- Antes de mais, Sr. Baptista, deixe-me agradecer-lhe por…
- Pare lá com isso, Groucho! Será que estas sessões têm de começar sempre por essa demonstração de servilismo da sua parte? Mas que coisa!
- O senhor confunde servilismo com educação e maneiras! Mas enfim, eu já nem me devia espantar, vindo isso de quem vem…
- E o que significa isso, agora? [Levanta-se e cresce para Groucho] Aonde quer você chegar? Seja claro, não vá eu simplesmente acabar com esta treta, antes mesmo de ela começar.
- Pronto, pronto, já cá não está quem falou.
- Pois olhe, eu vejo à minha frente uma versão muito convincente da pessoa que falou e pretende já cá não estar…
- Infausta hora, aquele em que decidi dar à luz este teste! Ando há semanas a sujeitar-me às chalaças e sarcasmos dos membros deste clube, supostamente grandes especialistas na coisa poética e todos à uma incapazes de acertar num poema que seja.
- Num poema não, desculpe! Num autor dum poema. É coisa muito diferente e sobretudo muito mais irrelevante. Não é por não conseguir descortinar um nome de autor na populosa floresta da nossa poesia que um indivíduo é mais ou menos considerável como «especialista» ou «autoridade», ora essa! Você, Groucho, é que confunde a poesia com um
Dicionário de Autores.
- Lá vamos nós na espiral da agressão! Enfim, o melhor é passarmos à acção, se assim o posso dizer (é metáfora, não?). Aqui tem o poema que lhe coube. Faça o favor de ler.
- Dê cá isso [arranca o texto da mão de Groucho].
Post-ScriptumFui vê-lo e revê-lo à clínica: a coragem
de alguém que sabe da sua Fortuna e que
ri e projecta, o seu Brahms, o seu
Chopin, a Callas, o retrato assinado da
Schwarzkopf. Falámos de tudo, da amizade,
de tudo. Menos do Tempo - que nos
devora, como naquele Chronos devorador de
seus filhos, do Goya negro. Acontece
escrever: dedos de borracha,
contagiantes, a avidez do sangue, a
lógica de alguns papéis e répteis,
vomitados e sujos de leite, derramados
na cama… preciso compor _ e deixar
aqui registado o seu inenarrável e musical
divertimento de planta.
Palavras con-fusas (musicais),
pequeníssimas percepções:
fiquei impressionado com o ser digno,
De hominis dignitate, o apreciar e tudo
sorver, o cigarro que pedia sofregamente
e acendia e reacendia.
Deixei-lhe o meu Rilke florentino e,
dos quatro afectos de S. Bernardo, amor,
medo, tristeza, alegria,
guardei o último.
Sinto e sei onde ele está agora:
na toca do cordeiro místico, escutando,
tocando.
- Era o que receava: calhou-me uma coisa de gabinete de curiosidades…
- Essa agora?! Um poema em que se trata de coisas tão sensíveis como a iminência da morte de um amigo e a fragilidade da vida, mas também daquilo que nos permite sustentar a ilusão da nossa imortalidade: a música, a poesia…
- Pois, mas com um bocadinho de referências a mais, não? Arte, mitologia, filosofia, mística… Em todo o caso, vá lá eu saber de quem é isto! Ainda para mais, sou um leitor bissexto de poesia contemporânea, e isto é coisa decerto contemporânea.
- Um esforçozinho, Sr. Baptista, vá lá! Pense na imagem que deixará aos seus filhos…
- Vê-se mesmo que não tem filhos, Groucho! Então a imagem que deixamos aos filhos depende de concursos? Havia de ser bonito, com o que grassa de ignorância neste país, pelo que podemos observar em todos os concursos de TV… Pobres filhos, pobre geração traumatizada. Enfim, também não me rendo à primeira, que não lhe quero dar esse prazer fácil. Logo a si!... Ora bem, isto podia ser, pelo lado metafísico
cum cultura, do Pedro Tamen, apesar de faltarem aqui as circunvoluções sintácticas dele. Ou do Fernando Guimarães. Já do Echevarría é que não, que esse escreve sempre o mesmo poema, do ponto de vista formal, e não apenas: aquele magma opaco e desentranhado de si mesmo, o que não bate certo com isto. Posso apostar no Tamen ou no Guimarães?
- Não é regulamentar apostar em dois poetas ao mesmo tempo, mas como eu sou uma pessoa generosa…
- Deixem-me rir…
- …como eu sou uma pessoa generosa, até aceito. Só que, lamento muito, não é de nenhum deles.
- Pois, já percebo por que razão aceitou uma aposta anti-regulamentar… Para dizer a verdade, isto podia também ser do João Miguel Fernandes Jorge. A dicção até tem a ver com a dele, embora no Jorge o discurso seja menos corrido e mais quebrado e lacunar. Será dele?
- Longe disso, senhor.
- Está agora a parecer-me que é alguém dos anos 70, mas há algo que não bate certo. O tom íntimo na visita à clínica podia ser do Joaquim Manuel Magalhães (lembra um poema-posfácio dele a uma antologia do Ruy Cinatti, com uma visita também ao hospital), mas o cordeiro místico torna-se discrepante. E o mesmo cordeiro funcionaria bem num poema do A. M. Pires Cabral, mas não o estendal de referências eruditas. O Hélder Moura Pereira é mais pop e techno, também não bate certo.
- Pode ser um poeta novíssimo, não?
- Não vejo quem. Com esta cultura musical, só o Manuel de Freitas, mas esse não se entusiasma com os quatro afectos de S. Bernardo ou, de novo, o cordeiro místico. Ná, desisto, diga lá de quem é isto.
- Bom, nem farei comentários a mais este falhanço, e vindo de quem vem…
- Sempre retorcido: diz que não faz comentários e acaba de o fazer.
- Satisfaço-o e corto cerce qualquer divagação.
- Aprovo e aplaudo a mãos ambas.
- O poema é de Carlos Couto Sequeira Costa, do livro
Notebooks (1997).
- Quem?!
- O mesmo autor que, quando publica na área da filosofia, com predominância da estética, se assina Carlos M. Couto De S. C. Obra vasta, senhor.
- Era o que eu dizia: gabinete de curiosidades. Está bem para si, desde que o pudéssemos lá expor, devidamente empalhado!
- Tsch, tsch! Sempre esta deplorável falta de
fair play! Um livro tão bom, que culpa tenho eu que o senhor não saia do Camilo para a luz do dia?
- Com muita honra, meu caro. Ao menos, os títulos dos livros do Camilo são vernaculares, não inglesices para estar
à la page.
- «Inglesices à la page?» Mas isso é contradição nos termos (ou melhor: nos idiomas), não? Sabe o que lhe digo?
Auf Wiedersehen, Goodbye, Vaya com Dios!
-
Post Scriptum: vá mas é ver se esfola o cordeiro místico! E, agora que o teste acabou, deite-o pelo cano, que é o que ele merece.
- Acabou nada, ora essa?!
- Como, não acabou?
- Já se esqueceu da Clara Antunes, seu crítico falocrata falhado?
- Mas… Então ela acaba de chegar e você vai já submetê-la a esta tortura? Só por cima do meu cadáver!
- Tsch, tsch! Sempre machista, como se ela não se pudesse defender sozinha. Lamentável, senhor, lamentável. O feminista em mim está sem palavras… Tsch, tsch!
- Pois eu sugiro uma palavrinha económica, para deixar de o aturar, e ao feminista em si: FIM.