19 fevereiro 2006

Os últimos moicanos























- Isto está mesmo às moscas…
- Mal temos onde sentar-nos.
- Há ali aqueles caixotes... Antes que os venham buscar, sempre darão para alijarmos o peso do homo erectus.
- Perífrase perigosa, Silvestre…
- Ambígua, sim, tem razão, sobretudo para tipos na meia-idade. Mas enfim, cá estamos. Tome assento, Mourão e faça de conta que está em sua casa.
- Bom, isto sempre foi uma casa de faz de conta, pelo que a diferença não é assim tanta.
- O eco que isto faz! Impressiona, ver as paredes nuas. O meu amigo também é dos que sentem, como os barrocos, a aflição do desnudamento? A decoração como terapia para o horror ao vazio?
- Nem por isso. Sinto-me mais em casa, assim.
- Mais em casa… Percebo. Bebendo um chá com Dona Morte, suponho.
- De bergamotas. Lendo e discutindo a ode do Campos, «Vem Noite antiquíssima e idêntica», etc., nem deve ser desagradável.
- Ocorreu-me agora… [Levanta-se, febril, e pesquisa o caixote onde esta sentado] Ah, ah! Bem me parecia! [Circunvaga o olhar, ansioso, pela sala ainda com caixotes e ferramentas pelo chão. Encontra o que procurava e corre a buscar um formão, em cima de um caixote] Ora aqui está! Deixe-me cá abrir isto. [Ao cabo de alguns esforços, abre a tampa do caixote. Mete a mão lá dentro e tira, primeiro palha, depois uma garrafa] Bem me parecia! Veja bem, amigo Mourão: Barca Velha com 16 anos. Uma caixa dele e de outras preciosidades. Como diria o capitão Haddock, temos aqui combustível para muita conversa.
- Vejo que sim. Vocês tratavam-se bem, caramba. Devia ter-me mudado para cá mais cedo.
- No seu caixote, se não erro, tendo em conta a indicação externa, devem estar os copos. Deixe-me cá abri-lo. [Repete a operação com o formão e tira de lá os copos] Bebamos, então. À nossa.
- À nossa. E à do clube Casmurro!
- Isso é que não sei… Pergunto-me se não devíamos mudar o nome disto para Clube Misantropo. Só duas pessoas, percebe? E sentados em caixotes de mudanças.
- Mas a beber Barca Velha, amigo Silvestre. Não esqueça. Por outro lado, se me permite, na medida em que eles é que fugiram não sei para onde, não são eles os misantropos? É que o novo clube nem permite a arte da conversação, ao que sei. Só monólogos…
- É, parecem os debates da campanha presidencial… Em mais pretensioso e a dar para o pseudo-intelectual.
- Exacto. E por outro lado, na medida em que permanecemos no clube, ainda que despido e quase solitário, não somos nós os verdadeiros e últimos casmurros?
- Os últimos moicanos, amigo Mourão! Tem toda a razão! Os moicanos da casmurrice! Já me sinto possuído do frémito da agonia sublime das espécies em extinção: gestos nobres à beira do abismo, suicídio e redenção. Passe-me aí a garrafa, se não se importa.
- Por quem é. Mas deixe-me só encher antes o copo, que isto é cá uma pomada! [Passa a garrafa e saboreia mais um gole] Travo a canela, bouquet de flores silvestres com…
- Acalme-se, Mourão. [Bebe mais um gole] Bem vistas as coisas, tem toda a razão: somos mesmo os últimos abencerragens do Casmurro.
- A coisa boa é que, a partir de agora, o clube só pode crescer!
- Encontro-o estranhamente optimista. E tomado do proselitismo das espécies em vias de extinção: «Hoje somos poucos, amanhã seremos milhões!» Estou mesmo a ver os dinossauros a dizerem isso no dia seguinte à queda do meteorito… Ora, como podemos nós crescer se nem temos assentos condignos, nem mordomo (aquele homem agora não sai do Minho), nem cheta? Sim, que o cofre está vazio! Aqueles tipos deixaram-nos na falência.
- Mas o cofre alguma vez teve dinheiro? Não me parece que o empreendimento fosse rentável, amigo Silvestre. Só conversa, só conversa, nada de ir directos ao assunto. Ná, não estou a ver que isto pudesse render. E depois, sabe? Antes assim.
- Quem não tem dinheiro não tem vícios? [Serve mais um Barca Velha ao interlocutor, antes de se servir a si]
- Obrigado [Bebe um gole]. Melhor (ou pior). Quem não tem dinheiro nem cadeiras para repousar o corpo – e só tem bebidas espirituosas… - dedica-se à vida do espírito. Parece-me uma boa transacção.
- Sim, em todo o caso melhor do que aquela do Match Point, do Woody Allen, lembra-se? A personagem principal diz que o pai encontrou Deus quando perdeu as duas pernas num acidente, e o futuro cunhado comenta que não lhe parece que tenha sido uma boa transacção. É estranho mas as pessoas não se riem nessa altura... Há poucos casmurros, é o que é. A vida pesa, as pessoas só se riem por desfastio ou quando são apanhadas desprevenidas. Por princípio, preferem não brincar com coisas sérias. E apascentar o ser é coisa bem séria.
- Este tinto, amigo Silvestre, é a casa do ser! E nós somos os autodesignados guardas desta habitação. Desta clareira…
- Ora, isso é que é falar! Mas um humanismo sem amigos é uma contradição nos termos, não é? Só nós dois aqui, os outros auto-exilados algures…
- Não me parece, se percebermos que falamos de um humanismo casmurro: de poucos, para poucos, todos situados no espaço apátrida do pensamento do ser. Da difícil e árdua escuta do ser. A apatridade torna-se assim um destino do mundo.
- Estou a ver, estou a ver, e até me parece bonito! Uma pastoral digital, em que a comunidade se imagina e reconstitui por meio de um conjunto de ciberferramentas. Todos longe, todos perto. Ou da impossibilidade humanista (pós-humanista?) do exílio.
- Nem mais. Como vê, há um futuro para nós. O fundamental é não dramatizar. Afinal de contas, duas pessoas pode parecer pouco, na óptica, sei lá!, do futebol, mas é um princípio de comunidade. Ou irmandade.
- A Irmandade do Anel?
- É mais do tonel, no nosso caso, não é?
- Sabe do que me lembrei agora, Mourão? A propósito de casas do ser, clareiras, irmandades, etc.?
- Diga…
- E se fôssemos ver o Bambi II? Acaba de estrear e, pelas minhas memórias do original como pelas recensões na imprensa, parece-me a melhor propedêutica a tudo isto que temos estado para aqui a tentear: humanismo, espécies em extinção (os veados, os humanistas…), casas do ser. Há agora uma sessão. Se nos despacharmos, ainda chegamos a tempo. Que me diz?
- É pra já, Silvestre! Excelente ideia! Deixe-me só ir buscar o guarda-chuva.
- OK, mas despache-se, que não temos muito tempo.
- Já vou, já vou…