31 janeiro 2006

Moral da página

— Olhe, Groucho, não fica mal um pouco de rigor, e, se se trata de jornais, não fica mal um pouco de materialismo.
— Nem quero imaginar o que vai sair daí. Outra história de bandidos?
— Não, coisa séria. Repare: uma coisa é debater se é legitimo escrever sobre livros de amigos — e se se fala de escrever, sem menção explícita do meio material, e se se trata de crítica literária, isso envolve, deve envolver, jornais, revistas, prefácios, posfácios, estudos críticos, badanas, contracapas, etc. —, outra coisa é decidir se determinado espaço numa página de jornal seria ocupado por certo livro sem a intervenção dum amigo do respectivo autor.
— Não parece o mesmo, valha a verdade...
— Não é o mesmo. O problema maior da crítica nos jornais não lida com recensões e o que dizem, mas com o espaço atribuído aos livros e a decisão que o atribui a cada livro: esta decisão é anterior à recensão, ainda que posterior cronologicamente. É uma presunção, qualquer coisa que temos de supor, mesmo que nunca tenha existido enquanto tal, percebe?
— Julgo que sim.
— Aí tem, então, a causa da oscilação moral destas discussões, entre a rigidez dos catões domésticos, sempre a um passo do ressentimento, e a permissividade dos libertinos. Eu nunca faria tal, eu que sou bem formado, exclamam os primeiros. Ao que os segundos retorquem: mas como, se somos todos amigos uns dos outros?
— E é claro que não somos.
— Pois não, era o que faltava.

Raízes do crítico

— … nem queira saber o que o seu amigo Rubim me disse esta manhã. Imagine que…
— Eu ouvi, Groucho. Também fiquei preocupado.
— Francamente, se o assunto o aborrece, e nem percebo como, sendo ele, como suponho, crítico literário, podia ter tido conduta mais ética, mais profissional, para usar o vocabulário dele… agora pôr-se a gozar com a minha cara é que não, isso era muito escusado!
— Mas ele não gozava, Groucho, pelo menos não com a sua cara. Falava a sério, muito a sério…
— Pois, pois, devia calcular que o senhor seria a última pessoa a quem falar disto…
— Pelo contrário, sou até o primeiro, porque o único, note, o único, além do próprio, que lhe pode elucidar o sentido e a razão de ser daquelas sugestões aparentemente indignas. Saiba que é muito difícil um homem erguer-se acima das suas raízes. Uma árvore, sim, tem facilidade. Já um homem… daí a minha preocupação.
— Continuo sem entender, pior! continuo…
— Já vai perceber. Mas isto é segredo, ouviu? ninguém aqui sabe… O meu amigo Rubim não só é um eminente crítico literário como deve à crítica literária a mais extraordinária reforma de costumes por que vi alguém passar. Ele saiu de casa muito cedo, com oito ou nove anos. Fugiu seria o termo rigoroso. Viveu anos na rua e, como era esperto e determinado, logo organizou um bando de pequenos delinquentes de que se tornou o chefe natural. Naturalíssimo. Ficou famoso em toda a linha de Cascais, e não me refiro apenas ao comboio. Famoso e temido. A própria mãe tinha medo dele, mas a verdade é que andava na rua totalmente despreocupada, porque ninguém se atrevia a molestar a «mãe do Rubim». Já perto dos dezoito ou dezanove anos, calhou um dia, durante o assalto a um dos comboios da linha, deparar com alguém que era nada mais nada menos do que o poeta… acho melhor não lhe dizer o nome. Ainda está vivo, pode ofender-se. Mas era um poeta já então célebre, embora o Rubim nunca tivesse ouvido falar dele. Sendo um sujeito de meia idade, o nosso amigo espantou-se com a calma, com a serenidade com que ele continuava a produzir gatafunhos num caderno, ao passo que os outros passageiros gritavam ou roíam as unhas. Depressa percebeu que o poeta estava calmo, porque não tinha um tostão no bolso. Nem relógio, nem carteira, nem sequer um pente. Aí, o nosso amigo sentou-se ao lado dele, pediu-lhe para ver os papéis e achou nada menos do que a descrição do próprio assalto… em verso!
— Carago! isso é verdade?
— Pura verdade. O mais impressionante está para vir. Pareceu-lhe que alguns versos eram de mau gosto, discutíveis as ideias, algumas soluções de rima e ritmo um tanto forçadas, e disse-o ao poeta… este, por sua vez, achou graça, perguntou-lhe se acaso tinha melhores soluções, ele declinou várias espontaneamente, o poeta foi tomando nota… e olhe, foi o começo de uma amizade que dura até hoje. Acho que dura até hoje.
— Carago! três vezes carago! Foi assim que ele deixou a delinquência?
— Bom, já lhe disse que é difícil um homem erguer-se acima das suas raízes. Não deixou logo, logo: foi deixando, à medida que lia os poetas, que os discutia com o poeta do comboio, que ele próprio tentava os seus versos, etc. Com o tempo, uma ode, um soneto, uma nénia interessavam-no mais do que um relógio de ouro, um cartão de crédito ou um walkman. Desleixou-se, perdeu a confiança dos rapazes do bando, acabou substituído na chefia e assim, sem trabalho nem bando… fez-se crítico literário. Mas conservou todas as antigas ligações. Frequenta ainda esses amigos de infância e juventude, aliás gente perigosa. Aí está um que nunca há-de escrever sobre os amigos… justamente por ser crítico literário!
— Carago! cinco vezes carago!

Os amadores, os críticos e os amigos dos críticos, 1


— Então e o senhor deixa que esta querela lhe passe ao lado?
— Querela? Qual querela, Groucho?
— Então, Sr. Rubim, a querela dos críticos e dos amigos dos críticos.
— Críticos? Mas quais críticos?
— Os críticos literários, homem!
— Não sei de nada.
— O senhor não é crítico literário?
— Eu? Não. De facto, exerci esse mester em tempos que já lá vão, mas sabe como é, havia uma família para sustentar, crianças em crescimento… Em suma, rendia pouco.
— Abandonou o ofício por motivos pecuniários?
— Parece-lhe insuficiente? O Groucho é um solitário, no fundo ignora as grandes batalhas do sustento e da sobrevivência. Se tivesse de viver das letras…
— E acha que isso explica o tal problema?
— Qual problema?
— O problema dos amigos. Isto de haver críticos que escrevem sobre livros escritos por amigos deles.
— E isso é algum problema?
— É esse o problema que está a ser discutido.
— Ai é? Nesse caso, Groucho, pode ter a certeza de que se trata de uma discussão de amadores.
— Discussão de amadores? Juro-lhe que está mal…

Os amadores, os críticos e os amigos dos críticos, 2


— De amadores, garanto-lho eu. Isso é um problema que só se coloca aos amadores.
— Como assim?
— Um crítico profissional, sobretudo um crítico com apurado sentido de profissionalismo nunca tem amigos que escrevam.
— Ora essa! Porquê?
— Por uma das duas razões que eu passo a explanar. A melhor, a mais recomendável, é a que decorre da sua autoridade. Um crítico com verdadeira autoridade de crítico (e, note bem, só esses merecem o nome) inibe todos os amigos de escrever. É um fenómeno tão abrupto que, nos casos de maior sucesso, nem os inimigos dele se atrevem a arriscar uma linha, quanto mais os amigos!
— Acho que percebo onde quer chegar…mas não consigo figurar qual seja a segunda razão que impede um crítico de ter amigos que escrevam.
— Então, Groucho, está-se mesmo a ver!
— Talvez seja eu que…
— Quando os amigos teimam em não reconhecer a autoridade do crítico ou quando o crítico ainda está a debutar, enfim…como direi? Há métodos para…para…remover o obstáculo, não é…
— Métodos? Que métodos?
— Ó Groucho, os amigos para escrever…enfim, precisam das mãos…precisam dos braços…de um modo geral, precisam de ter o corpo em bom estado, compreende?
— Ó Sr. Rubim…! Mas são amigos!
— Claro, claro, o trabalho tem de ser bem feito, com o devido sigilo e a máxima discrição. Nada de amadorismos, sobretudo nada de amadorismos!

30 janeiro 2006

Sarabanda, 4


Karin e Marianne são o que de mais ibseniano tem Saraband: as mulheres, o amor interrogativo das mulheres, o sim e o não das mulheres, a passagem ao mesmo tempo indelével e incerta das mulheres pela vida dos homens. O tema de Karin é, decerto, o do filho de Borkman, Erhart: viver a sua vida, decidir por si, libertar-se, encontrar a saída para fugir ao círculo das dominações familiares. Mas Karin pode reunir em si tantas mulheres ibsenianas que, no fim, se liberta de todas e o instrumento dessa como de todas as suas libertações é o violoncelo. O mesmo instrumento que a prendia.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho
















Justiça: 1. Em Portugal, leva tempo. 2. A culpa, contudo, não é dos juízes nem dos funcionários judiciais nem das férias longas. É, sim, do «sistema». Ou do afã de reformar o que está bem.

Juve Leo: Como dizia o Padre Américo, «Não há rapazes maus». Já quanto às raparigas que por lá se vêem aos berros…

Juventude: 1. Tem Secretaria de Estado, cartão jovem, descontos na compra de habitação, shots em profusão e inconsciência em matéria de preservativos. 2. «No meu tempo não havia preservativos a cores nem com sabores. Esta malta jovem nasceu com o cu para a lua…». 3. Faz a sua educação afectiva, e cultural (vide os «D’Zrt»), nos Morangos com Açúcar, que por essa razão tem de durar pelo menos mais uns 15 anos, para acompanhar o percurso de uma geração. 4. Com a crescente precocidade sexual, bem patente na franqueza desabusada da linguagem e na erotização do look das pré-teenagers, aos 10 anos já sabe quase tudo. 5. Vai à missa nos centros comerciais e reza por telemóvel (no que toca aos sms, consegue escrever quase todas as palavras do português só com o K e o X). 6. Os sms servem também como recusa subversiva do arcaísmo implicado na situação pedagógico-didáctica da «sala de aula» com quadro negro - ou de como o choque tecnológico já chegou há muito à escola. 7. Só come porcarias e acha que o MacBurger é um prato típico alentejano. 8. Estuda on line, razão pela qual o conceito de plágio se tornou hoje obsoleto. 9. O MP3 e, mais recentemente, o I-Pod, também ajudam à sua amnésia em relação às questões da propriedade intelectual. 10. Não suporta filmes em que cada plano dure mais de um décimo de segundo. 11. Lê muito, em regime de zapping, saltando da primeira frase do livro para a última e recuperando depois uma ou duas pelo meio. 12. Com um esgar taxativo: «Só vestem roupa de marca, usam todos telemóveis 3G, passam a vida em discotecas e depois não podem pagar propinas na universidade?! Coitadinhos…»

Da elegância























Cito, sem mais, da última ocorrência da crónica «Observador», de José António Saraiva, no Expresso:

«10 anos depois, Cavaco desforrou-se de Soares e das tropelias que este lhe fez quando era Presidente. Uma desforra que teve algo de patético na imagem de Soares e Sócrates na noite eleitoral: um velhote ao lado de um coxo de muletas».

Saltemos esta concepção da política como uma eterna desforra pueril de tropelias d’antanho, concepção que serve igualmente para legitimar coisas como a guerra na Palestina, no País Basco ou, em tempos felizmente quase idos, na Irlanda do Norte. Esqueçamos também tropelias de Cavaco como o «saneamento» de Soares aquando da assinatura dos acordos de Bicesse entre os beligerantes angolanos (à luz do que se passou depois, Soares terá seguramente agradecido).
Detenhamo-nos antes nesta imagem de fino recorte literário (ou não estivéssemos ante um romancista candidato ao Nobel, ainda que na modalidade de auto-proposto) e, não menos decisivo, de fino gosto: «um velhote ao lado de um coxo de muletas».
E sigamos então este cherne. Por exemplo, a propósito de Cavaco no discurso da noite da vitória: «um manequim da Rua dos Fanqueiros, chupadinho e soturno» (a Clara Antunes que me perdoe a apropriação). Ou, recorrendo às memórias cinéfilas: «um actor de série B papagueando mecanicamente um papel auto-infligido».
Que tal? Parece fácil? Olhem que não… A coisa, como Saraiva explicaria, exige uma cópia de recursos estilísticos não ao alcance de todos. Mas sobretudo exige elegância, ou não fosse a pessoa em causa o Sr. Ex-director.
A mesma elegância que nos poderia levar a apodar um escritor de «romancista coxo e assim a modos que velhote». E não, não estou a pensar em Saramago… Nem sequer nas tropelias de um observador com o rabo (cavaquista) de fora. Deus me livre!

Exercícios espirituais adornianos






















- Mas acha que ele regressou mesmo afectado?
- Não duvide, senhor, não duvide. Já reparou naquele estranho brilho nos olhos?
- Mas ele sempre teve aquele brilhozinho de génio sardónico, Groucho.
- Pois, mas a coisa mudou de natureza, que não apenas de grau. O brilho tem agora algo de alucinado. Também, não surpreende: já considerou bem a crueldade dos Exercícios Espirituais Compulsivos a que ele foi sujeito?
- Horrível, Groucho. Nem quero pensar. Um gravador matinal a debitar «Não digas mal da Inês Pedrosa» ad infinitum!? Antes a solitária, mil vezes.
- Sim, mas olhe que ele me confessou coisas literalmente inconfessáveis e ainda piores que essa.
- O que está o meu amigo a querer sugerir? Práticas à Abu Ghraib? Não me diga!
- Não, não, senhor. Não se esqueça de que a população raptada e sujeita a reeducação integrava a família dos intelectuais incorrigíveis…
- …mas ele ainda há disso? Julgava que restava apenas o Pacheco Pereira.
- Pelos vistos, os bastantes para encherem um convento devoluto, algures no Minho, segundo as mais recentes investigações do agente Jack Bauer, do CTU. Mas os EEC, sem praticarem a retórica da sevícia corporal de Abu Ghraib, não deixaram de ser humilhantes, garanto-lhe.
- [Chegando-se muito ao pé de Groucho e falando-lhe baixo ao ouvido] Ó homem, não me deixe nesta inquietação, por quem é! Além do mais, sabe que sou muito amigo dele e quero ajudá-lo a recuperar do stress pós-traumático. Ajude-me! Dê-me só um exemplozinho das sevícias a que ele foi submetido, para eu me poder orientar na terapia.
- Não posso, senhor. Prometi segredo de confessionário!
- Faça de conta que eu sou o Papa, homem! Uma mais alta autoridade espiritual, que não põe em risco a sua integridade moral.
- [Chegando-se por seu turno muito ao pé e falando baixo ao ouvido] Eu não devia fazer isto, mas seja pelo bem do nosso amigo comum... Imagine que o puseram a fazer análise sintáctica de um dos últimos livros de Maria Gabriela Llansol, aquele intitulado O começo de um livro é precioso.
- Jesus, Groucho! Isso é de arrasar com um espírito, ainda para mais se um espírito particularmente lógico e cartesiano, para toda a vida.
- Pois, imagine. Como se não bastasse, teve ainda de fazer a análise actancial da clássica trilogia Geografia de Rebeldes: adjuvante, oponente, etc.
- Coitadinho do nosso amigo, Groucho! Sujeito a sevícias anacrónicas! Receio bem que depois disso nunca plenamente regresse ao nosso convívio intelectual.
- [Aproximando-se ainda mais e falando ainda mais baixo] Mas há pior, senhor.
- Por favor, Groucho, poupe-me. Até porque não acredito que possa haver pior do que esses dois exercícios, com franqueza.
- Mas há sim, senhor. Imagine que, num requinte de sadismo sem igual, o obrigaram a reescrever longamente (gastou quatro semanas naquilo e a obra ficou ainda assim muito incompleta) a Filosofia da Nova Música, de Adorno, que se passaria então a chamar a Filosofia da Literatura Moderna. Com a exigência prévia de substituir, na lógica da obra, cada ocorrência da afirmação «Schönberg é o progresso, Stravinsky a reacção» por «Eça é o progresso, Camilo a reacção».
- Que horror, Groucho!
- Nem mais. Imagine os danos, frontais e colaterais, que uma doxografia desta natureza provocou num espírito tão naturalmente revisionista! E camiliano, ainda por cima.
- Agora é que não acredito mesmo na recuperação dele.
- Infelizmente, também eu tenho fundadas dúvidas nessa matéria. Sabe que já me aconteceu estar a falar com ele e ouvi-lo dizer, sem qualquer propósito, e dou apenas um exemplo: «Porque sabe, Groucho, como dizia o Adorno, Eça é o progresso, Camilo a reacção. De modo que a votação no Alegre, com franqueza…». Assim, sem mais, e sem que ele sequer se aperceba.
- Coitado… Como será viver em permanente regime de acto falhado? Olhe, acho que vou consultar o senhor Quintais, que estudou o stress pós-traumático nos veteranos da guerra colonial. Apesar de tudo, há que tentar alguma coisa, não acha?
- Claro, senhor… [Em sobressalto] Mas mudemos de assunto, que ele acaba de chegar. [Groucho afasta-se rapidamente, enquanto o casmurro em causa se aproxima].
- Ah, viva… Então, estás bom?
- Vou recuperando. Como dizia hoje à minha mulher, há que fazer pela vida, até porque, como dizia o Adorno, Eça é o progresso, Camilo a reacção. E tu, que fazes?
- Eu?... Bem, enfim… Olha, leio os jornais desportivos. Parece que o Sporting é o progresso e o Benfica a reacção.
- Isso faz-me lembrar qualquer coisa… Que raio, tenho-a mesmo debaixo da língua! Deram-me cabo da memória com aquela lavagem ao cérebro, aqueles grandecíssimos fdp!
- Calma, calma. Lê aí as manchetes d’A Bola e do Record, que estão particularmente calmantes. Só falam em «banhadas».
- Curioso tropo, esse. Sabes que, segundo o Adorno, na Filosofia da Literatura Moderna

Embevecimentos de um antibenfiquista contumaz
























Eis-eo! Ei-lo! Eis o homem que, no passado sábado, deu todo o sentido à expressão «O inferno da Luz!»
E permitam que, a seu propósito, lembre a máxima de Sartre: «O inferno são os outros». Neste caso, nada menos que 6 milhões (este é um daqueles momentos em que o sabor da coisa se reforça na proporção dos milhões…).
Quanto ao «levezinho», que ficava bem melhor de azul e branco (ninguém é perfeito...), conquistou enfim o seu lugar no Paraíso. Por mim, pode descansar em paz a partir daqui – sobretudo quando se avizinhar o jogo com o FCP...

P.S. Informo desde já a direcção do SCP de que estou disponível para, na medida das minhas escassas disponibilidades, contribuir para a futura estátua do herói a depositar no museu do clube. Como recomendava Valéry, não devemos regatear com a grandeza.

29 janeiro 2006

Uma teoria

— Desculpe, mas estão ali uns pedintes à porta…
— Pedintes?! Ainda batem pedintes à porta…?
— Acho que são pedintes, pelo menos disseram que vinham pedir uma contribuição para o debate em curso.
— Que graça, Groucho, que gracinha tão jeitosa! E que lhes disse?
— Ora, o que havia de dizer? … que aqui ninguém contribui para coisa nenhuma, que aqui ninguém é amigo de ninguém, que muito menos se cuida de distinguir entre "amigos" e "amigos íntimos", que aqui ninguém tem inveja de quem trabalha muito, que isto não é propriamente uma coterie
— Bom termo, esse, coterie… Não leva acento?
— Só se for em francês; eu falei em português, portanto…
— Ah… Mas pelos vistos nem assim os convenceu, se ainda estão à porta…
— Na verdade, já não estão. Aliás nunca estiveram. Inventei tudo, só para pôr à prova certa teoria a respeito dos cavalheiros para quem trabalho.
— Além de sacudir o tédio, depreendo...
— Sim, além de sacudir o tédio. Depreende bem...

Sarabanda, 3


O filho de Johan tem, portanto, boas razões para se chamar Henrik. De quem Henrik está mais próximo é de Alfred Allmers, o protagonista de O Pequeno Eyolf. Na sua obsessão tardia com a responsabilidade pela filha Karin, no tempo inteiro que lhe quer dedicar, no modo como a filha substitui a mãe que morreu (na peça de Ibsen, Rita Allmers está viva, mas sabe-se, mesmo assim, trocada pelo filho Eyolf na atenção de Alfred — como Anna adivinhou, antes de morrer, que Henrik a trocaria pela filha). E ambos, recorde-se, têm um livro para escrever que nunca escrevem. (Na relação com Karin, todavia, há qualquer coisa que lembra O Construtor Solness: não sei, talvez seja só aquele beijo de que Karin se liberta, talvez seja o medo, ou a culpa ou a libido suicida de Henrik.)

28 janeiro 2006

Almoço no clube, 1


— …abusou um bocadito do molho mas, enfim, come-se…
(Pausa.) Ele contou-me aquela sua ideia da colonização ideológica do teatro. Lembra-se?
— Ah, ele falou-lhe disso? (Mastiga.)
— Por alto. (Serve-se da cerveja.) Fiquei curioso.
— Não se importa de me passar o sal? (Põe sal nas batatas fritas.) A ideia, no fundo, é simples: depois do 25 de Abril, em vez de se cultivar a liberdade que permitia fazer tudo o que se quisesse em cima dum palco, fez-se do teatro instrumento ideológico. O modelo foi o Brecht, basicamente porque o Brecht era proibido antes do 25 de Abril.
— Hmmm… (Mastiga.) Só isso?
— Não! Esta história é comprida… (Aplica-se a cortar o bife.) O movimento geral foi este: tudo o que não tivesse intenção política deliberada foi condenado. O Brecht, para eles, era a vanguarda e a vanguarda era o teatro ao serviço da revolução ou coisa que o valha. Uma desgraça. Claro que não houve revolução nenhuma, nem podia haver, que passasse pelo teatro. (Chega uma garfada de bife à boca.)
— Hmmm…
(Mastiga lentamente. Depois pára de mastigar.) De certa maneira, o teatro foi o último reduto do neo-realismo. Aquela coisa da distanciação brechtiana tornou-se um imperativo moral, mais do que estético. O que não fosse distanciado era “burguês” e toda a urgência estava em atacar o “burguês”. A simplificação chegou a este ponto!
— Estou a ver… Mas coma, coma!
(Durante talvez um minuto comem em silêncio.)
— Repare que o problema não está propriamente no Brecht, que é apenas um dramaturgo no meio de muitos, nem nisso da distanciação, que é só uma ideia entre outras. O problema está no imperativo, na norma, no dogma em que tudo isso se converteu. Apanhou-se esse vício horrível das normas e dos dogmas, percebe? O teatro a querer doutrinar as massas ou, como se diz para aí, a pôr as pessoas a “pensar”… Olhe, não vamos mais longe: ainda há dias vi no jornal uma figura conhecida do meio a dizer que a função do teatro é educar. Educar, imagine! (Gargalhadas.)
— Um horror, o didactismo… Nunca terão lido o Shakespeare?
— Com ideias daquelas não há Shakespeare que resista. (Pausa.) Mas por que raio é que ele insiste nas alcaparras? Ele sabe que eu detesto alcaparras!

Tema antigo com inflexão misteriosa

— Parece que um “saudoso de Carrilho” se manifestou há dias…
— Um, não... o principal.
— Ah, já tinha reparado?
— Claro.
— E o senhor não comenta, não diz nada?...
— Para quê? É a lábia do costume com uns disfarces para enganar pacóvios.
— Ah, a propósito de disfarces…
— O Groucho também reparou?!
— Então, uma barba daquelas e queria que eu não desse por nada?!
— Pois, tem razão. Ele é que anda a ver se consegue que ninguém dê por ele no meio desta marosca toda…

Ainda a conversa do teatro (antes do teatro da conversa)


— O Groucho é capaz de me explicar o que é que isto quer dizer?
— Eu?!
— Sim, o Groucho há-de saber o que é o politeísmo de valores, ou não?
— Eu?!
— Ó Groucho, só lhe peço que me esclareça o que é um teatro estandarte de ideias totalitárias, pode ser?
— Eu?!
— Vá lá, Groucho, ao menos ilumine-me quanto à fortificação de linguagens emergentes, não lhe peço mais…
— Eu?!
— Por favor, Groucho, diga-me em que consistem as leituras antropológicas e classicistas de textos!
— Eu?!
— Ó Groucho, não me deixe sem saber por que o Teatro Nacional não deve ter significado…
— O Teatro Nacional não deve ter significado?!
— …mas deve ter significantes.
— Significantes? Isso ainda existe?
— Vá lá, Groucho, deixe-se de piadas e explique-me a geometria do círculo tracejado.
— Eu?!
— Ó Groucho, veja se entende: é a segunda vez que leio isto
— A segunda?
— Sim, isto já tinha saído no jornal, há uma semana ou coisa que o valha, e eu…
— Algum jornal de escola, não?
— Esqueça, Groucho.

27 janeiro 2006

Ibsen!


— Já agora, uma outra coisa, se me permite…
— Pois não…
— É outro apontamento, uma frase que apanhei ao Sr. Rubim, a propósito do teatro de Ibsen…
— Ah sim, tenho uma conversa agendada com ele a esse respeito.
— Justamente, justamente, trata-se justamente de conversa. Ouça isto: «Não há audácia de maior em dizer que esse [duas personagens a conversar] é sempre e invariavelmente o acontecimento determinante no teatro de Ibsen, que por isso mesmo bem se pode caracterizar como um teatro da conversa.» Percebe onde quero chegar...?
— ?!
— Não vê que é mais ou menos isso que… Não, pensando bem, deixe lá, faça de conta que eu não disse nada.

Ibsen?

— A sua curiosidade é legítima, Groucho, mas não posso contar-lhe senão o que já lhe contei. A polícia investiga ainda, e insistiram muito: que não dissesse nada a ninguém.
— Por enquanto, depreendo…
— Por enquanto, depreende bem. E agora chega a minha curiosidade: conte, vá, resuma, ou não resuma: o que se tem passado por aqui…
— Nada de muito especial, receio. Aliás, eu próprio me ausentei uns tempos.
— Esteve doente?
— Se o tédio for doença. Ninguém cá vinha, não tinha em que me ocupar. Desandei, como dizem no Porto. Foi lá que estive, de resto.
— Caramba, que tristeza! Mas nada mesmo…?
— Bem, houve certa trepidação com qualquer coisa no teatro nacional, que não acabei de perceber, outro tanto com as eleições, uma ameaça de mistério com gravações de conversas… Terá que se informar junto dos cavalheiros, se algum deles se apercebeu. Eu tenho retido sobretudo a agitação cultural do Sr. Rubim em torno dum dramaturgo norueguês, Ibsen. Faz cem anos que morreu, não sei se sabe…
— Ouvi dizer, sim. Mas é alguma coisa organizada? Outro clube de leitura? Não me diga que querem representar uma peça…
— Credo! acho que não. Têm sido palestras, breves discussões, uma coisa aqui, outra ali. A mim, o que logo me despertou, foi isto, que lhe ouvi dizer há duas ou três semanas, e que até apontei no moleskine. Ora ouça: «Será talvez do conhecimento geral que Ibsen é hoje um dos grandes ausentes dos palcos portugueses, ao mesmo tempo que é o dramaturgo mais encenado em todo o mundo (mais ainda que Shakespeare). As coisas não são diferentes relativamente à tradução, à edição e ao estudo das suas peças. Creio que, para os últimos trinta anos (aqueles em que a arte e a literatura acederam em Portugal à plena liberdade de criação, circulação e fruição), este considerável escândalo artístico e cultural é passível de ser explicado, o que não significa que se torne por isso aceitável.»
— E qual era a explicação, já agora?
— Colonização ideológica da arte do teatro, se bem entendi. Mas será melhor ser o senhor a perguntar-lhe. Nem de propósito: ele ali vem para almoço.

Uma bela manhã de (pouca) conversa




— Dois séculos e meio da melhor música, não é, Groucho?
— É o que toda a gente diz.
— Mas o Groucho não concorda?
— Eu sou um pouco duro de ouvido…
— O Groucho? Duro de ouvido?!
— Tenho dificuldade em distinguir a melhor música da menos melhor.
— Está a armar-se em original, é?
— Não, mas escapa-me este consenso mozartiano.
— Escapa-lhe? Escapa-lhe como?
— Um compositor erudito a ganhar tantos adeptos… Estranho, percebe?
— Estou a ver. Também é desses que confundem popularidade com populismo. Descanse, que em Portugal está bem acompanhado.
— Engana-se, eu não cometo dislates conceptuais dessa magnitude.
— Não? Mas olhe que a sua conversa parece-se muito com a daqueles que desconfiam quando se lhes diz que Beckett é um dramaturgo para esgotar lotações.
— Ora, francamente… Beckett…
— De pancada à porta. Mas esqueça. Hoje não é dia para falarmos das agruras do teatro português. Hoje é dia de festa. (Dirige-se à aparelhagem.)
— Ao menos, não ponha muito alto. Por favor.
— Não me chateie, Groucho! (Começa a ouvir-se A FLAUTA MÁGICA. Bem alto. Altíssimo.)

26 janeiro 2006

Sarabanda, 2


O Johan (Erland Josephson) de Saraband vem tão claramente do John Gabriel Borkman, de Ibsen, que a dada altura Bergman põe Marianne (Liv Ullmann) a dizer ao velho ex-marido que ele nem parece uma pessoa real. Na ideia dela, Johan lembra uma personagem de um filme antigo, mas esse piscar de olho cinéfilo não passa de uma manobra de equívoco deliberado. (Johan e Marianne vêm de facto de um filme antigo — as Cenas da Vida Conjugal, do próprio Bergman, filme tão declaradamente strindberguiano que até por lá se encontram citados os infernos do autor da Menina Júlia…) Isolado naquela casa solitária, praticamente morto em vida como o próprio se encarrega de explicar, ressentido, desprezando toda a gente e usando a distância como processo de melhor manipular o filho e a neta, Johan, no seu talento destrutivo, quase só se distingue de Borkman pela riqueza e pelos detalhes do seu passado.

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho















Judeus: 1. Há por cá muito poucos, pois D. Manuel, esse pioneiro, tratou do assunto há alguns séculos. 2. De tão avarento, Salazar parecia sê-lo (à imagem dos de Dickens). Por outro lado, só sabia amealhar e nada de reproduzir, pelo que lhe faltava o essencial para o ser. 3. Como nós e os cabo-verdianos, são um povo da diáspora. Ao contrário de nós e dos cabo-verdianos, contudo, sabem fazer dinheiro. 4. Há-os de muitos tipos, dos seculares aos fundamentalistas, dos sionistas aos que são contra a existência do Estado de Israel, dos sefarditas aos ashkenazys e aos da Etiópia. Resumindo, uma tremenda confusão em que nem eles se entendem. 5. Têm uma comida quase tão esquisita e cheia de interditos como a dos árabes. Mas não têm nada a ver com eles. 6. Nos primórdios da fundação do Estado viviam em kibbutzim, que eram uma espécie de mistura de amor livre, renúncia à propriedade privada e Big Brother (o orwelliano...). Hoje, pode-se fazer turismo ficando num kibbutz. 7. Gostam de ser governados por falcões transformados em pombas. Vide Itzhak Rabin ou, mais recentemente, Ariel Sharon. 8. Estão a tentar fazer a sua descolonização mas falta-lhes um Melo Antunes (Sharon, que parecia uma espécie de Spínola, condenado a ser ultrapassado pelos acontecimentos, decidiu cavalgá-los, mas a falta de exercício físico saiu-lhe cara). 9. O trolha desgravatado que é Presidente do Irão quer varrê-los do mapa. Parece ser apenas basófia de um pobre diabo da «rua árabe» (que não ficava mal no Sobral Cid, diga-se) mas nunca se sabe. 10. Saddam Hussein também quis varrê-los, quando tinha SCUD’s, mas faltou-lhe a pontaria, como Nuno Rogeiro tão memoravelmente explicou. 11. Osama Bin Laden, e mais umas centenas de milhões de muçulmanos, também querem. Amanhã, porém, não será a véspera desse dia, apesar das dezenas de virgens prometidas aos jovens que decidirem suicidar-se com uma bomba desde que haja judeus por perto. 12. Deus, os EUA e a superioridade do Estado de Direito sobre as tiranias árabes (é verdade que há a Mossad e as suas práticas, mas isso é um detalhe) não o permitirão.

Sarabanda, 1


O último filme de Bergman é uma obra-prima absoluta. Até na minha televisão (que foi onde o vi) se consegue perceber isso. Está no mesmo plano dos grandes filmes do realizador sueco — Fanny & Alexander, Morangos Silvestres ou Sonata de Outono — com a diferença de que é o filme de um velho, de certeza um dos maiores filmes de um velho realizador na história do cinema. Agora, não é tão certo que seja um filme bergmaniano típico. E uma das razões para essa estranheza está à vista, pelo menos uma: é que a principal inspiração de Saraband não é cinematográfica, mas teatral e, concretamente, ibseniana. Se a Suécia ainda estiver, nem que seja inconscientemente, envolvida na velha polémica de Strindberg contra Ibsen, então Saraband não está feito para agradar aos suecos, pelo contrário. Mas também se pode formular a coisa doutra maneira: se Bergman sempre andou dividido entre Strindberg e Ibsen, então Saraband é o desatar desse nó pela declaração da escolha final. E a escolha é Ibsen.

25 janeiro 2006

Do cativeiro

— Ora até que enfim! Depois do regresso do Sr. Silvestre, já estranhávamos que não aparecesse, e ainda ontem comentei com a menina Clara…
— Imagino, imagino o que comentou. Mas é reconfortante saber que um homem pode ser raptado ou mesmo morrer, que ninguém dá pela falta dele. Nem sequer procuram…
— Raptado?!
— Sim, Groucho, raptado. Fique a saber, e em primeira mão, que eu fui raptado. Raptado. Sequestrado. Levado de casa à força.
— Ora, por amor de Deus, deixe-se de brincadeiras…
— Não é brincadeira, Groucho. Fui raptado, estive sequestrado seis semanas, não tive Natal, nem passagem de ano, nem sequer pude votar, já agora.
— Isso terá sido o menos. Mas, que diabo! conte, explique… foi daqueles raptos a pedir dinheiro, resgate…
— Aí está a particularidade. Aparentemente foi um rapto reeducativo, ou reformador. Os que me levaram disseram só que eu ia para um retiro fazer EEC…
— EEC?!
— Exercícios espirituais compulsivos. Fecharam-me num quarto, muito parecido com uma cela de mosteiro tal como as imagino a partir dos livros. Logo de madrugada, pelas cinco da manhã, mais coisa menos coisa, acordavam-me com gritos medonhos, e começava o primeiro EEC, uma fita gravada, com o volume altíssimo, e repetindo sempre a mesma coisa: «Nunca digas mal da Inês Pedrosa! Nunca digas mal da Inês Pedrosa! Nunca digas mal da Inês Pedrosa!» Cheguei a pensar que tinha sido ela a raptar-me…
— E não foi, claro…
— Claro que não. Um gang de loucos, o chefe era um padre, jesuíta ou dominicano, que perdeu o juízo. Nos últimos dias, aparecia-me na cela a várias horas do dia e insistia: «Não existem coisas boas nem coisas más, tudo depende do uso que fazemos delas. Nada é completamente bom ou inteiramente mau», e coisas semelhantes.
— Já ouvi isso… espere! foi no sábado, fui dar com a menina Clara a rir-se desesperadamente com um texto qualquer numa revista… leu-me um bocado e era isso, tenho a certeza, era isso, não haver coisas boas nem más… mas que revista era? não me lembro…
—Seria o editorial da Laurinda Alves na revista XIS…?
— Sim, isso mesmo. Mas, espere, não me diga que a Laurinda Alves estava mancomunada com os raptores…?
— Acho que não, mas alguma ligação haverá, porque foi esse artigo que pôs a polícia na pista do gang. Mais precisamente, um jovem escocês, agente do MI5, que anda por aí disfarçado de estudante de português, percebeu a ligação com uma seita parecida que actuou em Inglaterra há dois anos. Comunicou com a Judiciária, e fomos resgatados, felizmente sem grandes danos.
— Fomos?
— Sim, estavam presos no mesmo sítio cerca de 150 pessoas, arrumados em cínicos, cépticos, ateus, maledicentes, escarnecedores e categorias afins. Eu representava os casmurros, imagine.
— Ui, que honra!
— Sim, enorme, subida honra… principalmente sabendo que os casmurros me deixaram entregue à minha sorte, à mercê dum padre louco, a querer reformar-me à força. Estou a pensar abandonar o clube, Groucho. A desilusão foi demasiado forte, demasiado forte. Não sei se posso encarar os meus colegas depois disto…
— Olhe, ali vem um…

Balanços e melões (II)



















- Sabe que esta coisa dos balanços me tomou conta da imaginação, senhor?
- Ó Groucho, com franqueza… Para o que lhe havia de dar. Com o que aí vai de balanços na blogosfera… Surpreende-me sempre esta ideia de que o universo fica menos caótico, ou mais apaziguado, desde que se ordenem hierarquicamente uns títulos em números pitagóricos (5 e 10, sobretudo). Supunha-o mais céptico, devo confessar.
- Não me deixou explicar… A minha ideia, seguindo a intuição genial de EPC no balanço de 2005, seria, pelo contrário, instabilizar de vez a noção de balanço e, por arrastamento, do universo que ele ordenaria…
- …ordenharia?
- …também dá, sim: ordenharia e ordenaria, já agora.
- E como faria o meu amigo isso?
- É simples. Em vez de fazermos o balanço do ano transacto, porque não fazer desde já o balanço de 2006?
- O meu amigo está sob influência de alguma pastilha?
- O senhor ofende-me! Mas enfim, a vanguarda é sempre injustiçada (veja a recente votação no Louçã…). Nada que surpreenda.
- Mas como quer que eu reaja se o senhor me está a propor um balanço dos livros que ainda nem leu? O morbo contaminou-o, pelo que vejo.
- Mais do que isso, senhor: o que proponho é um balanço dos livros que ainda não foram publicados!
- Que ainda nem foram escritos, quer lá ver?!
- Seria o ideal, de facto. Mas, como perceberá facilmente, o que estou a propor é moderar, ou morigerar, essa pura virtualidade do futuro por meio de um critério temporal restritivo: o ano de 2006. Acho por isso difícil que se possam considerar livros ainda nem sequer escritos. Se disser «ainda não acabados de escrever», aí estamos num outro horizonte epistemológico – e tecnológico, já que hoje a tecnologia da impressão permite produzir um livro em pouco tempo.
- Percebo. Uma história virtual em versão de «jornalismo cultural»: 11 meses, mais ou menos. É capaz de ser aceitável, sim. Mas não conte comigo para isso.
- Só posso lamentar tanto temor e tremor. Não o reconheço, a evitar o desafio intelectual de uma filologia do futuro…
- Deu-lhe para a provocação erudita, foi? Mas já agora, avance lá com o seu balanço, que sempre quero ver. Isto de teorias é muito lindo mas depois, como dizia um amigo meu, o pior é a prática. E, no que toca à história virtual, pode-se sempre admitir que, tendo por exemplo em conta a escassa margem da vitória de Cavaco, um António Vitorino poderia bem tê-lo derrotado. A verdade, porém, é que o Vitorino continua lampeiro à convesa com a Judite e o Cavaco lá está, grave e aborrecido, em Belém. Ou seja, tretas com legitimação teórica.
-Ora, admito que o exercício seja exigente mas não o diria impossível. Aqui vai então uma tentativa de balanço literário de 2006, talvez com o título «Tudo o que destaco de entre tudo o que ainda não li em 2006».
- Desculpe interrompê-lo mas gostava de lhe colocar uma questão simultaneamente epistemológica e metodológica: esse seu título sugere que pode mesmo dispensar-se de vir a ler esses livros ou, pelo contrário, o seu balanço é um compromisso (um imperativo) de leitura dos livros destacados?
- Admitindo que tais livros venham a existir, o que não é forçoso pois a minha posição não é a do adivinho ou profeta mas antes a do especulador (profissão mui digna, como sabe), não me parece forçoso que pelo facto de os seleccionar de entre a enxurrada editorial de 2006, isso me imponha a obrigação de os ler. Não propriamente pelo precedente criado por EPC (a argumentação pelo precedente é intrinsecamente reaccionária) mas porque, muito simplesmente, os livros que me atrevo a destacar dificilmente coincidirão com os que os mesmos autores escreverão e editarão. Ergo, mandam a ética e o método que eu não me comprometa (e a leitura é sempre um compromisso, ainda quando lamentável) com obras que não podem ser exactamente as que seleccionei.
- Ergo, se me permite a redundância, na ética da filologia do futuro devemos abster-nos de ler os livros que destacamos…
- Nem mais, senhor. Vejo, gostosamente, que finalmente se aproxima da radicalidade das minhas posições.
- E de que maneira! Percebo agora a genialidade da sua intuição, que nos dispensaria simultaneamente do juízo de gosto e da leitura. O paraíso, por outras palavras. Ou, pelo menos, dar-nos-ia a leitura sem imperativo valorativo - o anything goes, essoutra versão do paraíso (tenho de ver se transmito essa sua intuição ao António Sousa Ribeiro, que a incluirá de imediato no rol dos pós-modernismos serôdios).
- Teria todo o gosto nisso, senhor.
- Deixe-me contribuir modestamente para essa sua filologia do vazio – perdão, do futuro. E se eu lhe propusesse um balanço dos livros que lerei nas manhãs de domingo na FNAC da Rue de Rennes, em Paris, durante o ano de 2006?
- É a minha vez de não o acompanhar, senhor… Sabe que Paris, enfim, a França, são coisas que já não me dizem muito. Ainda há dias tive o gosto de ver o Vasco Pulido Valente manifestar-se também contra o mal gálico. E até o Eduardo Pitta o citou logo, quase na íntegra, no Da Literatura, o que também muito apreciei, tanto mais que não é nada fácil opormo-nos à maioria.
- À maioria? Neste mundo em que o Booker Prize está quase a substituir o Nobel e em que tudo passou a ser uma tradução do inglês em calão? Ó Groucho, Tu quoque?! Paleeeaaase!
- Esmaga-me com a sua exibição de dotes de troglodita.
- Quer dizer poliglota, suponho.
- Peço perdão, senhor... Que lapso! Mas, regressando à Rue de Rennes, o que é que esse seu balanço acrescenta ao meu balanço virtual? Não percebo.
- Ora, Groucho, vê o que dá confundir o mundo com Manhattan e descurar a geografia cultural parisiense? É simples: é que aos domingos de manhã a FNAC da Rue de Rennes está fechada…
- Caramba, senhor, com essa esmagou-me! Esse sim, seria o balanço ideal, final e definitivo, de 2006. Dessa é que nem o EPC se lembra.
- E se festejássemos já o próximo romance do Lobo Antunes? Ou os próximos 10 livros do Sr. Gonçalo Tavares?
- M. Tavares, senhor. Esqueceu-se do M. Mas acho excelente ideia. Eu acrescentava apenas o próximo livro de ensaios de Joaquim Manuel Magalhães, em que ele reunirá os textos que agora publica no Expresso com apoio do Millenium BCP. Uma obra seminal na crítica de poesia em Portugal. A grande obra de ensaio de 2006.
- Acredito, profundamente. Mas veja lá se com todo esse entusiasmo também o copo que nos preparávamos para tomar se torna virtual…
- Tem razão, senhor. É pra já, é pra já.

[A partir de uma ideia de Manuela Almeida]

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho















Jornais: 1. Antigamente serviam para informar os cidadãos do devir da coisa pública. Citar, a este propósito, o arroubo secular de Hegel: «A oração matinal do burguês». 2. Agora, servem para vender livros, DVD’s e brindes variados a preços módicos. 3. Antigamente traziam artigos de fundo e reportagens longas e secas. 4. Agora, trazem «opinião» em forma de «crónica» e reportagens cheias de picante sobre temas sensacionais ou «fracturantes». 5. Antigamente, eram dirigidos por senhores veneráveis e invisíveis, cuja fotografia aparecia uma vez por ano, aquando da reportagem sobre o jantar de Natal dos ardinas. Agora, os directores estão, em permanência, em directo na TV. 6. Antigamente havia o Expresso e A Bola, e o resto era paisagem. Agora há o Correio da Manhã, o 24 Horas e o Record. 7. Ao domingo trazem revistas farfalhudas e coloridas que se podem folhear em esplanadas enquanto se olha para quem passa. 8. Nunca tiveram muitos leitores em Portugal e agora, com as edições on line, ainda têm menos. 9. A solução, já posta em prática em certos segmentos da imprensa, é mesmo oferecê-los, tanto mais que os portugueses apreciam muito a máxima popular «A cavalo dado…». Ainda assim, convém que tragam muitas fotos grandes e pouco texto, pois, caso contrário, nem dados... 10. Apesar da actual situação de anomia (dizer, com ênfase gestual: «Atravessamos uma mudança de paradigma!»), continuam a manter as suas funções mais nobres: amadurecer bananas, limpar vidros, embrulhar o arroz remanescente e aliviar a solidão na casinha.

Jornalismo cultural: 1. Em clave melancólica: «Teve a sua Idade de Ouro, quando António Mega Ferreira, Clara Ferreira Alves, Fernando Assis Pacheco, Eduardo Prado Coelho e outros animavam o Expresso e o JL. Mas isso foi quando havia Expresso e JL. Agora, dá ideia de que quando nos jornais têm um estagiário e não sabem o que fazer com ele, põem-no ou no desporto ou na cultura. Sítios aonde não podem fazer grandes estragos, se me estou a fazer entender…». 2. Para falar, em regime culto (e cult), do seu lugar no concerto do nosso jornalismo, parafrasear o verso de Mallarmé: «L’absent de tout bouquet». 3. Ou então, e ainda parafraseando Mallarmé: «Tudo no mundo existe para terminar num jornal (na secção de Cultura)». 4. E ainda: «A falta que faz o Carlos Pinto Coelho!...»

José, Herman: 1. Na penúltima década do século passado até tinha piada. 2. Entretanto, tornou-se o pai espiritual da falange mais javarda da stand up comedy lusa, o que só o enternece. 3. Os efeitos colaterais do affaire Casa Pia deixaram-lhe o cabelo louro-palha. 4. Apesar de as suas piadas serem, a 99%, sobre paneleirices, não tem nada a ver com isso e assume-o.

24 janeiro 2006

...e agora um Ano Novo Mesmo Feliz


Mas não se esqueçam: este é, primeiro que tudo, antes de tudo, sobretudo e acima de tudo, o Ano IBSEN, Henrik IBSEN.

Feliz Ano Novo


Estou com o Alexandre e digo: bem-vindos ao ano Beckett!

23 janeiro 2006

As minhas difíceis relações com o Francisco José Viegas

(este bilhetinho muito pessoal beneficia de permissão especial do Groucho para ser divulgado no clube)

Estou a viver um drama. Não sei se concordo ou não concordo com o Francisco José Viegas, ele que é tão simpático comigo. Pior: umas vezes sei que concordo, outras sei que não. Pior: concordo agora e, logo a seguir, já discordo.
Por exemplo, o Francisco tem razão quando diz isto. Bem, talvez «arrogância» nem seja a palavra que explique tudo, mas também faz parte do rol. Depois, apontou e muito bem o ridículo a que as coisas podem chegar.
Agora, o que não percebo mesmo é que ele venha dessa pontaria toda para chegar a este (desculpe lá, Francisco) tiro completamente ao lado. O Francisco deveria ter tomado mais atenção à cara do Dr. João Soares enquanto o pai falava: aquilo era uma lição de hermenêutica. Sabe, Francisco, foi a primeira vez que eu vislumbrei por que é que algumas pessoas minhas conhecidas resumem a descrição política do pai do Dr. João Soares ao adjectivo (mas na boca dessas pessoas até parece um substantivo) “mentiroso”.
Eu fico deliciada quando pessoas como o Francisco são impiedosas com as bojardas dos bloquistas de esquerda. Aquilo para mim tornou-se uma seita muito suspeita (e desculpem a rima). Que o Dr. Louçã é um político pequenino com a mania das grandezas, já estava eu farta de saber. A noite passada, infelizmente, percebi que nem isso é verdade. O Dr. Louçã não passa de um demagogo de segunda categoria, na melhor das hipóteses. O Francisco não acha?
Entretanto, o Francisco falou de um sapo com óculos. Não consegui decifrar quem era a vítima da caricatura, porque a páginas tantas fartei-me da televisão: off. Mas percebi perfeitamente que o Francisco não estava a falar de nenhum dos candidatos e isso merece um elogio. Nós, as mulheres, somos muito sensíveis aos ataques ad hominem. Ora, o Francisco José Viegas não se deixa misturar com aqueles malcriados que têm o desplante de dizer que a única chatice, nestas eleições, é Portugal, agora, passar a ser representado ao mais alto nível por um manequim da Rua dos Fanqueiros.

22 janeiro 2006

Renovação e coincidência

— Ó Groucho, isto está bonito, hã?
— Gosta?
— Pois claro que gosto!
— Precisávamos de nos renovar, não acha?
— Sem dúvida! Eu bem estranhei a sua ausência…
— Pois, foi para me concentrar melhor…enfim…nisto…nos pormenores…
— Um retiro estético, estou a ver.
— Mais ou menos isso, sim.
— A cor foi escolha sua?
— Foi. Parece-lhe bem?
— Sim…quer dizer…
— Seja sincero!
— Descanse, não tenho nada a objectar. É só que…
— Vá lá, desembuche!
— Já reparou na coincidência?
— Coincidência? Com quê?
— Como direi?... Parece a cor do sol a pôr-se.

Antes que, neste dia infausto, o sol se ponha















Não, não, lamento decepcionar-vos, não é o título do próximo romance de Lobo Antunes. Mais prosaicamente, o que se segue é um caderno de encargos para aquele grupo de cidadãos que sente que hoje se extingue uma fase feliz das suas vidas: a década em que não tiveram de suportar Cavaco Silva. Como dizia Novalis, «Tudo é romântico quando visto ao longe». E, ante a iminência do seu regresso, todos os momentos dessa década, os felizes como sobretudo os infelizes, se nimbam de uma aura nostálgica. A nostalgia do que não regressa mais.
Verdade se diga que, se tem de ser, então seja já: mais 15 dias de épica alegrista à esquerda é mais do que um espírito pós-pessoano pode suportar. Fazer da «Pátria», à mistura com beijos no busto de Torga, um argumento eleitoral (para perceber o que dá essa mistura é só ler Portugal, do mesmo Torga), é coisa que só lembra a alguém disponível para estátua de comendador - cuja existe já num parque à beira do Mondego. Mas há sempre um número suficiente de desempregados da revolução para alimentarem quem se disponha a representá-los, a cada eleição presidencial (tem sido assim desde que Otelo decidiu «enfrentar» Eanes na sua primeira eleição).
Proponho então, a todos aqueles que não tencionam acompanhar o discurso de vitória de Cavaco, mais logo, os seguintes cartuchos para queimar até daqui a umas horas (a pólvora seca tem também as suas virtudes catárticas, moderadamente terroristas). Convém aliás fazê-lo antes que um dos intelectuais de serviço à esquerda se disponha ao elogio das virtudes do professor (ocorre logo um que há 20 anos se dispôs prazenteiramente a essa missão regeneradora). Aqui vai então uma modesta proposta:
1) Ler um bom romance libertino (o clássico de Laclos ou, já noutra latitude, qualquer das obras disponíveis do divino Marquês);
2) Ver um bom filme libertino (sugiro Coisas Secretas, de Jean-Claude Brisseur, recentemente lançado em DVD pela Atalanta, a preço mais que módico);
3) Ainda nesta matéria, recordar minuciosamente, por uma última vez, as ligações perigosas de vários ministros dos governos de Cavaco com Champalimaud, na fase das privatizações (uma calúnia, como é sabido);
4) Recordar o exemplo moral da década cavaquista, sem (sequer sombra de) jobs for the boys e esperar que, estribado nesse bom exemplo, o professor ponha cobro à crescente falta de vergonha socrática nesse domínio;
5) Comer bolo-rei à tripa-forra, de boca bem aberta, sem complexos nem fantasmas;
6) Borrifar-se, in mente, para a hierarquia e o «respeitinho»;
7) «Torcer», in pectore, para que a conjugação do apelo da universidade e o nojo da política levem o professor a desistir do segundo mandato presidencial que vem sempre, como bónus, no pacote do primeiro;
8) Recordar que o número exacto de cantos d’ Os Lusíadas é 11 (ou 9?) e que o autor da Utopia é Thomas Mann. Afinal de contas, uma vitória eleitoral é sempre também um regresso do recalcado;
9) Rever no vídeo a arruada madeirense de Cavaco, de braço dado com Alberto João, e passar a banda sonora: «Défice democrático? Nunca me passaria pela cabeça pôr em causa as decisões do povo» (adaptar a banda sonora a imagens de Hitler eleito em 1933 «pelo povo», e que se danem os puristas da filologia: Benjamin já explicou, há muito, as complacências do historicismo ante «aquilo que há»);
10) Ponderar gravemente que, bem vistas as coisas, ao longo da sua história, Portugal já sobreviveu a muita coisa má – antes de ponderar melancolicamente que 10 anos de Cavaco mais a iminência de outros 10 é areia a mais para a nossa curta vida. O melhor é ler e reler o poema de Drummond, «No meio do caminho tinha uma pedra»;
11) Desejar que Manuel Alegre durma muito descansadamente amanhã e depois, quando voltar para a bancada do PS (sim, que a ele ninguém o cala nem dá lições de moral!).
Quanto às possibilidades 12, 13 e etc., ficam para os leitores, meus semelhantes, hipócritas e irmãos. O tempo urge e há que não desperdiçar os últimos segundos.

Dia das urnas, 3

Hay un lugar que yo me sé
en este mundo, nada menos,
adonde nunca llegaremos.

Donde, aún sin nuestro pie
llegase a dar por un instante
será, en verdad, como no estarse.

Es ese un sitio que se ve
a cada rato en esta vida,
andando, andando de uno en fila.

Más acá de mí mismo y de
mi par de yemas, lo he entrevisto
siempre lejos de los destinos.

Ya podéis iros a pie
o a puro sentimiento en pelo,
que a él no arriban ni los sellos.

El horizonte color té
se muere por colonizarle
para su gran Cualquieraparte.

Mas el lugar que yo me sé,
en este mundo, nada menos,
hombreado va con los reversos.

-Cerrad aquella puerta que
está entreabierta en las entrañas de ese espejo.
-¿Esta? - No; su hermana.

-No se puede cerrar. No se
puede llegar nunca a aquel sitio
-do van en rama los pestillos.

Tal es el lugar que yo me sé.

César Vallejo

Dia das urnas, 2

Hay golpes en la vida, tan fuertes ... ¡Yo no sé!
Golpes como del odio de Dios; como si ante ellos,
la resaca de todo lo sufrido
se empozara en el alma... Yo no sé!

Son pocos; pero son... Abren zanjas obscuras
en el rostro más fiero y en el lomo más fuerte.
Serán talvez los potros de bárbaros atilas;
o los heraldos negros que nos manda la Muerte.

Son las caídas hondas de los Cristos del alma,
de alguna fe adorable que el Destino blasfema.
Esos golpes sangrientos son las crepitaciones
de algún pan que en la puerta del horno se nos quema.

Y el hombre... Pobre... pobre! Vuelve los ojos, como
cuando por sobre el hombro nos llama una palmada;
vuelve los ojos locos, y todo lo vivido
se empoza, como charco de culpa, en la mirada.

Hay golpes en la vida, tan fuertes... Yo no sé!

César Vallejo

Dia das urnas, 1

Me moriré en París con aguacero,
un día del cual tengo ya el recuerdo.
Me moriré en París -y no me corro-
tal vez un jueves, como es hoy, de otoño.

Jueves será, porque hoy, jueves, que proso
estos versos, los húmeros me he puesto
a la mala y, jamás como hoy, me he vuelto,
con todo mi camino, a verme solo.

César Vallejo ha muerto, le pegaban
todos sin que él les haga nada;
le daban duro con un palo y duro

también con una soga; son testigos
los días jueves y los huesos húmeros,
la soledad, la lluvia, los caminos...

César Vallejo

21 janeiro 2006

Desencriptação, 1



















Cara clara Clara,

Foram três dias de trabalho, mas já comecei a desencriptar os ficheiros. Ainda não é claro que estas imagens correspondam ao som das escutas. Ou até, se esta é de facto a chave que as descodifica. Seja como for, algum satélite deve ter sido redireccionado para este quadrante, no afã de encontrar um padrão na fúria do som e dos gestos. Quem nos observa?

Desencriptação, 2


legenda: ABB e GR descem as escadas. vê-se ainda uma sombra, em baixo, à direita, e parte do braço de MP.

Desencriptação, 3



















legenda: FMO, OMS e G conversam. FMO está de pé, atrás. OMS, à esquerda, e G, à direita, sentados em primeiro plano. outras figuras ainda não foram identificadas.

Desencriptação, 4












legenda: PS e LQ pouco antes de dobrarem a esquina. apesar de mal focada, consegue ainda perceber-se a trajectória seguida.

Desencriptação, 5

















legenda: GR e CA em baixo, junto à janela. a julgar pelo ângulo, esta imagem terá sido obtida a partir do terceiro andar do prédio em frente.

Desencriptação, 6
















legenda: G, visto de costas, com o telefone na mão direita.

Na dúvida

O Groucho já voltou?

20 janeiro 2006

Começamos a comunicar?

Disto é que eu não estava à espera. Eu não pensava fazê-lo, mas agora, cavalheiros, vejam como não posso impedir-me de transcrever estes dois extractos do cd encontrado no envelope castanho. Mais uma conversa com data e a data infere-se sem custo. Alguém, neste clube, terá de inquirir das causas, de pedir satisfações, de procurar uma explicação. Quem quer ser esse procurador? (Não censurei a linguagem por motivos óbvios, por motivos de autenticidade. Os interlocutores escutados concordaram. Ao fim de alguma celeuma, é certo, mas concordaram. Ou, pelo menos, assim me pareceu.)

Escutas telefónicas, 3


— Oh pá, não é isso!....
— Então o que é que ‘tás a dizer?
— Foda-se, não percebes? O que eu ‘tou a dizer é que é inútil bateres nesse gajo duas vezes, pá.
— Inútil, porquê?
— Porque a esse gajo dá-se um desconto, pá, já se sabe como é qu’ele é.
— Ai sabe?
— Claro, pá.
— Então com’é que ele é?
— Não sabes que o gajo é conhecido como o Adorno das Picoas? ‘Tá toda a gente farta de saber isso!
— Olha, eu nunca ouvi dizer…
— O gajo é um catálogo de alcunhas, ‘tão sempre a aparecer novas. É perder tempo, parece que ‘tás a bater em espantalhos, ó caraças…
— O qu’é que querias que eu fizesse, merda? O gajo meteu-se nisto até ao pescoço, andou para aí a atear fogos.
— ‘Tá bem, mas escusavas de lhe fazer publicidade, pá. Disseste uma coisinha de nada sobre o EPC, voltavas à carga com o EPC, era melhor, ou não era?
— Com o EPC?... Mas o EPC só falou do assunto uma vez! Que eu saiba.
— Qu’é qu’interessa o assunto? Mudavas de assunto!
— Mudava de assunto?!
— Claro, pá!
[Curto silêncio.]
— Não viste a crónica dele ontem no Mil Folhas?
— Era sobre poesia, não era? Queres que eu me vá meter com…
— Caga na poesia, meu! Aquilo tinha um post-scriptum
— Outro?!
— Pois, pá! Um PS em que o EPC se punha a falar de livros que não leu, pá, e agora até já diz abertamente que não os leu, isto é d’um gajo se passar!
— Mas se ele diz…quer dizer…qual…
— Qual é o mal?! Então o PS é sobre os livros que saíram em 2005, era para acabar o balanço sobre os livros importantes, ‘tás a ver? Com’é que ele sabe que os livros são importantes se não os leu, foda-se?!
— Pois…realmente… Eh pá, se calhar…
— Se calhar o quê? Vens-me prá’í com teorias, é? Até lá pôs um livro daquele Manuel de Freitas e sabes o que é que acrescentou entre parêntesis?
— Não.
— Que tinha de o procurar! ‘Tás a ver, não é, o EPC na Fnac a pedir ao empregado o livro do Freitas… E no fim ainda atira que há omissões que ele faz que são piedosas e deliberadas! Textualmente, pá! Piedosas e deliberadas! Como se alguém hoje em dia desse um caneco pela piedade do EPC…
— Pois…mas não achas que podias inverter isso e…enfim…eh pá…
— Aaaaiiii, lá vens tu com as pieguices!
[Gravação interrompida.]

Escutas telefónicas, 4


[Gravação retomada.]
— ‘Tavas a falar do Manuel de Freitas há bocado, viste o que o Melícias escreveu sobre ele?
— O Melícias, qual Melícias?
— O Jorge Melícias.
— Não, não vi.
— Tens de ver! Eh pá, grande texto!
— Mas é sobre a poesia dele?
— Não, é mais sobre a crítica que ele faz no Expresso, mas no fim dá a volta à coisa de tal maneira que vai tudo dar à poesia dele, percebes?
— Mas como?
— Eh pá, a ideia é que o Freitas trata os poetas que critica como se fossem marionetas e as marionetas são só uma maneira d’ele falar de si mesmo porque é ele quem as manipula, percebes?
— Isso ‘tá bem visto, mas não será o mesmo que acontece a todos os poetas quando fazem crítica?
— Pois, talvez, só que no fim ele diz que o Freitas aparece sempre manipulado pelo Joaquim Manuel Magalhães. Faz dele uma marioneta, no fim de contas. Eu só fixei a frase em que ele fala do Magalhães. Diz isto: “a figura papal e sinistra de Joaquim Manuel Magalhães”.
— Papal e sinistra?! Eh lá, isso é forte…
— Eu até acho que é exagerado. Não era preciso tanto para falar dum epígono, mas…
— O Magalhães é um epígono?
— Não, ‘tava a falar do Freitas. Quer dizer…não sei se era preciso aquela coisa do Papa para dizer que o Manuel de Freitas anda só a pregar doutrina, percebes?
[A gravação acaba.]

Clara,*

Vejo, sim, que não percebi o teu post. Mandei umas postas e, somando tudo, acabei por descarregar o “qua, qua, qua”, sublimando o “Voyous”… Compensarei, se puder, com algumas imagens.
* vírgula

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho















Jardim, Alberto João: 1. Líder político na reforma. 2. Shaka Zulu (no Carnaval). 3. Dizer, em estilo Pacheco Pereira: «Vocês não têm é sentido de humor…».

João Paulo II: 1. Deu cabo do império soviético, com duas ou três visitas e meia dúzia de missas campais na Polónia. 2. Contrariando o devir do mundo, foi esquerdista em matéria social e conservador em matéria de costumes (divórcio, sexo, preservativos, aborto, homossexualidade). 3. Globetrotter e terrível poliglota, introduziu nos curricula dos seminários cadeiras obrigatórias de turismo, tradução e comunicação televisiva, em detrimento do latim, grego e aramaico, hoje menos pertinentes. 4. A juventude adorava-o e criou para ela grandes encontros de jovens cristãos de todo o mundo, baptizados pelos média «Woodstocks religiosos», nos quais o uso dos preservativos foi sempre rigorosamente proibido (já no que toca aos charros, e a bem do espírito de Woodstock, tem havido outra tolerância). 5. A indústria dos preservativos, aliás, não gostava nada dele. Isso não impede que se encontrem no mercado preservativos com a sua vera efígie. 6. Já a do multimédia adorava-o, pois teve até discos nos top’s. 6. Aguarda-se com impaciência o DVD de carreira, que incluirá vídeoclips de todas as grandes viagens e peregrinações, com destaque obrigatório para Fátima. Anuncia-se footage inédito de conversas suas com Gorbatchov, Suharto, Clinton, Bush, Santana Lopes e a Irmã Lúcia.

JL: 1. Está para durar, tanto mais que não lhe faltam apoios (da Gulbenkian, do Ministério da Educação, do Instituto Camões, you name it), em virtude dos altos serviços que vem prestando à cultura portuguesa. 2. Com tantos apoios, consegue ser o jornal mais caro do mundo – embora, e as verdades são para serem ditas, seja um dos mais estimulantes. 3. Ainda lá hão-de ter o Pedro Mexia como cronista, quando ele assentar.

Balanços e melões




















- Há que tempos, senhor! De novo por cá? Por uns tempos, espero…
- Olhe que não, olhe que não…
- Essa é do Cavaco, não é?
- Agora, parece que já é, como tudo parece ser dele, por estes dias. Mas não era, antigamente. Muito antigamente… Mas enfim, é a disseminação derridiana a funcionar.
- Lamento a brevidade anunciada da sua aparição. Já agora, diga-me, senhor: viu os balanços literários de 2005?
- Por alto, Groucho. Começo a ler e fico traumatizado com tudo o que não li e devia ter lido. Prefiro ver antes as fotos dos balançadores e imaginar, nalguns casos, e antes mesmo de ler o que dizem, os livros que irão destacar. Mas fracasso sempre da forma mais miserável: não bate quase nunca a bota com a perdigota, ou o livro com o leitor.
- Não viu então o balanço de Eduardo Prado Coelho, no «Mil Folhas»?
- Por alto, também. Mais uma vez, parece-me que confundiu a epistemologia do balanço com a da lista avulsa. Ou estou errado?
- De modo nenhum, senhor. Mas sabe, o melhor do balanço dele veio na semana seguinte, em forma de P.S. à crónica de 14/1/06 no «Mil Folhas».
- E porquê, caro Groucho?
- Ora, porque ele refere alguns «esquecimentos imperdoáveis» da lista da semana anterior e tenta corrigir o lapso. O que é extraordinário é que em quatro casos destaca obras que confessadamente não leu…
- Não posso! O meu amigo é que leu mal, seguramente.
- Mas qual quê, senhor. Ora espere um instante que eu vou ali ver se descubro o suplemento. [Ausenta-se por momentos] Aqui tem. Ora veja: «Génese, de António Ramos Rosa (que ainda não li)»; «A Flor dos Terramotos, de Manuel de Freitas (terei de o procurar)»; «um primeiro romance de Lourença Baldaque (que ainda não li)». E, já com algum requinte de crítico com banca montada: «um livro de poemas que vejo referido mas nunca me chegou às mãos: A Estrada Branca de José Tolentino Mendonça». Que me diz a isto?
- Clarividência histórica, Groucho. Nada menos. Não sejamos mesquinhos perante quem consegue descortinar o valor de um livro sem o folhear. É um dom só ao alcance dos grandes críticos. Reza a lenda que Gaspar Simões também o conseguia.
- Seguramente, senhor. Mas sabe o que me ocorreu? Fazer, também eu, um balanço do ano, radicalizando o dispositivo heurístico de EPC.
- Não o acompanho…
- É fácil. Aqui vai então o meu Top Ten de 2005: As Intermitências da Morte, de José Saramago; O Quadrado e outros contos, de Manuel Alegre; D’ Este viver aqui neste papel descripto, de António Lobo Antunes; Bilhete de Identidade, de Maria Filomena Mónica; Falsa Partida, de Fernando Luís Sampaio; Fazer pela Vida: Um Retrato de Fernando Pessoa, o Empreendedor, de António Mega Ferreira; Sem Nome, de Hélder Macedo; Os Dias Contados, de José Sasportes; A Nuvem Prateada das pessoas Graves, de Rui Costa; e, para concordar por uma vez com EPC, A Estrada Branca de José Tolentino Mendonça. Falta-me só lê-los, mas esse pormenor despiciendo não me impede o reconhecimento do carácter sumamente interessante destas obras.
- «Sumamente interessante», Groucho? Reencontro-o demasiado contaminado pela prática valorativa sumamente interessante do nosso crítico de referência.
- O que quer, senhor? Les beaux esprits… E depois, isto anda tão parado, tão desertado – o que é feito dos senhores Baptista e Oliveira? – que uma pessoa acaba por se aconchegar à sombra do «Mil Folhas».
- Isto anda mal de balanços, de facto. Dá ideia que os casmurros foram apanhados pela casmurrice da vida. Mas não invejo também o seu destino, meu caro. Pouco estimulante, se quer saber.
- Mas assaz interessante, senhor, não acha?
- Temos de concluir que ele há balanços pra tudo, meu caro Groucho. E, bem vistas as coisas, o melhor balanço é o que nos promete um mundo de livros por vir. Ou que, já vindos, estão ainda por abrir.
- É aquilo a que com propriedade podíamos chamar a epistemologia dos melões, senhor…
- Eu diria antes, a filosofia da história sub specie melões.
- Não sei se não descaímos ligeiramente no pornográfico…
- É possível. O limiar entre cultura e pornografia é por vezes ténue, como sabe.
- Refere-se ao casus belli Lagarto versus Fragateiro, senhor?
- Por quem é, Groucho! Passe-me antes o «Mil Folhas» para ler com toda a atenção o balanço do ano passado. E já agora, se não se importa, traga-me uma fatiazinha de melão. Brasileiro, suponho, nesta altura do ano.
- Sim, claro. Já agora, e se fizéssemos também o balanço do ano literário no Brasil?
- Não acompanhei de perto, Groucho, lamento.
- Por isso mesmo, senhor, por isso mesmo!

19 janeiro 2006

Escrever a pena

Eis a pena de pato: Qua! Qua! Qua! Parreco, marreco, por muito qua!, qua! e qua! não grasna sob’rano. O qua!, qua!, qua! não faz eco, logo não poderá. Qua, Derrida? – Paté de foie ou quoi?

Último comércio

Enfim, o comércio, ouvido de uma amiga, a Vilma (cheers!): que em certa ocasião num imenso shopping central (em São Paulo ou no Rio de Janeiro, tanto faz, recordo aumentando poucos pontos ao episódio) um grupo grande de favelados encheu a superfície e comprou e comprou, lotou carrinhos e mais carrinhos, do bom e do melhor; caras as roupas, comidas igualmente custosas, perfumes à farta. A abundância toda nos carrinhos. Mas toda mesmo: não ficou nada no lugar. Horas a fio, sob o tenso olhar atento de empregados e mobilizada já a gerência perante a situação desventrada. Passaram todos os carrinhos, calmos um a um, sem pausa, sem pressa, cada produto registado pelos frenéticos leitores de códigos de barras. Sobreveio um prazer último, o prazer final depois de um dia bem passado no shopping - como, por exemplo, naqueles pic-nics de outros tempos -, um prazer derradeiro de dizerem todos os consumidores, sem excepções: “Não tenho dinheiro para pagar, não posso levar nada não!” Gostosura de comprar mesmo, e que tendo custado balúrdios, não custou um tostão.

Nova tentativa de comunicação

Acho que os cavalheiros não entenderam bem o que eu comuniquei. Ou talvez seja eu que não entendo o que os cavalheiros me estão a querer dizer. Para ver se nos entendemos, transcrevo aí abaixo duas conversas gravadas no tal cd que veio num envelope castanho, etc. Emendo: uma conversa. Dois bocados da mesma conversa, mas a gravação de cada um vem isolada, como se quisessem dizer alguma coisa com o facto de seleccionarem estes trechos e desprezarem outros. A conversa aconteceu no sábado passado. Pelo telefone deste clube. Foi uma conversa privada que eu mantive com quem não preciso de explicitar. Mas há mais conversas, mais extractos de conversas entre outras pessoas, noutras datas. Faço-me entender? (Pelo sim, pelo não, paguei a conta. E guardei a factura, claro.)

Escutas telefónicas, 1

— Acho que deu ao assunto uma importância que ele não tem, só isso.
— Há quem tenha outra opinião. A começar por mim, evidentemente.
— Além do mais, está a sugerir soluções sem pensar nas consequências. E se houver artistas que ficam sem trabalho, salas que fecham as portas, projectos que têm de ser abandonados?
— Ora, disso já há para aí com fartura. E assim, ao menos, ficavam todos em pé de igualdade. Da maneira como as coisas estão, ficamos todos é de pé atrás…
— Mas está a sugerir que há motivo para suspeitas sem dizer nada de concreto!
— Nem preciso de dizer. Está à vista de todos.
— Fica a impressão de que está a defender a ministra, que ainda por cima é sua colega…
— Isso é má vontade. Há imensos políticos que são meus colegas e Deus me livre de os defender! Pelo contrário, acho que há em Portugal uma tradição desgraçada de professores na política. A tendência é para serem parte do problema, não da solução.
— Ponha-se para aí a dizer essas coisas e depois queixe-se de que arranjou sarilhos.
— Oh, Clara, até parece que temos os telefones do nosso clube sob escuta! Com franqueza… [Gravação interrompida.]

Escutas telefónicas, 2

[Gravação retomada.]
― Mas nem sequer está bem escrito!
— Não está bem escrito?!
— Não. A certa altura diz que a ministra parece “jornalisticamente morta”. Que raio de coisa é que isto quer dizer?
— A ministra, Clara…
— A ministra não é Clara. Clara sou eu.
— Não, não! Eu estava a usar um vocativo, Clara! Eu fiz a pausa. O que eu disse foi: A ministra…Clara…etc.
— Etc? Mas não disse mais nada!
— Não disse porque a Clara me interrompeu! Não cheguei a completar a frase.
— Pronto, pronto, então complete-a lá.
— Não é a ministra, Clara, é a querela contra a ministra que parece jornalisticamente morta.
— Ah, a querela… E que importância é que isso tem?
— Que importância? Então, significa que parece morta mas que está só em pousio, que vai haver outros episódios, que o sururu não acabou ali.
— Estou a ver… Era uma prolepse discreta, portanto.
— Chame-lhe o que quiser.
— Não lhe chamo mais nada porque daqui a pouco vai começar um filme do César Monteiro que eu quero ver. Vou ter de desl…
[Ruídos na gravação.]
— Do César Monteiro? O petit rhétoriqueur?
— Sabe perfeitamente de quem estou a falar.
— Claro que sei, Clara. É o Luiz Pacheco do grande ecrã.
— Para que é que se põe a dizer essas coisas? Não posso ver um filme em paz?
— Claro que pode, Clara. O único conselho que eu lhe daria é que de cada vez que vê um filme faça por ver cinema. Fora isso…
— Boa noite, com licença!
[Termina a gravação.]

18 janeiro 2006

Ainda o comércio

Ainda outra fábula do comércio, esta contada pelo Rodrigo Cortés, realizador aqui de Salamanca, numa excelente curta do ano 2000, 15 Días. A respectiva sinopse reza assim: “Cástor Vicente Zamacois es un mafioso entrañable, un tipo inteligente, desengañado y sin raíces, que considera la teletienda como lo más parecido a una madre”. Cástor vive à grande e à francesa sem ter um tostão. As melhores roupas, livros, cds, electrodomésticos, enfim, tudo. Cástor compra tudo sem dinheiro, desfruta tudo durante 15 dias, a quinzena que a lei permite dispor das compras até as devolver. Entretanto, será coincidência, será, mas o volume de devoluções de tudo, nos dias que se seguiram ao passado Natal e “Reyes”, aumentou espantosamente. Ontem mesmo, numa livraria do centro, um leitor trocou um livro x por um livro y, e nada garante que este último não venha a ser trocado por um outro livro z.

Para Clara

É melhor a voz, ainda que não seja em carne viva. Lembra-te do comércio entre vendilhões chineses e vendilhões espanhóis; acolá, não há contrato escrito que valha, exasperando-se infinitamente os segundos. Para os primeiros a letra está sempre no passado, dizem eles ser “imoral” mantê-la no presente. Haverá maior astúcia de uma viva voz impossível? Bom, vou ouvir agora aquela dos Franz Ferdinand que diz “It’s always better on holiday / So much better on holiday / That’s why we only work when / we need the money”. Chegando-te a conta, não a pagues, não faz diferença.

Ciência Nova

Odeio balanços. Como se houvesse alguma coisa mais relevante do que qualquer outra. Os livros hoje são um problema fundamentalmente museológico, como diz o Fernando R. de la Flor em "Biblioclasmo" . O resto são cliques auto-promovidas e supostamente informadas sobre o que é in e o que é out. Mas se querem brincar aos balanços, leiam o livro dos livros publicado em 2005 (se é que têm tempo, coragem, lucidez - predicados arredios ao Espectáculo): refiro-me à tradução integral da Ciência Nova de Giambattista Vico publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Influenciou Joyce, mas é bem mais instrutivo que Joyce. Não promovo tradutores, mas há gente na sombra a fazer o que ninguém faz por este país de alimárias. Conhecem Jorge Vaz de Carvalho? Eu não! E depois?

Capítulo em que se abre o envelope

Cara Clara (e clara Cara),

É bom voltar a lê-la. Como sabe, tenho andado arredado do clube, não por misantropia arredia, mas antes pela entropia corredia que me tomou conta dos dias. Corre dia, corre, the policeman said. Não preciso que me lembre que devo ser senhor do meu destino. Bem sei. Mas quem controla as ânsias e as circunstâncias? Quem? Não me teria posto a digitar se não sentisse na urgência da sua comunicação um apelo a que não consigo ficar imune. Não tema o tema. Nada direi que vá além dos estreitos limites da discrição e do decoro. Descrição de coro, digamos. É o cavalheiro que há em mim quem se deixa interpelar. Aliás, é sempre ele, a minha cara-metade, minha cara. Metade daquilo que nos acontece permanece obscuro. Esse envelope, se for igual a um que eu encontrei na caixa em Dezembro, já não é o primeiro. Perguntar-me-á: mas por que não disse nada? Bom, talvez fosse da melancolia metálica que tomou conta do clube no começo do Inverno. Que, dias e dias a fio, parecia ser o clube de um só. E um só é sempre mal acompanhado. Era o Casmumrro. Via-me sozinho, entre quatro paredes, e sabe a inércia que isso provoca. Tentei abrir os ficheiros que vinham no CD mas estavam encriptados, e só aparecia um código incompreensível. Fiquei com a impressão de que seriam imagens, mas é apenas uma conjectura. Quem sabe se há alguma ligação com as vozes que a Clara ouviu nessa gravação? É isso que temos de descobrir. Agora que me trouxe o envelope de novo à memória, não descansarei enquanto não desencriptar os ficheiros. Quem sabe se alguns dos mistérios do clube não serão finalmente desvendados? Aguardo, com expectativa, a volta do correio.

17 janeiro 2006

Comunicação urgente

Caríssimos cavalheiros:

Estranhamente encontro-vos a todos incomunicáveis, apesar de alguns de vós terem passado aqui há bem pouco tempo. Tenho, pois, de me servir deste nosso intercomunicador (e não gosto nada desta palavra, que me soa redundante) para vos transmitir uma informação da maior importância.
Abri hoje cedo a caixa de correio do nosso clube e encontrei lá dentro um envelope castanho. Pensei que fosse o Groucho a dar notícias. Não era. O envelope continha um cd sem marca, muito bem embrulhadinho, e em anexo uma folha solta de caderno quadriculado com letras de jornal recortadas e coladas de forma a compor a frase: “É melhor que ouçam isto.”
Comecei a ouvi-lo ainda há poucos minutos e não quis acreditar: reconheci a minha própria voz! Mas também reconheci, perplexa, a voz de alguns dos cavalheiros. Não sei o que fazer. Por favor, contactem-me com urgência!

PS: Também estava na caixa do correio um envelope da PT Comunicações. Se não pagarmos a conta do mês passado dentro dos próximos 2 dias, vamos ficar sem telefone. Não tenho cheques do clube.

16 janeiro 2006

Outra vez «a cultura» (enquanto o Groucho não volta)

Completamente proibido de me distrair pelas razões do costume (ó Fernanda, não se zangue!), passo aqui de corrida por ter lido (e nem isso deveria ter feito) o seguinte, que escreveu o Eduardo Pitta: “Um ministro serve para quê? Para definir e responder por uma política. Faz isso sentido na Cultura? Mas como? Em sociedades livres, digo eu. Em Cuba e na Coreia do Norte a gente percebe. Em contexto democrático é arrebique fútil.” As perguntas são as perguntas certas e as respostas são praticamente incontestáveis. Só não fica esgotado o assunto com a última frase, como aliás se infere, na perfeição, do próprio post do Eduardo Pitta, que acaba a mencionar figuras e práticas conhecidas da política francesa e do portuguesíssimo Estado Novo. Que Jack Lang e o dirigismo francês serviram de inspiração para ministros portugueses «da Cultura», nem preciso de argumentar: houve quem o confessasse como quem ostenta motivos de orgulho (não é preciso pôr nomes, certo?). Está claro que ninguém vai reivindicar-se da tradição de António Ferro, mas que a sombra dele paira pelos gabinetes do Ministério e respectivos Institutos, para mim, com o conhecimento que tenho das coisas, é matéria de facto. Quero eu dizer, sem desacompanhar o Eduardo Pitta, espero, que há arrebiques cuja futilidade é mais perniciosa nos seus verdadeiros efeitos precisamente por se apresentar com a máscara da utilidade, da missão nacional, da resposta imprescindível aos «anseios» do País. O fútil, nestes casos, torna-se funesto. E tanto mais funesto quanto pessoas «da cultura» exigem, da maneira menos desinteressada e mais calculista possível, que o Estado as proteja, as salve e, no fundo, as substitua na tarefa de defender e fazer vingar as suas próprias opções e convicções. O dirigismo é, em todas as suas formas, uma prática que nasce de baixo e cujo primeiro suporte são os próprios dirigidos. O resultado disto em Portugal está à vista e não é bonito de se ver: sectores artísticos que se tornaram, já dispensados de qualquer prova de mérito, nos artistas do regime; pessoas ou conjuntos de pessoas que, façam o que fizerem, têm garantida a maior fatia dos «apoios» estatais; práticas e ideias artísticas ou «culturais», tão válidas como quaisquer outras, transformadas em gosto e ideologia oficial, por força da acumulação de privilégios (financeiros e outros); funcionários e organismos do Estado que se arrogam — e exercem — o direito de sustentar uma estética e de estabelecer alianças mais do que suspeitas com sectores precisos da vida «cultural». Tudo isto tem nomes. Uma parte deles (e às vezes a mesma) é aquela que tem usado dos meios da imprensa para dar cobertura sistemática, continuada e denodada (honra lhe seja) a este estado de coisas e que, não raras vezes, se disfarça de jornalismo profissional. Não esqueçamos que, se este debate prossegue (saúde, Francisco!), a verdade é que prossegue sobretudo no meio ainda restrito dos blogues e da Internet. (E desculpem lá o comprimento e o tom demasiado sério da conversa, tão pouco próprios deste clube. O que me safa é o Groucho estar em parte incerta. Até quando?)

14 janeiro 2006

Eu até vou mais longe

O Eduardo Pitta e o Francisco José Viegas não só concordaram como tiraram a conclusão correcta: que falta cá faz um Ministério da Cultura? Claro, tem de ser substituído esse exagero por uma coisa mais modesta ou, como o Francisco diz, o assunto resolve-se por cadeiras. Numa época de recessão psicanalítica, fica mal pôr na boca dos outros intenções tácitas, mas creio que não abuso se disser que ambos têm em mente o problema dos dinheiros e, com os dinheiros, das clientelas parasitárias do aparelho de Estado. Que a querela contra a ministra (hoje, sábado, numa aparência enganadora de estar jornalisticamente morta), que a querela, dizia, traz essa água no bico é uma evidência. E por isso é que eu até vou mais longe: acabando-se com o Ministério, como se deve acabar, ou mesmo antes disso, extingam-se todas as formas de subsídio estatal, sobretudo na área das artes de palco, onde as relações estão manifestamente inquinadíssimas. Dinheiro do Orçamento de Estado? Só para os Teatros Nacionais (e já gastam que chegue). Isto costuma levantar objecções teóricas, do género das que A.M. Seabra tanto se delicia a elaborar nas páginas do Público, mas meter aqui a teoria serve apenas para proteger interesses e manobras pouco confessáveis: eliminar os subsídios é hoje, obviamente, uma medida profiláctica de saneamento básico mais ou menos equivalente à de instalar canalização de esgotos num bairro onde só haja fossas. Pugnemos pela higiene e tiremos a todos os ministros o fundamento, que sem dúvida ainda têm, para usar o argumento dos poderes instalados neste reino tão pouco inocente das coisas «da cultura». Disse, está dito.