08 março 2006

O morto, com menoscabo

— Bom dia!
— Bom dia! Faz favor…
— Eu queria… posso tratá-la por tu? Desculpe a ousadia, mas facilita muito o que lhe vou pedir…
— Claro que sim, adoro que me tratem por tu. Mas não fique já a pensar que digo isto a todos os que aqui vêm…
— Acredito… que adora e que não diz. Mas sem familiaridades, está bem? Não vá já imaginar coisas, que sou um ansioso, ou um atrevido, ou coisa assim. As mulheres abusam muito das interpretações precipitadas, saltam para cima das conclusões, como dizem os americanos. Quando não é para cima dos homens… Não quero que abuse da minha disponibilidade… e sabe que lhe noto olhos de abusadora? Não no sentido habitual, hoje corrente, mais o que no Norte chamam uma besunta. Não que… não que não sejam lindos, os olhos. Lindíssimos, aliás… olhe aqui para a luz... Isso... Com efeito, lindíssimos. E o pescoço, caramba! que belo pescoço… digno do busto, sóbrio, elegante, bem proporcionado… que bela mulher! ainda bem que possa tratá-la por tu, fica mais fácil, menos barreiras, menos distâncias, entende… posso espreitar-te para dentro do decote?
— Só se me disser o seu estado civil…
— Casmurro, Casmurro, eu sou do Casmurro…
— Ah, desculpe. Mas o que quer afinal?
— Eu? Venho identificar um cadáver, ora essa!