Racionalidade, racionalidades: o debate Sahlins-Obeyesekere (1)
Como refere Robert Borofsky[1], o célebre debate Sahlins-Obeyesekere é bem mais que uma mera “tempestade num copo de água”.[2] Ele extravasa em muito o significado “local” circunscrito pelas etnografias e contextos históricos em que se move, detendo significados e implicações cuja inscrição no campo das teorizações antropológicas convém ponderar.
Para lá dos argumentos esgrimidos em torno de uma suposta qualidade divina do capitão Cook – foi o capitão Cook entendido pelos havaianos nos anos de 1778 e 1779 como uma manifestação do seu akua (termo por vezes traduzido para o inglês por “deus”) Lono? -, o debate levanta todo um conjunto de problemas que exigem que repensemos não apenas o alcance epistemológico e metodológico das tradições antropológicas, mas também o lugar que auferem, num plano mais geral, as nossas construções sobre a diferença cultural e sobre a imagem que produzimos do passado. Borofsky delimita assim algumas desses problemas de alcance mais geral no seu ensaio de síntese sobre o debate, problemas que podem ser enunciados muito soltamente nestes termos:
Em que grau as políticas da identidade no presente exigem que reconsideremos o esforço etnográfico e antropológico?
Quem tem o direito de falar sobre quem (sobre outros, por outros) através das fronteiras da diferença no presente?
Como é que podemos avaliar proposições conflitivas sobre o passado de alguém?
Por último, um problema que recorta os que enunciei atrás (que o mapa de Borofsky ataca só tangencialmente), e que constitui o cerne do que me proponho fazer aqui, como poderemos “compreender” os universos simbólicos e práticos de outros, senão presumirmos não apenas uma “racionalidade” pan-humana mas também a possibilidade de traduzirmos culturas? O que nos lança no debate acerca da relação entre “mente” e “cultura” – um debate que nunca encontrou no interior das tradições antropológicas senão respostas imprecisas, sectoriais (senão mesmo paroquiais) e cujos desenvolvimentos recentes no campo das ciências da cognição tem de ser tomado em linha de conta. Uma das implicações a jusante de tudo isto será porventura o reequacionamento da aporia cérebro-mente/corpo, ou, de forma mais compreensiva, o debate natureza-cultura. Por fim, o que este último problema exige é também uma reapreciação transversal dos termos em que se colocam tópicos como sejam o das epistemologias convocadas, sejam elas de recorte racionalista ou de recorte relativista (que são, em grande medida, e a usar o chavão kuhniano, incomensuráveis, ainda que coexistentes).
É este último problem que me move aqui (que poderíamos articular talvez como aquele que se prende com a racionalidade, a cognição e o relativismo). Seja como for, e antes do mais, first things first, em que consistiu (melhor seria dizer em que consiste, dada a deriva exegética em que se tem desdobrado) o debate?
O debate. Observações iniciais
Em 1992 Gananath Obeyesekere traz a lume o seu The Apotheosis of Captain Cook.[3] O livro pretende desmontar criticamente a seguinte tese:
Quando o grande navegador e “descobridor” da Polinésia inglês James Cook chegou às praias do Havai – à sua principal ilha, Havai’i - no domingo de 17 de Janeiro de 1779 durante o festival de Makahiki, ele terá sido celebrado como o regressado deus Lono. Qualquer história de Havai’i incorpora este “facto”. Em rigor, qualquer narrativa sobre Cook e Havai’i o faz.
Para Obeyesekere, este “facto” foi criado pela imaginação europeia, baseando-se para tal em “modelos míticos” tecidos em torno do “formidável explorador e civilizador que é um deus para os ‘nativos’”.[4] Como escreve Obeyesekere:
A colocá-lo sem cerimónias, duvido que os nativos tenham criado o seu deus europeu; os europeus criaram-no para eles. Este “deus europeu” é um mito de conquista, imperialismo, e civilização – uma tríade que não pode ser facilmente separada.[5]
É durante a terceira expedição de Cook que este chegará ao Havai’i (1776-1779). Neste viagem, Cook – já uma personagem muito famosa pelas suas duas anteriores expedições - tinha como objectivo encontrar a “passagem do Noroeste”, uma passagem navegável que se acreditava atravessar a América do Norte de Este a Oeste e que iria encurtar enormemente a distância nas rotas comerciais entre a Europa e a China. É neste contexto que Cook irá descobrir Havai’i, e será aí que supostamente os nativos irão atribuir-lhe as qualidades do seu benevolente deus Lono que regressava de alhures precisamente a tempo das festividades cíclicas compreendidas pelo Makahiki.[6]
Acerca desta terceira expedição importa avançar com alguns elementos que são lugares muito comuns para os oceanistas, mas que aqui merecem rememoração. A história poderia começar a 6 de Julho de 1776, dois dias depois da Declaração Americana de Independência.[7] As instruções secretas do Almirantado a James Cook, Comandante da chalupa de Sua Majestade Resolution, diz na sua abertura: “Visto que o Conde de Sandwich [patrono da viagem, e o responsável máximo pelo Almirantado inglês] nos transmitiu a Vontade de Sua Majestade de se realizar uma tentativa para encontrar uma passagem pelo mar do Pacífico para o Oceano Atlântico…” A Cook, então com 48 anos, foi atribuído o comando do Resolution e do Discovery para encontrar a passagem do Noroeste através do Ártico. No caminho Cook encontrou as ilhas Havai. Cook avistou Havai’i, circum-navegou a ilha (princípios de Fevereiro de 1778), foi particularmente bem acolhido pelos havaianos, partiu para Norte, e encontrou uma parede de 12 pés de gelo em pleno Verão na extremidade norte do Alasca, regressou, contornou a Havai’i três vezes, sendo novamente bem acolhido, e partiu. O navio de Cook, o Resolution, que havia sido bem preparado para a sua segunda viagem, estava mal preparado para a terceira, já que fora equipado e afinado nos estaleiros de Deptford que se encontravam envoltos em acusações de corrupção e compadrio. Quando saíu do porto apresentava-se mal vedado e com problemas técnicos vários, em particular nos mastros. Assim, após a partida final de Havai’i, um mastro do Resolution quebrou-se em mar alto. Os barcos regressaram a Havai’i para serem confrontados, desta vez, com a hostilidade sistemática dos nativos. Por fim, a escuna do Resolution foi roubada. Cook reagiu agressivamente. Na refrega, ele e mais quatro marinheiros foram assassinados na praia.
Como é que Obeyesekere se interessou por esta história? Qual a posição que ele ocupa no espaço de discussão antropológica, e de que modo é que tal posição nos permite a nós, enquanto leitores, dilucidar os motivos em que se alicerça a sua “estranheza” perante esta narrativa fortemente essencializada e reificada pelos historiadores e etnógrafos das ilhas Havai, onde avulta o antropólogo culturalista americano Marshall Sahlins?
Obeyesekere afirma-se como um antropólogo que trabalha na Universidade de Princeton e um nativo do Sri Lanka. Foi, segundo ele, deste patamar[8] que emergiu o seu interesse por Cook. E é aí que entra Sahlins. Sahlins terá usado este exemplo, o da “apoteose do Capitão Cook”, a usar a expressão de Obeyesekere, para construir uma “teoria estrutural da história”.[9]
Como é que isto funciona em Sahlins?
Em termos etnográficos (mas evitando o detalhe), Cook terá chegado durante o festival de Inverno em que se celebra o regresso do deus Lono de uma terra distante para lá do horizonte. O regresso seria sempre simbólico, mas desta vez ele seria estranhamente real, personificando-se em Cook. Durante o festival, Lono circula em torno da ilha. Cook terá circum-navegado Hawai’i na direcção certa e no tempo certo, sendo tomado como Lono. Porquê então o homicídio? Porque quando o Resolution regressa após o incidente do mastro quebrado em mar alto, o festival de inverno tinha terminado. A desorientação é pois uma condição perigosa:
O capitão inglês partiu nos princípios de Fevereiro de 1779, quase precisamente no dia em que as cerimónias Makahiki fechavam definitivamente. Mas na sua saída para Kahiki, o Resolution partiu [sprung] um mastro, e Cook cometeu a falta ritual de regressar inexplicável e ininteligivelmente. O Grande Navegador estava agora hors catégorie, uma condição perigosa como Leach e Douglas nos ensinaram, e dentro de alguns dias ele estava realmente morto – ainda que alguns sacerdotes de Lono tivéssem perguntado depois se ele regressaria.[10]
Em termos muito gerais, e parafraseando Sahlins, um evento histórico é metáfora de uma realidade mítica, ou, de outro modo, o domínio da contingência é histórico porque é significativo.[11] Ou ainda: “O evento é um acontecimento [happening] interpretado”.[12]
Obeyesekere não é, nas suas próprias palavras, avesso à teorização de Sahlins. O que lhe provocou a sua ira foi o exemplo usado por Sahlins.[13] Assim, quando Sahlins avançou com a proposta de que Cook foi tomado pelo deus Lono num seminário em Universidade de Princeton em 1983, Obeyesekere não conseguiu evocar um único exemplo da sua infância no Sri Lanka em que um estrangeiro tenha sido alguma vez tomado aí como um deus, apesar de uma longa história de contacto entre locais e europeus. Para Obeyesekere estaremos perante uma projecção ocidental, um “modelo mítico”, isto é um mito paradigmático que serve como modelo para a construção de outros tipos de mitos, reportando-se a todo um conjunto de ideias subjacentes (uma estrutura mítica ou um conjunto de mitemas, a usar expressões lévi-straussianas a que Obeyesekere apela) que são usadas em várias formas de narrativa.[14]
Não vou alongar-me no que diz respeito a este aspecto. Cumpre-me apenas acrescentar que Obeyesekere refere-se também na sua argumentação ao carácter “esquivo” destes modelos míticos, chamando-nos à atenção que se Todorov nos diz que se na civilização ocidental o logos se impôs ao mito, para ele, Obeyesekere, “o mito continua a reinar aí sob o estandarte do logos”.[15]
Racionalidade, racionalidades
Um dos eixos da argumentação de Obeyesekere – aquele que nos interessa destacar – prende-se com a suposta “endémica falta de descriminação em nativos cosmologicamente constrangidos na etnografia da Polinésia”[16], fazendo isto apelo a um modelo mítico que consiste basicamente na ideia de que a estruturação simbólica do pensamento nativo é exclusiva e total. Ela exclui formas de pensamento que tendemos a conotar com modos mais racionais de constituição do real. Ela é compreensiva e não admite excepções ao seu quadro de estruturação simbólica (subjacente a isto há, evidentemente, uma concepção holista de cultura que consiste no adágio “diferentes culturas, diferentes racionalidades”[17]). A ideia de que os nativos pensam pré-lógica e misticamente não seria certamente uma invenção de Lévy-Bruhl, mas antes um modelo mítico ocidental actuante ainda hoje e a produzir os seus efeitos no pensamento de antropólogos como Sahlins.[18] O que Obeyesekere, dotado de um conceito menos exclusivista e totalizador ou compreensivo de cultura exige é que se considere a possibilidade das culturas não serem afinal “terminais”, a usar uma expressão de Gellner.[19] O reconhecimento disto faz, segundo ele, cair por terra a identificação entre Cook e Lono partilhada pelos havaianos durante a chegada do navegador inglês.
Obeyesekere defende que se considere o não isomorfismo entre linguagem e cultura, no sentido em que a cultura (tal como pretendem Lévi-Strauss ou Todorov) não funciona como um sistema de signos que estrutura a expriência.[20] Assumi-lo será afinal, e logicamente, afirmar a perpetuação do antigo modelo mítico da mentalidade selvagem à la Lévy-Bruhl. É afirmar tão-só, e até onde consigo perceber, a sobredeterminação dos signos, e propor uma sujeição do evento e da experiência às ordens da estruturação via langue. Seguindo pensadores como Bakhtin, Obeyesekere propõe-nos a proeminência da parole sobre a langue, recusando assim a “inflexibilidade do pensamento cosmológico”.[21] Como ele escreve:
A improvisação não pode ser alheia ao pensamento cosmológico: ele poderá ser intrínseco à sua invenção, prática e performance. Assim que se assumimos que as crenças culturais são múltiplas e em realidade não organizadas num único sistemas de signos, logo poderemos libertar-nos da visão de que “tudo se passa como se […] os signos automática e necessariamente procedessem do mundo que designam” e que deste modo não possuíssem flexibilidade manipulativa.[22]
O que está aqui em jogo é o seu conceito de “racionalidade prática” que Sahlins irá refutar mais tarde: seguindo Max Weber, Obeyesekere propõe-nos através deste termo a noção de que estamos perante “o processo pelo qual os seres humanos reflexivamente acedem às implicações de um problema em termos de critérios práticos”[23], em suma, o modo como se produzem “juízos situacionais”.[24] O acento é colocado na ideia de uma abertura, de um processo. A racionalidade prática a que se refere não é substantiva, antes processual: “um modo de pensar, e não um modo de pensamento”.[25]
[1] Robert Borofsky, 1997, “Cook, Lono, Obeyesekere, and Sahlins”, in Current Anthropology, 38, 2, pp. 255-82.
[2] A expressão de Borofsky é “a tempest in a teapot of exotic details” (p. 255).
[3] Obeyesekere, Gananath, 1997 (1992), The Apotheosis of Captain Cook: European Mythmaking in the Pacific, Princeton, Princeton University Press (2ª edição).
[4] Idem, p. 3.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, p. 7.
[7] Hacking, Ian, 1999, “The End of Captain Cook”, in The Social Construction of What?, Cambridge (Mass.) & Londres, Harvard University Press, pp. 214-5.
[8] “[T]ese existential predicaments”, a usar a sua expressão (idem, p. 8).
[9] Para isto, ver, sobretudo, Sahlins, Marshall, 1981, Historical Metaphors and Mythical Realities: Structure in the Early History of the Sandwich Islands Kingdom, Ann Arbor, University of Michigan Press, e Sahlins, Marshall, 1985, Islands of History, Chicago, University of Chicago Press.
[10] Sahlins, Islands of History, p. 94.
[11] Idem, p. 108.
[12] Idem, p. 153.
[13] Obeyesekere, The Apotheosis, p. 8.
[14] Idem, p. 10.
[15] Idem, p. 11.
[16] Obeyesekere, The Apotheosis, p. 21.
[17] Obeyesekere, Gananath, 1997, “On De-Sahlinization”, in The Apotheosis, p. 209, p. 209.
[18] Obeyesekere, Gananath, The Apotheosis, p. 15.
[19] Gellner, Ernest, 1998, Language and solitude: Wittgenstein, Malinowski and the Habsburg dilemma, Cambridge, Cambridge U.P., p. 187.
[20] Obeyesekere, The Apotheosis, p. 19.
[21] Idem, p. 19.
[22] Idem, ibidem.
[23] Idem, ibidem.
[24] Idem, ibidem.
[25] Idem, p. 21.
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