03 março 2006

Casa de férias 6, adenda final

Mesa encostada à janela, de noite. Chove. A luz vem de fora, mas há também duas velas minúsculas na mesa. Jantam. Em fundo, música do último verão. Falam alto, animadamente.
— Afinal, você é mesmo um metafísico de todo o tamanho, ó Sr. Mourão!
— Nada disso, Groucho. Estava apenas a sublinhar que isto é tudo forma, matriz.
— Eu não digo? Até o Matrix lhe serve!
— Matriz, Groucho, matriz, não confundamos. Mas deixe-me pôr as coisas noutros termos.
— Ponha, ponha. E deite aí um bocado mais de massa. Disse que isto era tricolor integral?
— Qualquer coisa assim. Esses canudinhos verdes são de espinafre, os laranja de cenoura, os castanhos acho que é só trigo ou lá que coisa é a massa.
— A gente come a realidade, mas não tem de saber o que é a realidade, certo?
(riem ambos)
— Mas então deixe-me pôr as coisas assim, Groucho: é como se a arte fosse um jogo de dados. Mas digamos que em vez de você lançar dois dados, lança vinte. E que cada dado, em vez de ter seis faces, tem doze.
— Mas ó Sr. Mourão, você sabe matemática suficiente para o raciocínio que me parece que aí vem?
— Nada, Groucho, usemos apenas a imaginação. Um jogo assim tem combinatórias que cheguem para o universo inteiro, mas suponho que matematicamente, ou será estatisticamente?, é possível dizer-se que todas as combinatórias acabarão por sair.
— Suponhamos que sim.
— Chamemos a isso a lei interna do jogo. Para que as combinatórias se realizem, é preciso apenas que alguém lance os dados.
— Boa piada, estou a ver. Mozart e Picasso e Joyce como jogadores de dados...
— Mas o ponto é que desde que alguém lance os dados, não importa quem, as combinatórias saem.
— E por isso você diz que se Mozart não tivesse existido, um outro compositor, ou um conjunto de compositores, teriam necessariamente realizado todas as obras que Mozart realizou.
— Nota por nota, Groucho.
— Não posso dizer que esteja convencido, nem que não seja metafísico. Mas isso deixa-o a si em que lugar do jogo?
— Como assim?
— Você vai lançar os dados, Sr. Mourão?
— Mas é isso que lhe estou a explicar, Groucho, a pergunta, como pergunta de responsabilidade por um destino qualquer da arte, não tem sentido. Podemos jantar tranquilamente, está a ver?
— Sim, mas em relação a si, só a si mesmo?
— Ora, Groucho, já viu quantos milhões somos, hoje? De alguma forma, todos nós lançamos os dados. Sai muita coisa repetida, não vale a pena perder o sono com isso.
— Um metafísico tranquilo, estou a ver.
— E que tal este tofu, Groucho? Não comia disto lá no clube, pois não?
Continuam a falar alto, animadamente. Não voltam ao assunto.