Monólogo exterior (manhã)

/…/ ninguém, previa-se, ninguém apareceu, nada de telefonemas, um, mas enganado, tédio toda a tarde, nem falo da noite… devia ter saído, devia ter ido apanhar sol, mas onde? sempre o mesmo problema, gente e carros, carros e pó, barulho por todo o lado: onde o sossego? ninguém me diz, mesmo que eu pergunte… e não pergunto, deixo-me ficar, fico, aqui mesmo, melhor do que em qualquer outro lado, mas sem ocupação, que diabo, sem ocupação, decidimos manter a decisão de não o deixar ir de férias … porque não reajo? porque não vou embora? já fui uma vez… bom, de facto fingi que fui, não cheguei a ir, nem eles quiseram apurar o caso, esqueceram-se? nem sentiram curiosidade de saber onde estive escondido… não serviu de nada fazer-me valente, ameaçador… tretas, tudo farronca inconsequente, não é normal, caramba, até muito anormal… dar-se-á o caso de ser eu o verdadeiro casmurro? eu, não eles? eu, o paradigma da casmurrice… mas o que é ser casmurro afinal? fechado, metido consigo, teimoso, rabugento… será? e que seja, isso não pede férias? pede, pede férias, olha-os lá, um aqui outro ali, sei lá onde… mas a ser assim o tempo todo… ninguém com quem conversar? nenhum assunto? nenhuma ordem? tédio, ócio, desocupação… um movimento cívico vinha a calhar, mas qual? Freitas à presidência… humm, era bom, Freitas é o candidato de todos os candidatos, quem quer que o defronte ganha, dava apoio universal, esse movimento, como ninguém se lembrou disso? se calhar já, nem tenho lido jornais… mas por outro lado era capaz de ser equívoco, demasiado equívoco… não, política não é para mim, quem sabe tento a fotografia… e não terei de sair de casa? ir para o campo, ou para o rio… praia é que não me parece… se ficar em casa… se ficar em casa posso fazer auto-retratos… sim, é boa ideia, enquanto tento e não tento, aprendo e não aprendo, ao menos não ofendo ninguém, quero dizer, não ofendo terceiros, sei lá o que farei a mim mesmo… sim, a fotografia, não é má ocupação /…/
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