
- Sabe que esta coisa dos balanços me tomou conta da imaginação, senhor?
- Ó Groucho, com franqueza… Para o que lhe havia de dar. Com o que aí vai de balanços na blogosfera… Surpreende-me sempre esta ideia de que o universo fica menos caótico, ou mais apaziguado, desde que se ordenem hierarquicamente uns títulos em números pitagóricos (5 e 10, sobretudo). Supunha-o mais céptico, devo confessar.
- Não me deixou explicar… A minha ideia, seguindo a intuição genial de EPC no balanço de 2005, seria, pelo contrário, instabilizar de vez a noção de balanço e, por arrastamento, do universo que ele ordenaria…
- …ordenharia?
- …também dá, sim: ordenharia e ordenaria, já agora.
- E como faria o meu amigo isso?
- É simples. Em vez de fazermos o balanço do ano transacto, porque não fazer desde já o balanço de 2006?
- O meu amigo está sob influência de alguma pastilha?
- O senhor ofende-me! Mas enfim, a vanguarda é sempre injustiçada (veja a recente votação no Louçã…). Nada que surpreenda.
- Mas como quer que eu reaja se o senhor me está a propor um balanço dos livros que ainda nem leu? O morbo contaminou-o, pelo que vejo.
- Mais do que isso, senhor: o que proponho é um balanço dos livros que ainda não foram publicados!
- Que ainda nem foram escritos, quer lá ver?!
- Seria o ideal, de facto. Mas, como perceberá facilmente, o que estou a propor é moderar, ou morigerar, essa pura virtualidade do futuro por meio de um critério temporal restritivo: o ano de 2006. Acho por isso difícil que se possam considerar livros ainda nem sequer escritos. Se disser «ainda não acabados de escrever», aí estamos num outro horizonte epistemológico – e tecnológico, já que hoje a tecnologia da impressão permite produzir um livro em pouco tempo.
- Percebo. Uma história virtual em versão de «jornalismo cultural»: 11 meses, mais ou menos. É capaz de ser aceitável, sim. Mas não conte comigo para isso.
- Só posso lamentar tanto temor e tremor. Não o reconheço, a evitar o desafio intelectual de uma filologia do futuro…
- Deu-lhe para a provocação erudita, foi? Mas já agora, avance lá com o seu balanço, que sempre quero ver. Isto de teorias é muito lindo mas depois, como dizia um amigo meu, o pior é a prática. E, no que toca à história virtual, pode-se sempre admitir que, tendo por exemplo em conta a escassa margem da vitória de Cavaco, um António Vitorino poderia bem tê-lo derrotado. A verdade, porém, é que o Vitorino continua lampeiro à convesa com a Judite e o Cavaco lá está, grave e aborrecido, em Belém. Ou seja, tretas com legitimação teórica.
-Ora, admito que o exercício seja exigente mas não o diria impossível. Aqui vai então uma tentativa de balanço literário de 2006, talvez com o título «Tudo o que destaco de entre tudo o que ainda não li em 2006».
- Desculpe interrompê-lo mas gostava de lhe colocar uma questão simultaneamente epistemológica e metodológica: esse seu título sugere que pode mesmo dispensar-se de vir a ler esses livros ou, pelo contrário, o seu balanço é um compromisso (um imperativo) de leitura dos livros destacados?
- Admitindo que tais livros venham a existir, o que não é forçoso pois a minha posição não é a do adivinho ou profeta mas antes a do especulador (profissão mui digna, como sabe), não me parece forçoso que pelo facto de os seleccionar de entre a enxurrada editorial de 2006, isso me imponha a obrigação de os ler. Não propriamente pelo precedente criado por EPC (a argumentação pelo precedente é intrinsecamente reaccionária) mas porque, muito simplesmente, os livros que me atrevo a destacar dificilmente coincidirão com os que os mesmos autores escreverão e editarão.
Ergo, mandam a ética e o método que eu não me comprometa (e a leitura é sempre um compromisso, ainda quando lamentável) com obras que não podem ser exactamente as que seleccionei.
-
Ergo, se me permite a redundância, na ética da filologia do futuro devemos abster-nos de ler os livros que destacamos…
- Nem mais, senhor. Vejo, gostosamente, que finalmente se aproxima da radicalidade das minhas posições.
- E de que maneira! Percebo agora a genialidade da sua intuição, que nos dispensaria simultaneamente do juízo de gosto e da leitura. O paraíso, por outras palavras. Ou, pelo menos, dar-nos-ia a leitura sem imperativo valorativo - o
anything goes, essoutra versão do paraíso (tenho de ver se transmito essa sua intuição ao António Sousa Ribeiro, que a incluirá de imediato no rol dos pós-modernismos serôdios).
- Teria todo o gosto nisso, senhor.
- Deixe-me contribuir modestamente para essa sua filologia do vazio – perdão, do futuro. E se eu lhe propusesse um balanço dos livros que lerei nas manhãs de domingo na FNAC da Rue de Rennes, em Paris, durante o ano de 2006?
- É a minha vez de não o acompanhar, senhor… Sabe que Paris, enfim, a França, são coisas que já não me dizem muito. Ainda há dias tive o gosto de ver o Vasco Pulido Valente manifestar-se também contra o mal gálico. E até o Eduardo Pitta o citou logo, quase na íntegra, no
Da Literatura, o que também muito apreciei, tanto mais que não é nada fácil opormo-nos à maioria.
- À maioria? Neste mundo em que o Booker Prize está quase a substituir o Nobel e em que tudo passou a ser uma tradução do inglês em calão? Ó Groucho,
Tu quoque?!
Paleeeaaase!
- Esmaga-me com a sua exibição de dotes de troglodita.
- Quer dizer poliglota, suponho.
- Peço perdão, senhor... Que lapso! Mas, regressando à Rue de Rennes, o que é que esse seu balanço acrescenta ao meu balanço virtual? Não percebo.
- Ora, Groucho, vê o que dá confundir o mundo com Manhattan e descurar a geografia cultural parisiense? É simples: é que aos domingos de manhã a FNAC da Rue de Rennes está fechada…
- Caramba, senhor, com essa esmagou-me! Esse sim, seria o balanço ideal, final e definitivo, de 2006. Dessa é que nem o EPC se lembra.
- E se festejássemos já o próximo romance do Lobo Antunes? Ou os próximos 10 livros do Sr. Gonçalo Tavares?
- M. Tavares, senhor. Esqueceu-se do M. Mas acho excelente ideia. Eu acrescentava apenas o próximo livro de ensaios de Joaquim Manuel Magalhães, em que ele reunirá os textos que agora publica no
Expresso com apoio do Millenium BCP. Uma obra seminal na crítica de poesia em Portugal. A grande obra de ensaio de 2006.
- Acredito, profundamente. Mas veja lá se com todo esse entusiasmo também o copo que nos preparávamos para tomar se torna virtual…
- Tem razão, senhor. É pra já, é pra já.
[A partir de uma ideia de Manuela Almeida]