24 fevereiro 2006

Os últimos moicanos (II)















- Mouchão, é?
- Pois, foi o que saiu agora do caixote… Mouchão 1988.
- Não fica atrás do outro, amigo Silvestre. [Deita um pouco no copo e leva-o à boca. Meditativo:] Chocolate, fruta exuberante em passa, toque de fumo, resinas aromáticas balsâmicas. Na boca [bochecha e saboreia] é tipo colosso, cheio e muito vigoroso, taninos redondos…
- …Ó Mourão, que se passa consigo?! Está sob influência?
- Atão não estou, Silvestre? Isto é um verdadeiro alucinogéneo!
- E se discorrêssemos antes sobre o Bambi II?
- O vinho também é Natureza, Silvestre!
- Sobre isso, tenho as minhas dúvidas. Viu o Mondovino? Qual terroir, qual quê! Como diz aquele viticultor francês entradote, já não há vinho, só há enólogos! Com tecnologia adequada, qualquer videira e qualquer terreno sombrio acabam por dar vinho bebível, da Patagónia ao Japão. Sobretudo porque eles agora são todos iguais.
- Lá isso, tenho as minhas dúvidas. Já bebeu o verde tinto do Minho? À malga, no S. João? Ou a acompanhar a lampreia? A globalização nunca o há-de vergar, como não há-de vergar o nosso Mouchão, e outros que tais. Mas, quanto ao Bambi II: uma versão cansadota da «educação do príncipe», não?
- É. Mas olhe, vê-se
- Eh pá, já reparou como essa expressão, hoje tão usual, é fabulosa, Silvestre? E sem equivalente real noutras artes, que é como quem diz, noutros média. Não tenho ideia que se diga «Lê-se» ou «Ouve-se». Mas diz-se muito «Vê-se…» com o sentido de…
- Lembra-me um aluno que me dizia, quando lhe perguntava como ia indo: «Trabalha-se…». Só que, após alguma conversa inquiridora, chegava-se à conclusão de que a expressão significava exactamente o oposto do seu valor facial. Qualquer coisa como «Faço tudo o que posso para não trabalhar ou para trabalhar o mínimo». Ou seja, esgadanhava-se para não trabalhar. Toda uma filosofia do ócio – melhor: da luta pelo ócio - em apenas uma (muito enganadora) forma verbal. A linguagem é de facto uma forma inadequada de nomeação…
- É boa… Mas já agora, qual é o exacto sentido desse «Vê-se»? Não me quer ajudar?
- Olhe, significa que, neste caso, o Bambi II é um filme honesto, como se diz em inglês.
- Eu a pedir-lhe um sinónimo e o meu amigo a dar-me uma tradução… E isso quer dizer exactamente o quê?
- Que é um filme que não ofende
- Acho que não saímos da tradução.
- Olhe, é como a Disney, hoje em dia: vê-se, é honesta, não ofende. Decerto porque, mais uma vez, o meio é a mensagem e os «desenhos animados» são hoje um meio tecnologicamente obsoleto e expressivamente exausto. Mas o futuro da animação está ailleurs: na Pixar, por exemplo. E eles bem o sabem e por isso a compraram.
- Os dos Monstros & Co?
- Exacto. E, antes disso, do Toy Story, I e II. E outros clássicos do cinema contemporâneo.
- Do cinema de animação contemporâneo, quer o meu amigo dizer?
- Não, não foi lapso: há vários filmes de animação que, estou capaz de garantir, são obras maiores do cinema de hoje. Configurações imaginativas poderosas, e poderosamente novas, curiosamente subordinadas à lógica da alegoria, talvez o tropo maior do cinema de animação contemporâneo, se não desde sempre. O que não surpreende, pois a Disney é uma instituição pedagógica e a alegoria sempre foi um tropo disponível para funções educativas. Por exemplo, para aprender o que é o capitalismo de hoje, com corporações empresariais a funcionar em rede e as estratégias para sufocar a concorrência, nada melhor do que Monstros & Co ou Robôs, dois filmes mais intensamente políticos do que os de George Clooney. Mas olhe que Monstros & Co tem momentos intensamente borgeanos (o «mergulho» no arquivo das portas é uma fabulosa visita à Biblioteca de Babel) e Robôs propõe uma releitura da luta de classes que oculta uma agenda tão pouco oculta quanto perturbadora: a de uma biopolítica em que o humano é apenas um resíduo, ou vestígio, low tech. A vitória do «princípio da sucata», no final do filme, é apaziguadora e permite o melodrama, mas não deixa de insinuar, um tanto contra as boas intenções do filme, que o humanismo é o encantamento pela ferrugem. Pela sucata do humano…
- OK, o Bambi II é também coisa política: ensino da «distinção» aristocrática, transmissão traumática do poder (é preciso expor-se ao perigo, e ao perigo de morte, para deveras vir a ser príncipe), etc. Mas a minha costela de prof. é mais sensível ao lado pedagógico de tudo isso, sabe? Uma pedagogia ainda rousseauniana, reparou? O príncipe cresce ao seu ritmo natural de veado, que aliás conflitua com o ritmo de crescimento exigido ao príncipe, enquanto princípio e fundação do Estado. O crescimento do príncipe enquanto príncipe deveria ir mais depressa que o seu crescimento enquanto veado. Estão em pauta os dois corpos do príncipe, digamos. Por isso ele é posto em causa pelo outro jovem veado, que já dispõe de umas armações embrionárias, ao contrário do príncipe, que chega, por isso, a ser desconsiderado como «menina». Esse veado concorrencial é provavelmente o ponto crítico da teoria da educação do príncipe no Bambi II. Ele acelera a educação do príncipe, ainda que contra a voz profunda da Natureza, que por intermédio de uma série de provas e provações lhe vai fazendo ver que ainda está muito… verde. Vide a cena em que fica aterrorizado com o primeiro ataque dos cães e é salvo pelo pai in extremis, ou a do porco-espinho que habita o tronco que faz de ponte sobre o riacho e não só o não deixa passar como o castiga dolorosamente.
- Mas acha que o ritmo rousseauniano triunfa? Lembro-lhe que o príncipe se afirma como tal, no clímax final contra os cães, sem dispor ainda de armações. Ou seja, o corpo do príncipe triunfa aí, por precocidade e, logo, antecipação, sobre o corpo do veado.
- É verdade. Mas olhe que o crescimento, ainda que em ritmo natural, não se faz sem saltos, mais ou menos dolorosos. Assim como aquelas horas nocturnas em que as crianças acordam a chorar porque o corpo lhes está a crescer mais uns milímetros: sendo processo natural, não deixa de ser uma descontinuidade que dói. Assim, após várias provas de iniciação o príncipe está preparado, ainda que o não saiba, para a prova viril. E, como se lembra, logo após triunfar sobre os cães, na cena de harmonia final, já dispõe de umas embrionárias armações: a prova que o fez nascer como príncipe, fê-lo também, logo a seguir, mas em momentos não coincidentes, nascer como macho. Repare que, e esse é o momento da correcção política enquanto pedagogia conatural à Disney, o veado concorrente, que parece atingir a virilidade mais cedo, acobarda-se na hora H, demonstrando que a virilidade proclamada aos sete ventos é só isso mesmo: uma proclamação inconsequente. O próprio do príncipe, também e sobretudo nesta questão de identidade sexual, é o decoro com que se não proclama o que profundamente se é.
- Falta-nos falar da cena familiar e do papel do pai enquanto educador. Um dos aspectos menos convincentes do filme, pareceu-me. O pai é alguém que hesita, tenta transferir o seu papel para outrem (uma corça mãe adoptiva), recupera-o contrafeito…
- Pois a mim parece-me um movimento narrativo assaz coerente. Muito mimético de uma certa configuração paterna, quer por ausência de mãe quer por uma posição indecisa, transicional, na narrativa moderna (em rigor, pós-moderna) da reconfiguração do papel afectivo-educativo do pai. Desconfio que há muitos pais, a partir dos 40, que se revêem na personagem, por isso mesmo que referiu. Mas com tanta conversa estou ressequido, amigo Silvestre…
- Ok, já percebi. Chegue aí o copo.
- Obrigado. [Bebe mais um gole, saboreando lentamente] Já pensou no desastre que seria instalar uma central nuclear ao pé de terrenos aptos a produzir coisas como esta? Os riscos que daí adviriam para a nossa identidade nacional no futuro?
- Nem me fale, Mourão! Nuclear não, obrigado!
- Nuclear não, Mouchão sim!
- Nem mais! Como diria o pai do Bambi, se lho déssemos a provar, Nuclear não, Mouchão sim! Nuclear não, Mouchão sim!
[Levantam-se, andam à volta da sala e depois saem, com os copos na mão, entoando cada vez mais convictamente a palavra de ordem]