (os outros põem-se todos em fuga)

30 agosto 2005

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Gel: 1. Que seria do Figo sem ele? 2. Que seria dele sem o Figo, o Simão Sabrosa e outros jogadores de futebol? 3. Restava-lhe o Costinha, provavelmente. Ou o Duarte Lima. 4. Há, ao que parece, outros tipos de gel, mas desconhecemos os seus usos.

Genética: 1. Tem coisas boas mas pode vir a ser um pesadelo que põe o eugenismo nazi a um canto. 2. Pode servir para eliminar ou corrigir doenças genéticas em nascituros ou já nascidos. 3. Pode também vir a servir para produzir uma raça de criaturas de olhos azuis, físico de Brad Pitt ou Angelina Jolie e cérebro de Einstein ou José Mourinho. 4. «Eu cá não me importava de que o meu filho não viesse a ter a minha narigueta, desde que herdasse a minha personalidade, que nisso não se deve mexer». 5. «As imperfeições e deficiências são também vontade de Deus. Resta-nos amar os seres que nasceram com elas, e não arrogarmo-nos o poder de contrariar os desígnios divinos». 6. «Mas Deus não fez os seres humanos à sua imagem e semelhança?». 7. Quase tudo é genético, desde a inclinação para o mal à preferência pelo cheeseburger da Mc Donald’s. 8. Ciência + Muito Dinheiro = Genética. 9. Genética + Muito Dinheiro = Felicidade. 10. A última fronteira.

Gestor: 1. São transaccionados a peso de ouro no leilão das grandes empresas privadas e estatais. 2. São fungíveis e podem por isso intercambiar posições, empresas, estratégias, consoante a deslocação das pedras do jogo de xadrez do mercado. 3. São independentes, quase sempre, e muito ciosos disso, razão pela qual são muito requisitados para funções governamentais, uma vez que os partidos não dispõem de cabeças dessa envergadura. 4. Embora conste que ganham em excesso, mesmo pelos padrões europeus, a verdade é que ganham o que o mercado lhes está disposto a pagar. E, quando assim é, não há nada a dizer, a não ser que se queira impor o regime geral da Função Pública ao mercado…

Ghost Writer: 1. Literalmente, «escritor fantasma». 2. É aquele que de facto faz o grosso do trabalho de escrita de um autor, que assim devém um «patrão» e uma mera assinatura, sonegando quase sempre ao «Ghost Writer» o direito à sua. 3. No século XIX, em França, chamava-se-lhe «nègre», designação de uma manifesta incorrecção política. 4. Há vários, mais ou menos famosos, na literatura portuguesa: João de Melo, Fernando Campos, Estefânio Andrade, Rosa Lobato Faria, Isabel Maria de Sousa, Rita Ferro, Vergílio Alberto Vieira, Roberto Coelho, Fernando Dacosta, etc. Também os há em abundância nas literaturas africanas. 5. O futebol é a área em que o seu contributo se tem revelado mais decisivo, em virtude da terrível falta de tempo de craques e treinadores para se sentarem ao computador a escrever as suas memórias.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

G8: 1. Os 7 Grandes do mundo, mais a Rússia, que já foi grande mas é comprida e dada a birras. 2. Durão Barroso também lá tem assento. 3. Reúnem-se periodicamente para ajudarem o Terceiro Mundo, discutirem o Protocolo de Quioto, tirarem fotografias em grupo e serem filmados em cavaqueiras peripatéticas. 4. Ao que parece, Berlusconi é o melhor nas anedotas e no humor negro, como se viu na cimeira de Génova. 5. Desde há uns anos, mais propriamente desde a reunião da Organização do Comércio Mundial em Seattle, as cimeiras são animadas por manifs muito inventivas com direito a cargas de polícia, gás lacrimogéneo, etc. 6. Convém esclarecer que, ao contrário das aparências, os manifestantes, todos anti-globalização, representam a reacção, e o G8 o progresso.

Gajas: 1. Quem se quiser informar sobre o assunto, em versão up to date, leia a Rititi (v.). 2. Claro que convém não esquecer que é uma gaja a falar de gajas, pelo que não é objectiva nem imparcial como só os gajos (v.) conseguem ser.

Gajos: 1. Cada vez mais encurralados pelo facto de as gajas (v.) terem tomado o freio nos dentes. 2. O prestígio crescente dos metrossexuais (v.) põe a sua sobrevivência em sério risco. 3. Como diz a Rititi, não se vê o que as gajas possam ganhar com isso.

Galiza: 1. Não confundir com Espanha. 2. O Alberto João deles chamava-se Fraga. 3. As «Cantigas de Amigo» são guardadas nas estantes da «Literatura Galega». 4. Não citar Camões («Ó sórdidos Galegos, duro bando»).

Gang: 1. São quase sempre constituídos por negros ou ciganos (menos o do Multibanco, que era uma notória excepção). 2. A TV, aliás, sempre pedagógica, assim que começa a falar de um, esclarece logo que é constituído por «indivíduos de raça negra (ou cigana)». 3. Há também a versão gang-bang, que tem a ver com uso de pistolas de alto calibre e tiroteio do grosso.

Gaveta (meter na): 1. Soares meteu lá o socialismo. 2. A Internacional Socialista também.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Freud, Sigmund: 1. Só pensava naquilo. 2. Punha as tipas todas no divã. 3. Achava que passamos a vida a pensar em coisas porcas a respeito da nossa mãe e com medo de que o pai descubra. 4. A irmã tinha muita inveja do pénis dele.

Freyre, Gilberto: 1. Teórico do luso-tropicalismo, um dos poucos brasileiros que, no século XX, gostaram de Portugal. 2. Na verdade, gostava tanto de Portugal que conseguia ver só virtudes na nossa colonização, sobretudo no processo de intercâmbio sexual e genético que conduziu à produção da mulata (o que, sejamos justos, se compreende). 3. Tinha uma ideia um bocadinho idílica do que se passava, em matéria de cama, na Casa Grande. 4. Salazar achava-o um libertino mas acabou por lhe fazer justiça, ainda que tardiamente, convidando-o para um Grand Tour gratuito pelas colónias, de que resultou o livro de viagens Aventura e Rotina, ainda hoje a melhor introdução às bondades do mundo que o português criou, em África e na Índia. 5. Defendia a «democracia racial» mas era mais reticente em relação à política, razão pela qual saudou a chegada dos generais à política brasileira nos anos 60.

Fronteiras: 1. Já não existem, nesta era cosmopolita. 2. É bom que se mantenham, para os africanos, os árabes e os turcos. 3. Há sempre uma última depois da última. 4. Sobre o assunto, consultar sempre Boaventura Sousa Santos.

Fufas: 1. Em Portugal não há. 2. Consta que antigamente havia, mas isso foi em tempos mais politicamente incorrectos. 3. Lésbicas também há muito poucas.

Fugas (de informação): 1. Não são da responsabilidade dos jornalistas, que se limitam a fazer o seu trabalho (Inês Serra Lopes desunha-se a trabalhar, nesse domínio). 2. Também não são da responsabilidade dos tribunais ou da Procuradoria Geral da República. 3. Em rigor, ninguém é responsável por elas. 4. São uma espécie de transcendental do espaço público em Portugal: existem (a priori), e é tudo. 5. Como é porém típico dos transcendentais, delas não se pode dizer que sejam fruto do acaso.

Função Pública: Um cancro.

Funcionários (Públicos): «E não se pode exterminá-los?»

Fundamentalismo: 1. Há o islâmico, o judaico, o cristão, e o de George W. Bush, que foi salvo do álcool por ele. 2. Só o primeiro é danoso para a tranquilidade dos espíritos e a segurança dos povos, como o caso de George W. Bush convincentemente demonstra.

Futebol: 1. O ópio das massas. 2. Para os eruditos, amigos de arquétipos e citações: «Panem et circenses». 3. Uma escola de virtudes cívicas, antes dos jogos (por intermédio dos treinadores), durante (por força das claques) e depois (por intermédio dos dirigentes). 4. «A culpa, sejamos justos, é dos árbitros, que ou são muito maus ou corruptos». 5. Segue as regras gerais da economia portuguesa, embora dê mais nas vistas: investir sem ter com quê, não pagar as contribuições à Segurança Social, salários em atraso, não pagar impostos, pagar juros dos juros da dívida, reivindicar o seu lugar estratégico na economia nacional, esperar pela próxima amnistia fiscal. 6. Deu um novo sentido à palavra «promiscuidade», no que toca às relações entre dirigentes e políticos (ou seja: entre Valentim Loureiro e Valentim Loureiro). 7. Para dizer a verdade, tudo isto se suspende assim que a bola começa a rolar sobre a relva, pois nessa altura o mundo torna-se mais redondo, aconchegado e feliz. 8. Nos últimos anos, com a chegada das mulheres às bancadas, entrou num processo de erotização excessiva: camisolas despidas após os golos, tatuagens sugestivas, brincos e piercings, proliferação de casais de jogadores e modelos de moda, as câmaras de TV a demorarem-se mais nos umbigos e tatuagens das espectadoras do que no relvado, etc. 9. «Bons tempos, em que elas ficavam no carro a fazer malha!». 10. «Agora até já há futebol feminino, imagine-se! Se bem que há jogadoras bem boas…»

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Foder: 1. O que os nossos políticos nos têm feito, desde há muito. 2. O que nós temos feito aos nossos políticos, desde há muito.

Fotocópia: 1. Uma das indústrias mais florescentes do país. 2. «É certo que mata o livro, mas os preços dos livros também nos matam a nós».

Foucault, Michel: 1. Filósofo francês que apreciava a companhia de loucos e cadastrados. 2. Apaixonou-se pela revolução iraniana, até perceber que Khomeiny tinha uns preconceitozitos homofóbicos. 3. Figura de proa do estruturalismo, termina a sua obra maior, As palavras e as Coisas, declarando que, por causa do buraco do ozono, o Homem está nas últimas. 4. Apesar da falta de cabelo e da sua decisão de rapar o que lhe restava, escreveu longamente sobre a capilaridade do poder. 5. Escreveu uma famosa História da Sexualidade, na qual descobriu que a homossexualidade só foi inventada no século XIX. 6. O seu coração oscilava entre o Collège de France e S. Francisco, embora em ambos os locais leccionasse ex cathedra.

França: 1. Chão que deu uvas. 2. Ainda se acham no tempo de Napoleão, apesar de terem perdido as guerras todas depois dele. 3. Como bem disse Rumsfeld, integra, com a Alemanha, a «Velha Europa».

Francesa, Literatura: 1. A portuguesa não lhe fica a dever nada. 2. Já não produz escritores de jeito.

Francesismo: 1. O último, e mais devastador, é o que consiste em trocar a expressão vernácula «Fazer uma pergunta» por «Colocar uma questão», o que acarreta o direito a falar por mais tempo do que o conferencista a quem se quer «colocar a questão» (sem lhe fazer pergunta alguma). 2. Sinal de atraso cultural e civilizacional, uma vez que a França (cf. supra) é chão que deu uvas.

Freitas, Manuel de: 1. O maior fenómeno da poesia portuguesa na corrente década. 2. Publica entre 11 e 14 livros por ano, alguns com 20 pp., outros maiorzitos. 3. Tem sempre direito a recensão com foto, no Actual, do Expresso, o que não se percebe bem, uma vez que a sua poesia é radicalmente marginal e crítica, apaixonada por tascas, charros e outros tropos do «urban decay», de costas resolutamente viradas para o «belo poético» e outras negociatas institucionais. 4. É também crítico no Expresso e editor de poesia, tendo lançado uma revista de poesia de nome Telhados de Vidro e uma antologia de Poetas sem Qualidades. 5. Ambas as designações são de rara felicidade.

Denise Levertov













Dog of Art

That dog with daisies for eyes
who flashes forth
flame of his very self at every bark
is the Dog of Art.
Worked in wool, his blind eyes
look inward to caverns and jewels
which they see perfectly,
and his voice
measures forth the treasure
in music sharp and loud,
sharp and bright,
bright flaming barks,
and growling smoky soft, the Dog
of Art turns to the
world
the quietness of his eyes.


Denise Levertov [1923-1997]
Com um agradecimento à Elsa Margarida

Goya ironizando sobre blogs de mulheres nuas

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Feto: 1. Vem depois do embrião, em idade e tamanho, o que significa que já sobreviveu à iminência da pílula do dia seguinte. 2. Do ponto de vista ético, dá também dores de cabeça bem maiores do que os embriões. 3. Há quem defenda que devem ser as mulheres a decidir sobre a sua sorte, uma vez que é no corpo delas que se desenvolve. 4. Há quem defenda que deve ser o casal a decidir, já que é obra comum. 5. Há quem defenda que deve ser a sociedade a decidir, por meio de leis, já que o feto é um proto-cidadão (se não mesmo já um cidadão de corpo inteiro, se é possível dizê-lo assim). 6. Há, enfim, quem defenda que só cabe a Deus decidir (ou a Conferência Episcopal, enquanto seu representante terreno), pois todas as criaturas vivas são obra sua. 7. É para sanar estas divergências que se fazem referendos (v.), as vezes que for preciso.

Figo: 1. «First you take Barcelona, then Madrid». 2. Foi preciso um brasileiro com nome de sambista gabarolas (Vanderlei Luxemburgo: dá para acreditar?), para pôr fim, por inveja, à última saga nacional na Europa e no mundo. Ou seja: «Do Brasil, nem bom vento nem bom casamento». 3. Despediu-se da selecção, com comunicado e tudo, mas já regressou. Para o ano despede-se de novo e de vez. O que vale é que há o Cristiano Ronaldo (v.).

Filosofia: 1. Os empresários gostam muito de falar da deles. 2. Os políticos também. 3. Os treinadores de futebol, então, não falam de outra coisa, com especial destaque para Jaime Pacheco («Do pescoço pra baixo, é tudo canela!»). 4. Na universidade não se falava tanto dela como se devia, mas a situação está a alterar-se, em grande medida por causa da implementação (v.) do Protocolo de Bolonha (v.).

Filhos: 1. Em princípio, as tarefas, os cuidados são para partilhar, mas elas não deixam. Não são generosas, não gostam da partilha. Por isso, são elas que os deitam, que os acordam, que os levam à escola, que pensam no que vão comer, no que vão vestir, nas inscrições na escola; são elas que vão falar com os directores de turma, etc. 2. Claro que eles queriam fazer tudo isto, mas, nunca é demais insistir, elas não deixam.

Flexibilidade: Propriedade muito desejável nas mulheres e nas empresas.

FMI: 1. Título de uma velha e longa canção (mais berrada do que cantada) de José Mário Branco. 2. Organização internacional que apoia monetariamente, a fundo perdido, os países em vias de desenvolvimento. 3. Significa «Fode o Mundo Inteiro», segundo os Barrako27.

Please don’t call me a female artist

Dear Editor,

Please don’t call me a black artist.
Please don’t call me a black philosopher.
Please don’t call me an African American artist.
Please don’t call me an African American philosopher.
Please don’t call me a woman artist.

Please don’t call me a woman philosopher.
Please don’t call me a female artist.
Please don’t call me a female philosopher.
Please don’t call me a black woman artist.

Please don’t call me a black woman philosopher.
Please don’t call me an African American woman artist.
Please don’t call me an African American woman philosopher.
Please don’t call me a black female artist.
Please don’t call me a black female philosopher.
Please don’t call me an African American female artist.
Please don’t call me an African American female philosopher.
Please don’t call me a female black artist.
Please don’t call me a female black philosopher.
Please don’t call me a female African American artist.
Please don’t call me a female African American philosopher.

Please don’t call me an artist who happens to be black.
Please don’t call me a philosopher who happens to be black.
Please don’t call me an artist who happens to be African American.
Please don’t call me a philosopher who happens to be African American.
(…)

Dear Editor,
I hope you will bring to my attention any permutations I have overlooked.
I write to inform you that
I have earned the right to be called an artist.
I have earned the right to be called a philosopher.
I have earned the right to be called an artist and philosopher.
I have earned the right to be called a philosopher and artist.
I have earned the right to call myself anything I like.
Thank you in advance for your consideration.

Adrian Piper, 1 January 2003

Goya profetizando o destino de muitos blogs

29 agosto 2005

Noland, dádiva

a partir do ponto de observação

a partir do ponto de observação que o seu olhar abria, o plano definido pela janela intersectava, num ângulo de cerca de 110 graus, o plano definido pela linha que delimitava uma secção da asa, definindo ainda, por sua vez, janela e asa, dois lados de um triângulo, cujo terceiro lado era a linha do horizonte, delimitando a mancha escura que preenchia o plano da terra, realçado pelo rectângulo composto de faixas rectilíneas sobrepostas numa transição gradual do ocre para o vermelho para o laranja para o amarelo torrado para o amarelo para o amarelo claro, delimitados ainda, mais acima, pelo trapézio azulado do céu, numa gradação que ia do branco para o azul claro para o azul escuro, que o lado superior da janela voltava a intersectar, sustendo os planos, durante longos minutos, numa conjunção de forma e luz, refractadas pela química do cérebro.

Droláticos e pilheriáticos (série de pequenino formato)

A maioria das coisas ditas homéricas passaram despercebidas a Homero.


Stanislaw Ponte Preta, Máximas de Tia Zulmira (1994)

Diário de uma intelectual enquanto jovem mãe (e ao invés)

22 de Julho

A Mariana, do alto dos seus 5 anos recém-festejados, acaba de me declarar, após o enésimo visionamento de um DVD sobre dinossauros, que quando for grande quer ser paleontóloga. Assim mesmo. E a palavra saiu escorreita, sem um lapso. Logo a seguir, como quem dá voz a uma das perplexidades do ser, perguntou-me se eu nunca tinha querido ser paleontóloga, pois manifestamente para ela só esse pode ser o desejável destino da espécie. Disse-lhe que não. Mas que, quando leccionei episodicamente por um semestre na universidade de Vetusta, me senti uma paleontóloga com os privilégios dos cientistas do ramo no Parque Jurássico, do Spielberg: por poder observar, ao vivo e em directo, os movimentos de uma tão vasta gama de dinossauros… Coitada, não percebeu e perguntou-me onde é que ficava essa universidade, pois queria ir pra lá.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Fénix: Dizer, com espanto e fervor, a propósito dos dirigentes de clubes de futebol ou dos políticos (para resumir: a propósito do Major Valentim): «Renasceu, qual Fénix, quem diria!»

Fernandes, José Manuel: 1. Neoliberal que dirige um jornal deficitário e sustentado por um milionário. Apesar do défice, o milionário paga-lhe mais do que a República ao Presidente. 2. Viu a luz quando se encontrou com as grandes cabeças dos neo-conservadores nos EUA. 3. Sentimental, chorou, como no 25 de Abril, quando os americanos entraram em Bagdad e apearam a estátua de Saddam.

Ferreira, Vergílio: 1. O Sartre (v.) português. 2. Apascentava o Ser até de madrugada, como se podia perceber pelas olheiras. 3. Andou no seminário mas só depois de o abandonar é que teve uma aparição, em Évora. 4. Deixou de acreditar em Deus mas nunca se recompôs pois sentiu sempre um buraquito negro nessa zona. 4. Tinha a mania de terminar as frases em «que». 5. Escreveu uma famosa série romanesca sobre despedidas (Para Sempre, Até ao Fim, Cartas a Sandra) que viria a inspirar toda uma geração de escritoras, de Inês Pedrosa a Margarida Rebelo Pinto. 6. Um dos nossos poucos escritores cultos, juntamente com Saramago ou Baptista Bastos (v.).

Post Carbónico













Lembrei-me disto. Está em curso uma experiência não controlada com o planeta Terra. Sabe-se que o dióxido de carbono aquece a atmosfera. Que isso leva à subida do nível dos mares. Que os mares absorvem o CO2 e que isso acidifica as águas. Um carro que queime 9 litros de gasolina a cada 100 quilómetros, consome cerca de 1350 litros por cada 15000 quilómetros, lançando para a atmosfera perto de 3000kg de dióxido de carbono. Uma central termo-eléctrica de 1000 megawatts produz seis milhões de toneladas de CO2 por ano. Prevê-se que a produção total das centrais a carvão do planeta (o equivalente a 1000 centrais de 1000 megawatts) duplique nas próximas três décadas. Entre 1751 e 2002, as emissões de dióxido de carbono com origem em combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão) atingiram 1 070 biliões de toneladas. Numa inspiração, Mariana Alcoforado absorvia 280 moléculas de CO2 por cada milhão. Para os meus pulmões são 380 moléculas de CO2 a cada inspiração. Uma proporção que continuará a aumentar à razão de duas moléculas por ano.

Natália, a outra


Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

28 agosto 2005

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Fêmea: 1. A oposição fêmea/macho é das mais necessitadas de um urgente trabalho de desconstrução, já que nela se investe toda a economia política da desigualdade sexual. 2. Não é simétrica de «macho», já que este fala pelas mulheres quando recorre à maiúscula – o Homem – e o inverso não ocorre, pois Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, e não a mulher. 3. As feministas defendem que uma coisa é a fêmea e outra a mulher, que esta não «nasce» mas «se faz», e que não há o «feminino», coisa que exige bastante bibliografia para se chegar lá. 4. Júlio Cortazar defende, no seu famoso romance Rayuela, que há um «leitor-fêmea», coisa aferível pela leitora destituída do século XIX (por exemplo, a Luísa do Primo Basílio). 5. Trata-se obviamente de um caso de atroz falocentrismo, pois está por provar que todos os leitores de Inês Pedrosa ou Margarida Rebelo Pinto sejam iletrados. 6. Além disso, e como vimos antes, é discutível que todos os «leitores-fêmea» sejam mulheres. Há muito homem leitor que se enquadra bem na categoria, e muitos até escrevem em jornais e falam na rádio e na TV.

Feminismo: 1. Em Portugal, não há. 2. «Ainda bem, porque as mulheres perdem a sua elegância natural, a sua doçura e cativante fragilidade quando se põem a protestar e reivindicar por tudo e por nada». 3. Consiste em queimar soutiens em público e em dizer, a propósito do aborto, apontando para o útero, «Aqui mando eu!». 4. Uma das formas mais equivocadas e detestáveis do «politicamente correcto». 5. «Felizmente, já estamos no pós-feminismo, em que convivem mulheres em cargos de gestão dos mais altos no mundo empresarial, com a perda de complexos em relação a certas tarefas domésticas rejeitadas pelo feminismo histó(é)rico. Ou em relação à lingerie e aos saltos altos…»

Diário de uma intelectual enquanto jovem mãe (e ao invés)

22 de Julho

Leio num jornal o anúncio de abertura de concurso para estagiário/a no Clube Casmurro. Pagam uma miséria, mas também não exigem presença assídua. É à tarefa e o prémio supremo, ao que parece, consistirá em integrar o clube enquanto membro, se o estágio for avaliado positivamente. Como prémio, descontando a pretensão de supor que há por esse mundo fora pessoas que sonham só em ser membros do clube, podia ser bem melhor, mas enfim.
Não sei. Por um lado, repugna-me trabalhar num clube só de homens. Parece que têm mordomo e tudo, como naqueles falocratas antros londrinos que passam por epítomes da gentlemanship (sem querer abusar da política gramatical feminista, que é feito da gentlewomanship?). Por outro lado, o clube tem uma reputação de exigência e profissionalismo, raros nesta lusa coutada de amadores. E a biblioteca, onde sobretudo trabalharia, se acaso vencesse o concurso, parece ser excepcional. Acho que vou começar por fazer um telefonema exploratório para lá.

……………………………………………………………………………

Lá falei com o mordomo, um tal Groucho, bem-falante mas inegavelmente competente. Ao que parece, preencho os requisitos indispensáveis ao concurso. Disse-me que posso ver o espólio da biblioteca do clube na net, o que me deixou siderada. Fui ver e fiquei convencida: é coisa para me poupar muita deslocação às maçadoras e atravancadas bibliotecas públicas portuguesas. Perguntei-lhe pelos membros do clube e, apesar de serem todos um tanto cotas (à excepção de 1 ou 2), reconheci alguns nomes de quem li já ensaios ou livros. Acho que vou concorrer. Na pior das hipóteses, fico a conhecer mais uns espécimes do macho intelectual lusitano, cujo génio em geral não penetra além das trevas de Badajoz (ou de Irun, no melhor dos casos). Na melhor das hipóteses, transformo aquilo numa sorority e actualizo os fundos da biblioteca em matéria de literatura e teoria feminista.
Perguntei ao tal Groucho se não havia contradição no facto de um clube de homens admitir uma mulher. Respondeu-me (sic) que «Neste clube prezamos a contradição e acreditamos muito moderadamente nos méritos da Senhora Dona dialéctica!». Pedante do caraças! Sempre quero ver. Em tratando-se de homens, desconfio, por princípio, destas declarações de imparcialidade e «abertura», já que a história mostra, à saciedade, que é raça que nunca abdica de um grama de poder ou sequer de autoridade, a não ser à violência.

Droláticos e pilheriáticos (série de grande formato)

AULA DE INGLÊS

Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objecto que ela me apresentava.
Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa de ser um elefante; e mesmo que morra em consequência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Reflectindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, as vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.
Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convictamente:
No, it’s not.
Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente me perguntou:
Is this a book?
— Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro à primeira vista no meio de quaisquer outros objectos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:
No, it’s not!
Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.
Is this a handkerchief?
Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca… Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief ! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
No, it’s not!
Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.
Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta do que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes de ela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma pergunta decisiva:
Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objecto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Sim. Era um objecto de louça de forma oval, com cerca de treze centímetros de comprimento. As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:
Yes!
O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por uma onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:
Very well! Very well!
Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.
Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja, uns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:
It’s not an ash-tray!
E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fls. 86-87.

Diário de uma intelectual enquanto jovem mãe (e ao invés)

21 de Julho

Estive há pouco a rever Lost in Translation em DVD. O Gustavo e a Mariana adormeceram cedo, e decidi aproveitar. Claro que houve uma interrupção a meio (só uma, vá lá…) por choro súbito da Maria. De lamentar, a interrupção da integridade da obra por intromissão da contingência? Ou terá a pausa, a quebra do fluxo pré-ordenado do filme, as suas virtualidades (as da distanciação, da questionação da temporalidade linear da obra)? Ninguém o diria da leitura de um romance, por exemplo, que é por definição interrompida e recorrente. Mas tudo parece ser diferente quando se trata de um filme, uma peça musical ou dramática. A questão das artes performativas, seguramente. Só que neste caso (como em tantos outros) a reprodução técnica, que me permite ver o filme em casa, altera – ou sabota? – os dados da questão. Antigamente, na ida ao cinema, o intervalo era uma imposição, por uma feliz articulação de questões técnicas (a limitada capacidade das máquinas de projecção e das bobines) e do incitamento ao consumo, aliás débil naquela altura. E gerações houve que se habituaram a discutir os filmes a partir de uma divisão heurística entre «a primeira parte» e «a segunda parte», quando, como nos lembrava o intelectual de serviço entre os amigos com que íamos ao cinema, os filmes não tinham «primeira parte» e «segunda parte»: eram uma coisa só, uma Obra integral. Agora, a mesma conjunção entre tecnologia de projecção e consumo impõe quase sempre o filme integral, em versão massacrante (chama-se «Dolby» à chinfrineira agressiva e brutal em que o espectáculo cinematográfico se tornou, como se ir ao cinema se tivesse transformado num equivalente de uma ida à discoteca) e mete-nos nas mãos umas mixórdias para aguentarmos, até mesmo fisicamente, o filme, e a agressão sonora, de rajada. O «intelectual de serviço» deve estar feliz, em nome da integridade da obra. Eu penso às vezes na minha integridade física e suspendo o juízo. Em todo o caso, em ambiente doméstico a Maria vai criando os intervalos que bem entende, marimbando-se para a «organicidade da obra», a durée, e todo o seu cortejo fenomenológico. Aprendi aliás ultimamente a ver os DVD’s (nos raros momentos em que o consigo fazer) em ambiente maternal: instalo o computador portátil, de momento o meu único computador, na cama, ponho o DVD e vou vendo enquanto os miúdos, e especialmente a Maria, dormem. Cinéma vérité, creio. Sabe-me bem, como só na infância e adolescência as matinés de sábado, que suponho já nem existirem.
Desta vez, talvez por causa da solidão amorosa, o impacto do filme concentrou-se na fabulosa sequência final. Ele segue no táxi, após se ter despedido dela. De súbito, vê-a de costas no meio da multidão. Manda parar o táxi, sai e vai até ela. Nesse momento, o filme joga com superior inteligência com a nossa memória cinéfila, tão admiravelmente explorada há uns anos por Nani Moretti, em Palombella Rossa, embora em contexto ideológico: a sequência também final do Doutor Jivago, de David Lean. Jivago sai do eléctrico e, combalido pelo coração em crise e pela vida que não houve com a amante, brevemente entrevista do eléctrico, tantos anos depois, corre pela multidão em busca dela. Quando, em Lost in Translation, ele se aproxima dela, no meio da multidão que caminha em Tóquio, fica-se intimamente convencido de que também aqui se trata de uma ilusão: não é ela, o passado é irremediável (e o mesmo vale para o futuro de que se desiste), a vida não recomeça. Mas é mesmo ela, isto não é uma tradução ao retardador do Doutor Jivago, ninguém é ainda amante de ninguém, tudo são só promessas, nada está perdido.
Depois ele diz-lhe aquelas palavras ao ouvido, e Sofia Coppola, num golpe de génio, deixa-nos suspensos do silêncio e do segredo. Sorriem ambos quando se despedem, ela visivelmente reconfortada e – poderei dizê-lo? – feliz. Que lhe terá ele dito? As hipóteses são várias, ainda que não ilimitadas. A primeira, e mais fácil (o filme não a merece): uma promessa de reencontro breve e amor eterno. Segunda hipótese: ele diz-lhe tudo aquilo que desejamos dizer a alguém com quem temos um caso. E, por isso, as nossas palavras dele variam com os anos e a vida. Talvez isso explique o facto de ambos parecerem felizes no final, de uma felicidade leve e descomprometida. Mas esta não é bem uma resposta à questão, pois não preenche o vazio da cena: limita-se a desvelar a sua estrutura lógica e fenomenológica, digamos. Terceira hipótese, que permite combinar as duas primeiras: ele diz-lhe que a vida ainda os há-de juntar e ela, sendo novinha e com tempo pela frente (o que já não é o caso dele), fica feliz com a «promessa». E ele fica feliz por a ter deixado feliz. Cínico? Desistente? Ninguém fica afinal com ninguém? Não sei. Ninguém sabe, nem mesmo ele (admitindo que as suas palavras tiveram sobretudo um intuito caritativo). Ele pode regressar a casa e, no momento em que franqueia a soleira da porta, perceber que o casamento acabou e que a vida dele recomeça agora com ela. Fica tudo em aberto. Como a vida.
Em que idioma se traduzem pois essas palavras que não ouvimos? No intraduzível idioma do amor? No da perda? No da melancolia? E não são todos o mesmo?
A Maria berra. Está na hora da papa… E agora também a Mariana acordou com o choro da mana. Já vou, bichanas…

Escutando o Presidente (noite fora)

Indagações

— …sim, sabes o que é que me disseram?
— Não.
— Prepara-te. Que ela tem 3 filhos. E agora?
— E agora o quê?
— E agora o que é que acontece à tua "tese"?
― E o que é que tem o cu a ver com as calças?
— Eh pá, tu és muita teimoso…
― Teimoso, uma ova.
— Olha, vai mas é dormir, que são horas.
— Vossa Excelência manda!

Especulações

— …sabes lá, ‘tás a especular!
— Não ‘tou!
— Ai não? Então foste jantar com ela e tudo e agora ‘tás a dizer isso?
— E depois?
— E depois não faz sentido nenhum!
— Pelo contrário! Faz todo o sentido…faz todo o sentido.
— Eh pá, detesto essa expressão. O sentido nunca se faz todo, não sabes?
— ‘tás a desconversar.
— Desculpa lá… só porque ela afixa por aí fotos de gajas? Eh pá, tem paciência…
— ‘Tá bem, pronto, não queres acreditar, não acredites.
— Pfff, como se fosse uma questão de crença…
— Depois não me venhas cá dizer que eu tinha razão e não sei quê.
— Razão, essa é boa…

27 agosto 2005

Hélène, 3



Elle disait parfois la lumière / m'égare à mesure / que j'avance / il me faudrait être morte / ou bien ne plus garder trace / ne rien retenir au passage / juste l'air qui emporte.

Oświęcim, 4

loc
ent
igi
a
orn
rax
scov
apat
ram
abel
onec
rabalh
inz
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el
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om

Monólogo exterior (inquieto)

/…/ que coisa estranha… «tem por aí um lápis à mão?»… e nem sequer precisando, nem usando… parecia desaforo, ou pior, divertir-se à minha custa… só que, só que teria que ter-me ouvido… mas como? como ia ela ouvir-me se falo comigo mesmo, e muito em voz baixa, e quando não está ninguém nos arredores…? pena, oportunidade desperdiçada, porque fiquei interdito com a pergunta despropositada… imaginei a primeira conversa, ou segunda, ou alguma, noutros modos, noutros termos, noutro âmbito mesmo… sim, muito outro, nada de lápis ou desaforo:

— Bom dia, Sr. Groucho, como tem passado?
— Bem, menina Clara, bem. E a tese, corre conforme os seus desejos?
— Vai indo, Sr. Groucho, menos mal. Os meus desejos talvez sejam excessivos relativamente às minhas capacidades.
— Não diria isso, menina Clara, olhe que aqui só tenho ouvido a seu respeito os mais rasgados elogios, e sempre com toda a elevação.
— Imagino, Sr. Groucho, imagino. Mas, por falar na tese, diga-me uma coisa, tem filhos, Sr. Groucho?
— Não, menina Clara, a vida não me deu essa oportunidade. Mas gosto muito de crianças, e até convivo com elas sempre que posso: tenho sobrinhos.
— Ah sim? Rapazes ou meninas? E como é que eles são?
— Uma menina e um rapaz. São crianças normais, menina Clara, não obstante...
— Não obstante? Não obstante o quê?
— Não obstante o modo como a minha irmã os educa, ou melhor dizendo, não educa. Ela tem umas ideias estranhas. Diz que a função dela, como mãe, é proteger e sobretudo observar.
— Hmmm, curioso...
— Oh sim, e desconfortável para os outros, se quer saber. A minha irmã sustenta que o que chamam educação das crianças visa apenas aniquilar-lhes a vontade própria. E que daí resulta o mais negro paradoxo da educação: as crianças são reprimidas, e os adultos não conseguem reprimi-las. Uns e outros malogrados, diz ela.
— Hum, sabe, Sr. Groucho, gostava de conhecer essa sua irmã.
— Quando quiser, menina Clara, quando quiser. Aliás, já lhe falei de si. Com toda a elevação, claro.
— Claro!

Diálogos impossíveis, 2

— Groucho, desculpe, mas consegue explicar-me a fixação que por aí vai nessa Helena Matos?
— Fixação? Helena? Por aí? Agora confundiu-me, confesso…
— É que não entendo: a rapariga escreve por aí umas coisas, mas a prosa é por aí medíocre, as ideias por aí vulgares, só o tom por aí atrevido, naquele género de quem se imagina a dizer por aí coisas que ninguém mais se atreve a dizer mas há por aí meio mundo que aguarda que sejam ditas…
— Ah, conheço esse género: a bem dizer fui eu que o inventei... por aí.

Natalia, dois

Il mio mestiere è scrivere delle storie, cose inventate o cose che ricordo della mia vita ma comunque storie, cose dove non c’entra la cultura ma soltanto la memoria ou la fantasia. Questo è il mio mestiere, e io lo farò fino alla morte.

Natalia Ginzburg, «Il mio mestiere» (1949)

Droláticos e pilheriáticos (série de grande formato)

PESCARIA DE BARCO

Às 6 horas apontamos a proa para a ilha Raza e às 12 e meia já estávamos de volta. Foi uma pescaria curta e modesta, pois trouxemos apenas um dourado de 10 quilos que o patrão do barco fisgou, eu ajudei a tentear e Chico Brito puxou com o bicheiro.
Não o choreis. Era na verdade lindo, a correr e saltar na água azul, todo verde e dourado e azul; lutou pela vida, foi bravo e morreu. Não o choreis: era um belo animal cruel e, além disso, guloso. Quando foi aberto o seu buxo, havia dentro dele várias sardinhas e vários baiacus, todos abocanhados inteiros, alguns evidentemente há bem pouco tempo. Ele estava, portanto, de barriga cheia, e com uma grande parte da digestão por fazer; se engoliu nossa modesta sardinha não foi por fome e sim por mania predatória. Como somos democráticos e defensores dos fracos e pequenos, chorámos as sardinhas e baiacus. Quanto ao dourado o dividimos em postas e o almoçámos tranquilamente, ao som de um vinho branco Santa Rita, devidamente chileno. Após o que deitei-me, na minha branca e cearense rede, cuja varanda é bordada de leões, e cochilei cerca de meia hora, a sonhar vagamente com minha amada e com o mar.
Enfim, tudo isso são prazeres que um intelectual modesto pode usufruir num país subdesenvolvido a esta altura do século, após 30 anos de labor relativamente honesto. Nos prazeres referidos não vai incluída a amada, que, por desamante, antes seria motivo de melancolia; mas, se sua presença é esquiva, sua lembrança às vezes é doce, principalmente quando servida com peixe, vinho e rede.
Como o leitor está vendo, ao fim de tudo isso deixei a rede e abri a máquina de escrever. Aqui estou. Que poderia contar além da minha pequena experiência pessoal do dia de hoje? Não sou homem de inventar coisas, mais de contá-las. Seria preciso talvez dar-lhes um sentido, mas não encontro nenhum.
As coisas, em geral, não têm sentido algum.
De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fls. 84-85.

Diálogos impossíveis, 1

— Groucho, desculpe, por acaso não tem um lápis à mão ?
— Não uso lápis, menina. Lamento. Mas posso ir comprar-lhe um…
— Não, obrigada, não é preciso. Também não uso.

Diário de uma intelectual enquanto jovem mãe (e ao invés)

20 de Julho

Hoje, ao dar banho à Maria, apercebi-me da última loucura em que me meti. Deitei-a na cama, só com a fralda, como tem andado agora por casa, em virtude do muito calor, e entretanto fui temperando a água da banheira, que transportei para o quarto em cima do seu suporte (uma espécie de tripé). Mas tinha de ir e vir da casa de banho para ir buscar ou água quente ou fria, sempre a controlá-la pelo canto do olho. Bastou que me distraísse por um segundo a temperar a água e, quando olho para a cama, só a vejo na borda, a cair para o chão. Dei um grito, corri e… valeram-lhe (e ao meu coração) as almofadas que previdentemente colocara no chão, a toda a volta da cama. A marota, pós o susto, pôs-se a rir, muito escancarada para mim!
Aos 30 anos, com um terceiro filho nas mãos! E sem um homem que me ajude, pois o pai do Gustavo e da Mariana pôs-se a andar já há anos (pu-lo eu, para dizer a verdade). E o da Maria… Um bebé de meses, entregue aos cuidados de uma só pessoa, é uma tarefa deveras improvável. E arriscada, para ela e para mim, que já estive à beira de vários acidentes domésticos, em consequência do transe em que vivo, evitando deixá-la sozinha e não podendo deixar de o fazer, uma por outra vez, ainda que por breves segundos. E, claro, a correria e a aflição põem às vezes a minha integridade física em risco. O que vale é que os outros já estão grandinhos – embora ainda não o suficiente para me poderem ajudar muito com a irmã - e a Paula (grande amiga!) às vezes leva-os lá para casa, para brincarem com a Matilde dela, e só regressam um ou dois dias depois, quando se mete o fim-de-semana pelo meio.
Isto para não referir a permanente sensação de cansaço, ou melhor: de esgotamento de todas as minhas reservas de energia, e grande dificuldade em renová-las convenientemente, pois o sono só me é permitido aos soluços ou então muito fora de horas. Ando, por isso, sempre ensonada e até me começo a parecer com aqueles catedráticos que ao longo dos anos desenvolvem uma apurada técnica para dormitarem nas conferências, semicerrando os olhos e parecendo, ao invés, estar a dedicar o melhor da sua atenção e empenho às palavras e ideias do conferencista. Ainda se os meus pais vivessem perto… Mas não se pode dizer isso do Canadá, mais propriamente da cidade de Kitchener-Waterloo, no Ontário, a umas dezenas de quilómetros de Toronto, ou, no sentido oposto, das cataratas do Niagara…
E, quanto ao pai da criança – e, por extensão, aos avós paternos – o melhor é habituar-me a responder como o romeiro do Garrett: «Ninguém…» Há homens que, por mais que a gente se iluda, esgotam o seu préstimo terreno em servirem a propagação da espécie, e se calhar nem lhes podemos levar a mal por isso, desde que se desempenhem da tarefa com brio e competência. Havê-los-á também com outros préstimos, mas nos meus 30 anos ainda não tive o privilégio de os conhecer. Mentira, vá… Já conheci uns poucos, mas ou foi no timing errado (para mim ou para eles), ou só tinha olhos e cabeça (e corpo) para os pais dos miúdos; mais recentemente, constato que, com significativa frequência, aqueles que interessam estão já ocupados, quero dizer, casados. Nada que me preocupe de momento, pois o meu corpo só agora se começa a libertar dos vestígios da gravidez e da sua estranha volúpia.
Preocupa-me bem mais, nesta altura, saber qual a estratégia (ou, meramente, a táctica) a desenvolver para conseguir reatar a actividade intelectual que a gravidez, e agora esta renovada ocupação a tempo inteiro (a 200% do tempo, parece-me…), me têm tão fortemente inibido. Não consigo voltar ao trabalho, não leio um único livro, e isso sim, até por causa dos prazos para a tese, começa a preocupar-me. Conseguir que a mulher-a-dias venha mais um ou dois dias? E dinheiro para isso? Ainda se pudesse escrever umas recensões para a imprensa - de poesia, de preferência, que dá menos trabalho… Mas é actividade cada vez mais mal paga e são cada vez menos os jornais com páginas dedicadas a livros. Precisava talvez de me tornar cronista, que é o que está a dar. Da «condição feminina» em geral, ou da materna em particular (afinal de contas, disso sei eu). Porque não, bem vistas as coisas? Tentar enviar para o DN (ou melhor, para o DNa, que é mais aberto) umas crónicas sobre «as atribulações de uma jovem e recente mãe». Quem sabe se não me tornaria uma figura pública, nesta era sem povoadores? Mas tenho de pensar bem o ângulo a adoptar, para que a coisa dê que falar. Deixa-me cá pensar…

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Felicidade: 1. Ter um telemóvel da 3ª geração. 2. Ter o novo cartão de sócio do Benfica. 3. Passar 15 dias de Agosto em Cuba (por causa das praias, das ruínas e/ou das cubanas ou dos cubanos). 4. Ser entrevistado por Judite de Sousa (v.). 5. Ir ao Big Brother (v.). 6. Ter um filho jogador de futebol. 7. Ter uma filha modelo de moda (de preferência, casada com um jogador de futebol). 8. Ter um Nissan Patrol e percorrer nele o Alentejo profundo. 9. Ter um livro autografado por Saramago (em alternativa, por Lobo Antunes). 10. Cortar o cabelo no mesmo salão que Sócrates. 11. Passar o sábado no Colombo e o domingo no Alvalade XXI. 12. Ser autor/a de um livro referido pelo Prof. Marcelo no seu programa. 13. Ter um televisor com ecrã de plasma de 50’’. 14. Ter um coach pessoal. 15. Ter uma filha a estudar Gestão na Universidade Católica. 16. Ter uma reforma como a de Mira Amaral. 17. Fazer a festa de baptizado de um filho no Estádio do Dragão. 18. Ter uma filha a estudar Direito na Universidade de Coimbra. 19. Ser sócio de um SPA (v.). 20. Ter um blogue. 21. Editar um blogue em livro. 22. Ser sócio do Automóvel Clube. 23. Ter um filho a fazer Mestrado em Ciência Política com João Carlos Espada. 24. Ter uma assinatura anual do Expresso on line. 25. Criar uma empresa de capital de risco. 26. Conseguir ler todos os livros de Gonçalo M. Tavares. 27. Conseguir ler todos os livros de Manuel de Freitas. 28. Editar um livro de poesia na Assírio & Alvim. 29. Editar um livro de crónicas, com capa rosa choque, na Oficina do Livro. 30. Ter um filho com um master em Business a trabalhar na Sonae. 31. Ter dinheiro para fazer uma cirurgia plástica e passar de 40 anos para 30. 32. Chegar aos quarenta e arranjar um namorado de 25, cabo-verdiano de preferência. 33. Ir ao ginásio e poder usar umas calças de ganga justas com rasgões e brilhantes à mistura e usá-las com sapatos bicudos com talões de 20 cm. 34. Ter o ginásio, as calças, os sapatos e uns cabelos com madeixas alouradas, lisos, escorridos e compridos. 35. Ter cartão de crédito Gold, sem plafond. 36. Ter uma mala Louis Vuitton. 37. Ter uma boa imitação de Louis Vuitton e poupar um bom dinheiro. 38. Ter a última PlayStation do mercado. 39. Ter uma profissão liberal e não pagar impostos. 40. Ler religiosamente as crónicas de Helena Matos no Público aos sábados. 41. Ter casa própria e beneficiar ainda assim de subsídio de renda de casa, como os juízes. 42. Ter uma mulher-a-dias ucraniana e dispensar assim as prestações à segurança social. 43. Ter estado em Fátima aquando de uma das visitas de João Paulo II. 44. Ter estado em Roma aquando das exéquias de João Paulo II. 45. Acreditar em Deus e, ao mesmo tempo, no Vaticano. 46. Dar à luz com epidural. 47. Chegar aos 50 sem problemas de próstata. 48. Ter sido aluno/a de Eduardo Prado Coelho. 49. Nunca ter sido vitimado/a por um preservativo furado. 50. Ter assistido a um dos discursos de Alberto João Jardim na festa do Chão da Lagoa. 51. Ver um bom filme americano de pancadaria enquanto se come um pacote de pipocas e se bebe uma Pepsi, na sala de cinema de um multiplex. 52. Ter jogado à bola, em miúdo, com José Mourinho, em Setúbal. 53. Dizer a toda a gente que se jogou à bola, em miúdo, com José Mourinho, em Setúbal. 54. Ter a edição princeps d’A Praça da Canção, de Manuel Alegre, e emocionar-se a cada vez que se relêem alguns versos. 55. Ter tido uma crítica favorável de António Guerreiro, no Expresso. 56. Ter tido uma crítica desfavorável de António Guerreiro, no Expresso. 57. Ter visto um filme português e conseguido entender o que os actores dizem. 58. Saber o que seja um «orgasmo vertical» (cf. Eduardo Prado Coelho) e, sobretudo, ter tido um. 59. Ler as crónicas e livros de Miguel Sousa Tavares sem dar pelos abundantes solecismos. 60. Amar, ser amado/a, ter filhos e sogros. 61. Fazer um casamento gay ou lésbico, adoptar uma criança e passearem os 3 de mão dada ao fim-de-semana no Colombo ou na Expo. 62. Ir a um bar gay ou lésbico e não dar por ela (ou por ele) senão quando já é demasiado tarde, optando por não dar parte de fraco/a, e achar depois que a experiência foi enriquecedora. 63. Emocionar-se ao ver Tiago Monteiro subir ao pódio em Indianápolis, ainda que só 6 automóveis tenham terminado a corrida e ele não tenha ultrapassado nenhum. 64. Ver o programa de Herman José na SIC e achar sempre muita piada. 65. Deliciar-se com a erudição dos comentários futebolísticos de Fernando Seara, no programa «O Dia Seguinte», da SIC Notícias. 66. Ver Dias Ferreira em actuação no mesmo programa e reconhecer nele a pessoa ideal para presidir aos destinos do Sporting. 67. Atravessar a crise da meia idade sem perder casa, carro e biblioteca. 68. Converter-se à hora da morte (ou melhor: muito pouco antes) e arrepender-se de todos os pecados. 69. Também ajuda [for the happy few]. 70. Deixar de sentir apetite sexual (lá por volta dos 87 anos).

O Tempo*

«Sabem como se diz “nunca” na gíria do campo de concentração? “Morgen Früh”, amanhã de manhã.»
Primo Levi, Se Isto É um Homem (traduzido por Simonetta Cabrita Neto)
*Enciclopédia de Bolso do Groucho, bloco-notas A5, capa cinza, fl.15b, bolso interior esquerdo do casaco azul.

Oświęcim II-Birkenau, 3

Oświęcim I, 2

Oświęcim I, 1

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Fátima: 1. Antropónimo árabe transformado em topónimo do local de destino de uma das grandes peregrinações do catolicismo. 2. Cidade construída ao redor de uma azinheira. 3. O mais gordo mealheiro da Igreja Católica em Portugal, com toda a justiça isento de impostos. 4. «Ainda há segredos por revelar…»

F.C.Porto: 1. Um clube regional, para não dizer de bairro. 2. Deve os títulos nacionais e internacionais a jogadas pouco transparentes. 3. Vai-se afundar, quando Pinto da Costa sair (já devia ter saído há muito, aliás).

Feira do Livro: Ao menos, durante o tempo que dura, o Parque Eduardo VII serve para actividades um bocadinho mais decentes, embora igualmente acaloradas.

Felgueiras, Fátima: 1. Ainda lhe há-de ser feita justiça. 2. O povo, aliás, tenciona fazer-lha, nas urnas. 3. A nossa modesta contribuição para a criminalidade do Rio de Janeiro.

26 agosto 2005

Viver duas vezes























"We write to taste life twice, in the moment and in retrospection."

Anaïs Nin [«uma das melhores de sempre», segundo a minha amiga Elsa Margarida]

Hélène, 2














Ces lignes que jamais
tu ne lis ces ratures
en moi où la faille
commence-t-elle pour que manque
cette vie qui jamais
ne devait manquer

Condição Humana*

«Todos descobrem, mais tarde ou mais cedo na vida, que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos se detêm a pensar na consideração oposta: que uma infelicidade perfeita é, igualmente, não realizável. Os momentos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza: derivam da nossa condição humana, que é inimiga de tudo o que é infinito.»
Primo Levi, Se Isto É um Homem (traduzido por Simonetta Cabrita Neto)
*Enciclopédia de Bolso do Groucho, bloco-notas A5, capa cinza, fl. 29c, bolso interior esquerdo do casaco azul.

Cara a cara

— Olá, Groucho!
— Olá…
— Está tão sério… Nem parece o mesmo Groucho que me atendeu o telefone hoje de manhã. Passa-se alguma coisa?
— Hãããã…? Alguma coisa? Não, não…
— Está esquisito, homem!
— Não… O senhor estava… estava ali a… enfim, a…
— Estava o quê? Diga. O gato comeu-lhe a língua ou que é isso? Até parece que está a falar com reticências!
— O senhor estava ali… a conversar com a menina Clara, não era?
— Estava, porquê?
— Por nada, pareceu-me que estava a conversar… com a menina Clara, pronto…
— Ui, ui, que é lá isso, Groucho? Temos ciumeira, é?
— Hã? Não, não, que disparate… Então, eu, com ciúmes, ora essa, Sr. Rubim, por amor de Deus…! Mas…falavam de quê, se não é indiscrição?
— Quer saber do que é que falávamos?! Está a ficar um mordomo muito coscuvilheiro, não?
— Mera curiosidade, sabe como é…
— Sei como é, sei! Oiça, meta-se na sua vida e deixe lá a menina Clara em paz, está bem? E, já agora, sirva-lhe um aperitivo, que nós a seguir vamos jantar. Para mim, nada.
— Ah, vão jantar?...
— Vamos, porquê? Tem alguma coisa contra? Veja lá!
― Pronto, pronto. Não quero que o senhor se zangue. Ainda me atiça aí os cães de guarda e é um sarilho…
— (vai para levantar a voz, mas contém-se no último instante) Ó homem, ponha-se a mexer!...

Monólogo exterior (devaneio)

/.../
não se pode dizer que me tenha dado grande atenção, aliás... nenhuma, atenção nenhuma... o normal, o usual, o trivial na minha vida com mulheres, aliás nenhuma: passam, olham, algumas olham, quero dizer, desatentas, como se eu fosse um prédio, em ruínas ou desabitado, e continuam... mas esta... acarinhei... bom, acarinhei a ideia, claro, não a rapariga propriamente... se bem que... não me atrevo, claro, mas, se bem que... espreito para a sala agora... lá está ela, muito compenetrada, sentada e sozinha, a ler... o quê? ah poesia, parece poesia, aposto que se eu passar em frente nem levanta os olhos do livro, nem sequer para dizer qualquer coisa como Groucho, por acaso não tem um lápis à mão? ... e por acaso nem tenho, mas para que havia ela de querer um lápis... não, melhor não passar, manter distância discreta, nada difícil, ela vem cá pouco... oh, quem é aquele que ali vai? oh não! logo ele... que lhe quer ele, c' um raio! que lhe quer ele?
/.../

Baskin, escaravelho

O regresso do filho do dia crItico

- Sabe?
- O queh?
- Isto nan-u tem sentido.
- Isto?
- Sim, este diahlogo.
- Porque diz isso?
- Estive a pensar.
- Esteve a pensar.
- Sim, estive a pensar.
- E entan-u?
- Soh se pode ir atE um certo ponto.
- AtE um certo ponto?
- Sim. Depois parte-se o elahstico.
- O elahstico?
- Sim. Estica demais.
- Concordo.
- Concorda?
- Porqueh? Acha estranho?
- Pois acho.
- Sabe, tambenm tenho pensado nisso.
- Nisso?
- No elahstico.
- Na resistenncia do material.
- No atrito da linguagem.
- No chan-u da realidade.
- Na superfIcie de contacto.
- Na teia de aranha.
- Na teia de aranha?
- Sim, na teia que prende a mosca.
- A mosca?
- A mosca que zumbe contra a janela.
- A borboleta que toca no jasmim.
- No jasmim?
- No jasmim que enche o ar de perfume.
- EflUvio evanescente.
- Sinal crItico do dia.
- Surpreende-me, Groucho.
- E o Sr. tambenm.

Hélène Dorion, 1



Aucune flèche n'atteint / la cible invisible de l'amour.

Aucun arc ne se tend / au milieu du coeur / l'archer déborde l'espace / comme l'oiseau dans son vol.

Clarice, quatro

A LUCIDEZ PERIGOSA

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa actual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que a minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Família: 1. Há a biológica, a tradicional, a monoparental, a adoptiva e a gay & lésbica. 2. As duas primeiras estão em crise.

Fascismo: Em Portugal, nunca existiu.

Fascistas: Os professores, os gramáticos, os encenadores, os realizadores, os maestros, os polícias, os GNR’s, os tropas, os directores (sobretudo os de escolas), os ministros, os empresários, os gestores, os padres, os pais.

Cães de guarda (2)

― Estou, Groucho?
― (contendo o riso) Sim, sou eu, Sr. Rubim.
podemos falar?
― Já, já… Até tenho uma coisa para lhe perguntar. (Abafa uma gargalhada.)
― O quê?
― Quem não tem cão, guarda com blogue?
― Que gracinha, Groucho…
― (Já não se contém.) Ah! ah! ah! ah! ah! E, oiça, blogue que ladra não morde? Ah! ah! ah! ah! ah!
― Ó homem, pare com isso!
― E se os blogues ladram, mas a caravana passa? (a bandeiras despregadas) Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah!
― Arre, que está impossível! (Desliga violentamente.)

Cães de guarda

― Estou sim, quem fala?
― Estou, é você, Groucho?
― Sim. Quem…?
― Sou eu, o Rubim.
― Oh Sr. Rubim, não estava a reconhecer-lhe a voz! É um prazer ouvi-lo. Nunca mais apareceu por cá…há algum problema?
― Problema nenhum, Groucho.
― Felizmente! Anda distraído com outras coisas, não é?
― Pois, acho que sim.
― Então e ligou-me por algum motivo especial? Quer que eu chame algum dos cavalheiros ao telefone? Ou a menina Clara?
― Não, é mesmo consigo que eu quero falar.
― Ah sim? Diga.
― Quero fazer-lhe uma pergunta.
― Sou todo ouvidos.
― O que é que o Groucho pensa dos blogues?
― Dos blogues? O que é que eu penso?... Ora essa, não penso!
― Não pensa?!
― Não. Não gosto e portanto nem me dou ao trabalho de pensar. Não gosto, pronto.
― O Groucho não gosta de blogues? Mas porquê?
― Ó Sr. Rubim, o senhor julga que eu estou neste clube por quê? Pelo salário? Pelas férias que não tenho? Pela bela reforma que nunca vou receber?
― Não… Mas o que é que este clube tem a ver com isso de o Groucho não gostar de blogues?
― Com franqueza, tem tudo a ver! Eu só estou bem em sítios onde as pessoas falam umas com as outras de viva voz, onde se possam olhar nos olhos, onde digam o que têm a dizer cara a cara, enfim, onde a conversa seja real, faço-me entender?
― Perfeitamente, mas nunca imaginei que… Quer dizer então que os blogues…
― É tudo a fingir que estão a falar, a fingir que estão ali, a fingir que conversam, simulação de cabo a rabo, é o que eu lhe digo. Mas ainda que mal pergunte: a que propósito vem isto?
― Sabe, é que anda aí uma discussão tremenda sobre os blogues.
― Perda de tempo…
― Olhe que não sei, Groucho. Muita gente põe a hipótese de que os blogues possam ser os cães de guarda do mundo mediático, da imprensa clássica e…
― Possam ser o quê?
― Os cães de guarda, percebe?
― Os cães… Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! (e ri à gargalhada estrondosamente).
― …
― Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! (e não pára de rir).
― Groucho!...
― (por entre as gargalhadas) Ligue-me…ah! ah! ah! ah!…mais daqui a pouco…ah! ah! ah! ah!…agora não consigo…ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah!
― Bolas… (E desliga.)

O Blindfold Test de Groucho

- Antes de mais, Sr. Baptista, deixe-me agradecer-lhe por…
- Pare lá com isso, Groucho! Será que estas sessões têm de começar sempre por essa demonstração de servilismo da sua parte? Mas que coisa!
- O senhor confunde servilismo com educação e maneiras! Mas enfim, eu já nem me devia espantar, vindo isso de quem vem…
- E o que significa isso, agora? [Levanta-se e cresce para Groucho] Aonde quer você chegar? Seja claro, não vá eu simplesmente acabar com esta treta, antes mesmo de ela começar.
- Pronto, pronto, já cá não está quem falou.
- Pois olhe, eu vejo à minha frente uma versão muito convincente da pessoa que falou e pretende já cá não estar…
- Infausta hora, aquele em que decidi dar à luz este teste! Ando há semanas a sujeitar-me às chalaças e sarcasmos dos membros deste clube, supostamente grandes especialistas na coisa poética e todos à uma incapazes de acertar num poema que seja.
- Num poema não, desculpe! Num autor dum poema. É coisa muito diferente e sobretudo muito mais irrelevante. Não é por não conseguir descortinar um nome de autor na populosa floresta da nossa poesia que um indivíduo é mais ou menos considerável como «especialista» ou «autoridade», ora essa! Você, Groucho, é que confunde a poesia com um Dicionário de Autores.
- Lá vamos nós na espiral da agressão! Enfim, o melhor é passarmos à acção, se assim o posso dizer (é metáfora, não?). Aqui tem o poema que lhe coube. Faça o favor de ler.
- Dê cá isso [arranca o texto da mão de Groucho].


Post-Scriptum

Fui vê-lo e revê-lo à clínica: a coragem
de alguém que sabe da sua Fortuna e que
ri e projecta, o seu Brahms, o seu
Chopin, a Callas, o retrato assinado da
Schwarzkopf. Falámos de tudo, da amizade,
de tudo. Menos do Tempo ­- que nos
devora, como naquele Chronos devorador de
seus filhos, do Goya negro. Acontece
escrever: dedos de borracha,
contagiantes, a avidez do sangue, a
lógica de alguns papéis e répteis,
vomitados e sujos de leite, derramados
na cama… preciso compor _ e deixar
aqui registado o seu inenarrável e musical
divertimento de planta.

Palavras con-fusas (musicais),
pequeníssimas percepções:
fiquei impressionado com o ser digno,
De hominis dignitate, o apreciar e tudo
sorver, o cigarro que pedia sofregamente
e acendia e reacendia.
Deixei-lhe o meu Rilke florentino e,
dos quatro afectos de S. Bernardo, amor,
medo, tristeza, alegria,
guardei o último.
Sinto e sei onde ele está agora:
na toca do cordeiro místico, escutando,
tocando.


- Era o que receava: calhou-me uma coisa de gabinete de curiosidades…
- Essa agora?! Um poema em que se trata de coisas tão sensíveis como a iminência da morte de um amigo e a fragilidade da vida, mas também daquilo que nos permite sustentar a ilusão da nossa imortalidade: a música, a poesia…
- Pois, mas com um bocadinho de referências a mais, não? Arte, mitologia, filosofia, mística… Em todo o caso, vá lá eu saber de quem é isto! Ainda para mais, sou um leitor bissexto de poesia contemporânea, e isto é coisa decerto contemporânea.
- Um esforçozinho, Sr. Baptista, vá lá! Pense na imagem que deixará aos seus filhos…
- Vê-se mesmo que não tem filhos, Groucho! Então a imagem que deixamos aos filhos depende de concursos? Havia de ser bonito, com o que grassa de ignorância neste país, pelo que podemos observar em todos os concursos de TV… Pobres filhos, pobre geração traumatizada. Enfim, também não me rendo à primeira, que não lhe quero dar esse prazer fácil. Logo a si!... Ora bem, isto podia ser, pelo lado metafísico cum cultura, do Pedro Tamen, apesar de faltarem aqui as circunvoluções sintácticas dele. Ou do Fernando Guimarães. Já do Echevarría é que não, que esse escreve sempre o mesmo poema, do ponto de vista formal, e não apenas: aquele magma opaco e desentranhado de si mesmo, o que não bate certo com isto. Posso apostar no Tamen ou no Guimarães?
- Não é regulamentar apostar em dois poetas ao mesmo tempo, mas como eu sou uma pessoa generosa…
- Deixem-me rir…
- …como eu sou uma pessoa generosa, até aceito. Só que, lamento muito, não é de nenhum deles.
- Pois, já percebo por que razão aceitou uma aposta anti-regulamentar… Para dizer a verdade, isto podia também ser do João Miguel Fernandes Jorge. A dicção até tem a ver com a dele, embora no Jorge o discurso seja menos corrido e mais quebrado e lacunar. Será dele?
- Longe disso, senhor.
- Está agora a parecer-me que é alguém dos anos 70, mas há algo que não bate certo. O tom íntimo na visita à clínica podia ser do Joaquim Manuel Magalhães (lembra um poema-posfácio dele a uma antologia do Ruy Cinatti, com uma visita também ao hospital), mas o cordeiro místico torna-se discrepante. E o mesmo cordeiro funcionaria bem num poema do A. M. Pires Cabral, mas não o estendal de referências eruditas. O Hélder Moura Pereira é mais pop e techno, também não bate certo.
- Pode ser um poeta novíssimo, não?
- Não vejo quem. Com esta cultura musical, só o Manuel de Freitas, mas esse não se entusiasma com os quatro afectos de S. Bernardo ou, de novo, o cordeiro místico. Ná, desisto, diga lá de quem é isto.
- Bom, nem farei comentários a mais este falhanço, e vindo de quem vem…
- Sempre retorcido: diz que não faz comentários e acaba de o fazer.
- Satisfaço-o e corto cerce qualquer divagação.
- Aprovo e aplaudo a mãos ambas.
- O poema é de Carlos Couto Sequeira Costa, do livro Notebooks (1997).
- Quem?!
- O mesmo autor que, quando publica na área da filosofia, com predominância da estética, se assina Carlos M. Couto De S. C. Obra vasta, senhor.
- Era o que eu dizia: gabinete de curiosidades. Está bem para si, desde que o pudéssemos lá expor, devidamente empalhado!
- Tsch, tsch! Sempre esta deplorável falta de fair play! Um livro tão bom, que culpa tenho eu que o senhor não saia do Camilo para a luz do dia?
- Com muita honra, meu caro. Ao menos, os títulos dos livros do Camilo são vernaculares, não inglesices para estar à la page.
- «Inglesices à la page?» Mas isso é contradição nos termos (ou melhor: nos idiomas), não? Sabe o que lhe digo? Auf Wiedersehen, Goodbye, Vaya com Dios!
- Post Scriptum: vá mas é ver se esfola o cordeiro místico! E, agora que o teste acabou, deite-o pelo cano, que é o que ele merece.
- Acabou nada, ora essa?!
- Como, não acabou?
- Já se esqueceu da Clara Antunes, seu crítico falocrata falhado?
- Mas… Então ela acaba de chegar e você vai já submetê-la a esta tortura? Só por cima do meu cadáver!
- Tsch, tsch! Sempre machista, como se ela não se pudesse defender sozinha. Lamentável, senhor, lamentável. O feminista em mim está sem palavras… Tsch, tsch!
- Pois eu sugiro uma palavrinha económica, para deixar de o aturar, e ao feminista em si: FIM.

Homenagens a Malinowski (3)


(Nas Ilhas Trobriand, durante a 1ª Guerra Mundial.)

25 agosto 2005

Vasily Vereshchagin

Uzbek Woman in Tashkent (1873)

Droláticos e pilheriáticos (série de grande formato)

O VERÃO E AS MULHERES

Talvez tenha acabado o verão. Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol é muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão.
Estamos tranquilos. Fizemos este verão com paciência e firmeza, como os veteranos fazem a guerra. Estivemos atentos à lua e ao mar; suamos nosso corpo; contemplamos as evoluções de nossas mulheres, pois sabemos o quanto é perigoso para elas o verão.
Sim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de Janeiro elas sentem o coração lânguido e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam a dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes os olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro.
Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.
Entregam-se a redes; é sabido, ao longo de toda a faixa tropical do globo, que as mulheres não habituadas a rede e que nelas se deitam ao crepúsculo, no estio, são perseguidas por fantasias e algumas imaginam que podem voar de uma nuvem para outra nuvem com facilidade. Sendo embaladas, elas se comprazem nesse jogo passivo e às vezes tendem a se deixar raptar, por deleite ou preguiça.
Observei uma dessas pessoas na véspera do solstício, em 20 de Dezembro, quando o sol ia atingindo o primeiro ponto do Capricórnio, e a acompanhei até às imediações do Carnaval. Sentia-se que ia acontecer algo, no segundo dia da lua cheia de fevereiro; sua boca estava entreaberta: fiz um sinal aos interessados, e ela pôde ser salva.
Se realmente já chegou o outono, embora não o dia 22, me avisem. Sucederam muitas coisas; é tempo de buscar um pouco de recolhimento e pensar em fazer um poema.
Vamos atenuar os acontecimentos, e encarar com mais doçura e confiança as nossas mulheres. As que sobreviveram a este verão.

De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fls. 82-83.

Monólogo exterior (hipotético)

/.../ como terá sido… como poderia ter sido… como foi... como havia de ser... o dia em que ela aqui chegou…

— Muito bom dia, menina Clara. Se eu fosse poeta, e parnasiano, saudaria em si o primeiro raio de sol que penetra esta casmurrice soturna... Não sendo, limito-me a dar-lhe as boas vindas.
— Bom dia, Sr. Groucho, mui...
— Basta Groucho, é como todos me tratam aqui.
— Não sei se gosto, ou melhor, não aprovo. Por muita consideração que tenha por estes senhores, e pode crer que é muita, parece-me que o tratam com demasiada familiaridade.
— Não a aconselho a intentar mudanças dessas, menina Clara. Aliás… posso tratá-la assim... menina Clara?
— … acho que sim, sei lá… Não se preocupe, não venho mudar nada. Nem posso, sou só candidata estagiária, sem direito a voto.
— Uma injustiça, se me permite, uma acabada injustiça.
— Pelo contrário, Sr. Groucho, um privilégio. Olhe que fui escolhida entre mais de cem candidatos.
— Deveras? Razão de sobra para lhe darem direito pleno de voto. A não ser que os cavalheiros queiram incubar uma suffragette…
/.../

O regresso do dia crItico

- Groucho, sabe uma coisa?
- Diga.
- Tem a certeza?
- Diga, diga...
- Tem mesmo a certeza de que posso dizer?
- Pode, homem, pode. Fale ah vontade...
- Viu? Viu o que se passou?
- Nan-u vi nada. O que foi?
- Repare bem nas suas palavras.
- Nas minhas palavras!?
- Sim, nas suas palavras.
- Porqueh?
- Estah a ver. E agora tambenm aconteceu com as minhas.
- Mas aconteceu o queh?
- Posso dizer?
- Caramba, mas tem medo de queh?
- Depois nan-u se admire com o que acontecer.
- Fale, fale, que estou a ficar impaciente.
- Lembre-se que foi voceh que insistiu comigo.
- Fale ah vontade...
- Entan-u cah vai: ficahmos outra vez sem diacrItico.
- Nan-u estou a perceber...
- Jah se esqueceu do dia crItico?!
- Ah! Esse. O senhor E que continua crIptico. Era soh isso o que tinha para me dizer?
- Era. Era isso. Nan-u estava ah espera da sua reassan-u.
- O que E que esperava?
- Sei lah. Uma certa irritassan-u.
- Uma certa irritassan-u? O que E que estah a querer dizer?
- Estah a ver? Estah a ver?
- Mas estou a ver o queh?
- Eu nan-u dizia?
- O queh?
- Que o senhor nan-u reage bem ao dia crItico.
- Ao dia crItico?
- Sim, ao dia crItico sem diacrItico.
- Nan-u seja crIptico. Diga o que tem a dizer.
- Jah disse.
- Entan-u, cale-se. Cale-se.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho

Facilitismo: 1. Impera nas escolas, com excepção das privadas. 2. Há que combatê-lo, e denodadamente!, pois, como diz Maria Filomena Mónica (v.), «os meninos» têm de perceber que a escola é para estudar no duro e não para passar as aulas a enviar sms e fotos em telemóveis 3G com propostas eróticas indecentes. 3. Isso, convenhamos, é coisa que deve ficar reservada aos professores.

Fado: 1. Pode significar coisas tão diversas como os 11 anos do Benfica sem ganhar, o lacrimejar do Presidente Sampaio (v.), os 48 anos de Estado Novo e a longevidade de Salazar (v.), a guerra colonial e a perda das colónias, a inevitável moral das crónicas de Vasco Pulido Valente (v.), a média dos estudantes portugueses do Secundário a Matemática, a sucessão Guterres-Durão Barroso-Santana Lopes, a incapacidade para instituir em Portugal uma real justiça fiscal, a iliteracia (v.) contumaz da população portuguesa, os telemóveis que tocam durante o concerto, a peça de teatro ou a conferência, o número de mortos nas nossas estradas, os incêndios florestais, os jornalistas que dizem na TV, ou escrevem no jornal, que «a candidatura de Soares vem de encontro às expectativas do PS profundo», os jornalistas que na TV, em noite eleitoral, repetem que «faltam apurar x freguesias», ter de votar em Soares ou em Cavaco para presidente, ter de elogiar Durão Barroso como presidente da Comissão Europeia só porque é português, o espectáculo do condutor que deita a beata (ou o maço) pela janela em vez de a colocar no cinzeiro, as derrapagens orçamentais nas obras públicas, os atentados terroristas da Al Qaeda, a reeleição de Bush, a cooptação de ditadores no mundo árabe, as fraudes eleitorais em África, os genocídios no Tibete, no Ruanda ou no Sudão, a corrupção em Angola ou no Brasil, os escândalos sexuais na política americana, a substituição periódica dos administradores da CGD, com indemnização cristã dos removidos, as reeleições, os défices e os discursos etilizados de Alberto João Jardim, o «Não pagamos!» dos estudantes universitários, a compra dos submarinos para a nossa frota, a Bombardier, a omnipresença mediática de Luís Delgado, a obsessão de Pacheco Pereira com o Partido Comunista e com Cavaco Silva, os tabus do mesmo Cavaco, os eternos tabus do eterno António Vitorino, os anúncios da OTA e do TGV, o programa do Prof. Marcelo, comprar o Expresso aos sábados, etc. 2. Pode trocar-se a ordem das vogais, que o sentido é mais ou menos o mesmo. 3. É também uma musiqueta lisboeta, tristonha e repetitiva, nascida em bordéis e exportada por Amália com sucesso para França & resto do mundo, hoje estudada com bolsas da Gulbenkian e da FCT, e para a qual certos poetas, com especial destaque para Vasco Graça Moura e Manuel Alegre, gostam de fornecer versos rimados, por serem democráticos. Eduardo Prado Coelho aprecia muito, sobretudo na versão pós-moderna (Mísia & Co.). 4. Dizer, com um gesto de enfado: «Essa mania de que o fado não vale nada é coisa de pseudo-intelectuais ultrapassados. Pois se até o Jorge Silva Melo, o Graça Moura, o La Féria, o João Braga, a Rita Ferro e tantos outros, não passam sem ele… Além de que hoje é World Music (v.). Vide a Marisa!».

O atavismo de ser português

«Não se nasce português. Fica-se português. É o atavismo…»


João Vuvu, in Vai e Vem (2002), de João César Monteiro

24 agosto 2005

Droláticos e pilheriáticos (série de grande formato)

SOBRE O INFERNO
«O Inferno são os outros» — diz esse desagradável senhor Sartre no final de Huis Clos, e eu respondo: «eu que o diga!» Hoje estou com um pendor para confissões; vontade de abrir meu peito em praça pública; quem for pessoa discreta e se aborrecer com derrames desses, tenha a bondade de não continuar a ler isto.
Conheci um homem que estava tão apaixonado, tão apaixonado por uma mulher (acho que ela não gostava dele), que uma vez estávamos nós dois num bar e no meio da conversa ele disse fremente:
— Isso é o maior verso da língua portuguesa!
Fiquei pateta, pois não escutara verso nenhum. Ele então pediu silêncio, e que ouvisse. Havia conversas na mesa ao lado, ruídos vários lá dentro, autos e ônibus que passavam, um bonde na outra rua, um violoncelo tocando num rádio qualquer, e lá no finzinho disso, longe, longe, um outro rádio com o samba que mal se podia ouvir e só era reconhecível pelos fragmentos de música que nos chegavam. O maior verso da língua portuguesa estava na letra daquele samba e avisava que «Emília, Emília, Emília, eu não posso mais».
Ele não podia mais. Ninguém pode mais com o inferno de Emília e ninguém sai dele, pois ninguém pode sair do inferno. Estou informado de que alguns moços lêem às vezes o que escrevo, e isso me comove e ao mesmo tempo me dá um senso de responsabilidade. Sim, devo pensar nos moços e cuidar de dizer coisas que não os desorientem. Falar do inferno, por exemplo, é mau. Dante e outros espalharam muitas notícias falsas a respeito, e a pior delas é que para lá vão os culpados.
Na verdade para lá se vai no caminho da maior inocência, assobiando levianamente talvez, escutando os passarinhos que trinam de alegria o coração e com o passo estugado e leve de quem sente um grande prazer em andar. Ah, caminhos de vosso corpo, distante amada. Pensar que neles passearam em tempo antigo minhas mãos, estas mesmas mãos que estão aqui; ah, queridos caminhos, inesquecíveis e divinos, quem diria que me haveríeis de conduzir a esta ilha de silenciosa tortura e atra solidão. Emília, Emília, Emília! Sabei, moços, que há inferno, e não fica longe; é aqui.
De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fls. 80-81.