12 agosto 2005

Judd Street, 2

caminha agora comigo ao longo da rua no sentido Sul-Norte. são menos de duzentos metros até ao cruzamento. repara que te moves no fluxo que pensas que descreves. vais atento ao movimento matinal. queres sorver esse rebuliço saindo da tua caixa craniana. podes parar e fazer de conta que as pessoas passam por ti. podes então tentar de novo a partir desse ponto. vinte e duas em menos de um minuto, só neste lado da rua. muitas devem vir da estação. vão entrar às nove e meia. um homem alto, cabelos claros, curtos, de fato cinza escuro, camisa branca, gravata, pasta na mão, a passadas largas. o rosto num relance apenas. quase todos seguem a passadas largas. mas talvez seja o efeito de estares parado. imaginas-te então a ver para trás e para a frente. a mudar os pontos de observação, a rodar a cabeça. a passar do lado esquerdo para o lado direito da rua. a parar em vários pontos dessa passagem e a fixar o olhar naqueles que aleatoriamente passam no teu campo de visão. chinelas, as unhas cor de vinho, saia castanha de algodão indiano, blusa vermelha, cabelos negros, um rosto que não consegues recordar de uma mulher que já só podes descrever de costas. a menos que faças uma figura compósita, juntando fragmentos que conseguiste observar e ordenando-os segundo uma hierarquia, cuja pré-definição te escapa, mas de cuja lógica desconfias. acho que é assim que funciona. ou a menos que sigas alguém ao acaso e lhe digas que estás a fazer uma descrição e que precisas de encontrar as palavras justas e que para isso precisas de observar bem. talvez tenhas de acompanhar esse transeunte até ao emprego. correr diante dele. ao lado dele. vê-lo bem. talvez nem vá para o emprego. tropeçaste na berma do passeio nesse afã. e dás-te conta de que deixaste entretanto a rua para trás. e perdeste o teu ponto de apoio, a lógica do que tentavas fazer. talvez haja outra possibilidade. um narrador cctv. veres tudo lá de cima, da janela do terceiro andar. definires bem os planos. as trajectórias dos transeuntes em cada lado da rua. os que vão no passeio de cada um dos lados. os que de repente decidem atravessar. os que vão mais depressa e ultrapassam os outros. os que vão em sentidos opostos e se cruzam. os que querem passar à frente e tocam em alguém e pedem desculpa. mas não te consegues fixar em quase nada. os carros distraem-te. os rostos não se chegam a definir verdadeiramente. o mundo fica demasiado oblíquo. e o que tu querias não era o conjunto mas o esboço, digamos, de cada pessoa que se cruza contigo durante os três minutos que levas a chegar ao cruzamento. deste lado da rua, ou daquele. a rapariga que abre o café a esta hora. o senhor que lê o jornal junto ao gradeamento. a mãe que empurra o carrinho dos gémeos. as duas crianças na relva do jardim. homens e mulheres de meia idade, muitos homens e mulheres jovens, alguns turistas, poucas crianças, poucos velhos. caucasianos, asiáticos, negros. afinal é só uma espécie de estatística, o ponto médio que outra rua não se importaria de oferecer a essa obsessão descritiva.