Insensata liberdade
1. Começo por um «apólogo» liberal, que vou buscar a um «clássico»: Assalto à 13ª Esquadra, de John Carpenter. Um homem a quem membros de um gang acabaram de assassinar a filha, desvairado, persegue o assassino e mata-o a tiro. Perseguido pelos restantes membros do gang, refugia-se numa esquadra de polícia. Em choque, não consegue sequer falar. Mal ele entra, a esquadra, quase sem efectivos, é atacada pelo gang. Em pânico, uma das funcionárias (será uma das primeiras a morrer) faz notar que o ataque começou após a entrada do fugitivo na esquadra. Logo, se o entregarem ao gang conseguirão talvez salvar a vida. O tenente, apesar da situação desesperada, recusa-se a fazê-lo. Quer ele quer o fugitivo, com a ajuda improvável de prisioneiros, todos eles unidos em torno da luta pela sobrevivência, conseguirão salvar-se.
Creio que não fazia mal nenhum a muita gente na Europa, a começar por pálidos liberais portugueses como José Manuel Fernandes, rever neste momento esse clássico de um dos mais impenitentes liberais de Hollywood.
2. Os liberais que hoje dominam a imprensa portuguesa, a começar pelo referido José Manuel Fernandes, reagiriam escandalizados à minha sugestão anterior, já que o «apólogo» em causa integra a família dos exempla com que os liberais apreciam declinar em público o seu amor à causa sacrossanta da liberdade, especialmente em época de terrorismo. O pior é quando essas declarações inflamadas e genéricas têm de se articular com a História, neste caso a história, manifestamente pouco digna, dos cartoons dinamarqueses. Foi o que aconteceu com o editorial do Público de 3/2, assinado por José Manuel Fernandes e intitulado «O limite do bom senso». Gustavo Rubim já aqui disse o que havia a dizer, e fê-lo de um modo que só posso subscrever na íntegra, pois, entre outras coisas, fez-me sentir orgulhoso por integrar este blogue. Como ele disse, o melhor comentário ao texto de José Manuel Fernandes era o que vinha, duas páginas depois, assinado por M. Yiossuf Adamgy, director da revista islâmica portuguesa Al Furqan, intitulado «A liberdade de expressão deve ter limites» (um título que dispensa comentários). Para o Sr. Adamgy o limite é estatuído por aquilo a que chama o «respeito mútuo». Para José Manuel Fernandes, o limite é o do «bom senso» ou da «responsabilidade». Estranho muito que também o seja para Eduardo Pitta, que parece desejar para a religião uma reserva étnica preservada das consequências do Iluminismo. É caso para dizer que o desejo, ainda que respeitável, é tardio: o mal está feito há cerca de 250 anos.
A reacção oficial dos EUA, diga-se, não andou longe das que acabo de recensear: «A liberdade de expressão, que não pomos em causa, deve ser aferida pelo respeito mútuo entre culturas e pelo senso de responsabilidade». Acrescentemos ainda o Sr. Bispo de Viseu. Curiosas sintonias, não? Nem por isso. Tudo muito compreensível, para dizer a verdade. Mas para percebermos porquê, convém discriminar cuidadosamente aquilo que está de facto em debate.
3. Para começar, aquilo que não está, ou não deve estar, em debate. Assim, e em que pese à direita estridente, não está em debate a superioridade civilizacional do Ocidente sobre o Islão. Assim como não está em debate a «moléstia» do relativismo ou os danos da correcção política (era fatal estas armas de arremesso surgirem mais uma vez e, como sempre, da forma mais ignara). Podemos lamentar que o mundo islâmico, ou aquele mundo islâmico que incendeia bandeiras da Dinamarca e da UE e que vocifera nas ruas para efeito de difusão mediática, e que, obviamente, não é todo o mundo islâmico, se indigne mais com uns cartoons ofensivos para Maomé do que, como dizia há dias incisivamente o Guardian, com o genocídio no Sudão; ou, acrescento eu, com a discriminação das mulheres, que por vezes atinge a violência da exclusão social. E podemos sobretudo lamentar que a debilidade estrutural do espaço público no mundo árabe, e mesmo islâmico, permita as instrumentalizações sistemáticas e repetidas da «rua árabe» por tiranos e tiranetes mais preocupados em produzir alibis para os seus falhanços do que em melhorar os níveis de literacia dos seus povos. Mas esse é outro debate, e querer focar o actual conflito nessas questões significa apenas que se quer falar de outras coisas, a pretexto dos cartoons. Exactamente como o mundo islâmico que vemos excitadíssimo na rua está a usar os mesmos cartoons para, mais uma vez, falar de outra coisa: do seu ressentimento e rancor contra o Ocidente e a modernidade que ele emblematiza.
4. Não está também em causa o terrorismo islâmico, a aplacar por um revoltante pedido de desculpas (mais uma vez, tratar-se-ia de oferecer ao gang um «culpado», de modo a satisfazer assim a sua sede de sangue). Com Bin Laden não se negoceia e supor que um pedido de desculpas acalmaria as hostes é uma idiotice que qualquer pessoa minimamente lida em História sabe no que acaba. Os dinamarqueses têm fundadas razões para recearem que a próxima capital europeia a ser atacada seja Copenhaga. Mas os dinamarqueses, que são um dos povos mais livres e decentes da Europa e do planeta (ao contrário dos polacos, governados por um reaccionário enfeudado à Igreja, que acorreu a criticar com virulência os cartoons), sabem bem o que têm a perder, e que é muito mais do que um ataque terrorista, se o medo comandar a sua resposta. Felizmente, os sinais provindos do governo dinamarquês têm sido inequívocos na sua firmeza.
5. Ao contrário do que a reacção timorata dos EUA sugere nas entrelinhas, não está também em causa a invasão desastrosa do Iraque e a necessidade de não inflamar ainda mais a «nação árabe». José Manuel Fernandes, que chorou quando os americanos entraram em Bagdade como só chorara no 25 de Abril, é sem dúvida sensível a este argumento americano. Mas, perdoem-me a pergunta, não é ligeiramente contraditório defender, como um bom neo-conservador americano, a democratização do mundo árabe, mesmo que à força, e recear depois as consequências, para esse mesmo mundo árabe, da democracia, tal como ela é praticada no continente onde nasceu há milénios? Em que é que ficamos? A democracia, com as liberdades que são o seu correlato, é sempre boa ou é apenas boa quando não põe em causa a geopolítica americana, mesmo quando essa geopolítica vise difundir planetariamente a mesma democracia e as mesmas liberdades?
6. O que está em causa, sejamos claros, é apenas e só a liberdade de expressão. Por outras palavras, o que está em causa é a Europa. Esta frase passará, para muita gente, por arrogância etnocêntrica, tanto mais que este «caso europeu» vem tendo desenvolvimentos televisivamente visíveis por todo o mundo árabe. Mas, descontando o facto de eu não estar nada certo de que possamos não ser etnocêntricos, a frase é, desde logo, historicamente justa. Porque a liberdade de expressão é uma conquista, ainda titubeante, da Grande Revolução e, lato sensu, das Luzes, e sobre ela se edificou a sociedade burguesa e, bem-assim, a literatura desde Rousseau - e a literatura foi, nestes últimos dois séculos e meio, o discurso em que se veicularam as liberdades, burguesas ou não. Notemos que, mais uma vez, o que está em causa é a liberdade de expressão artística (e não vale dizer que se trata eventualmente de má arte, pois a má arte é também arte) que para todos os europeus se tornou há séculos o signo maior, e o emblema, da liberdade de expressão tout court – e é neste momento imperioso recordar, contra todos os terroristas, que um cartoon não é um insulto nem uma declaração de guerra mas sim, e apenas, um cartoon (o director do Público, cujo jornal inclui um suplemento humorístico que, ao contrário do que o mesmo director afirmou, frequentemente viola os limites do bom gosto, devia sabê-lo melhor do que ninguém). Sem admitirmos isto, não admitimos a modernidade europeia quer na esfera política quer na estética. Pretender por isso que este caso é diverso dos de Rushdie ou Theo van Gogh, equivale a fazer à intolerância de quem os rejeita a todos e ameaça de morte ou chega mesmo a matar, apenas porque deles discorda, o favor que ela não merece. Mas a minha frase é ainda justa porque, se nos nossos dias o paradigma da liberdade de expressão passou a ser definido pelo liberalismo norte-americano, convém não esquecer que quem hoje elege Bush é o Bible Belt mais o «voto dos valores». Por outras palavras, e não tergiversemos: o fundamentalismo cristão. Esse mesmo fundamentalismo dos pregadores televisivos que salvou George W. Bush da dependência da garrafa e lhe deu a visão do mundo traduzida em «eixo do bem» e «eixo do mal». Não surpreende assim a sintonia profunda entre Bush, o Sr. Bispo de Viseu, José Manuel Fernandes e o Sr. Yiossuf Adamgy, que todos nos lembram como a liberdade de expressão tem de ter limites, sendo o limite mais obviamente reconhecível o da religião. Lembremos que já aquando da fatwa sobre Rushdie tinha sido possível ouvir, e não apenas nas entrelinhas, da boca de dignitários da Igreja de Roma, coisas como «Está errado condenar alguém à morte por um romance, mas com coisas sérias não se brinca…».
O argumento regressa agora, pouco encapotado, ou então encapotado nos temas e lemas, tipicamente burgueses (no mau sentido, pois, no bom sentido, a crítica burguesa, lembremo-lo, foi a mais radical que a Europa já produziu), do «bom senso e bom gosto»: «A liberdade deve ser usada com senso e gosto». Que é como quem diz: por que carga de água temos nós, europeus, de estar a sofrer as consequências de uns cartoons insultuosos de um jornal populista dinamarquês? E, lamentavel e tristemente, nos jornais portugueses, com José Manuel Fernandes à cabeça, não se tem feito outra coisa senão este elogio ressalvado da liberdade de expressão. A resposta àquela pergunta é contudo simples, ainda que de digestão difícil: porque ninguém nos prometeu que a liberdade só arrastaria consigo coisas boas. A liberdade arrasta também programas como Fiel ou Infiel, da TVI, ou o já «clássico» Big Brother, da mesma estação. A liberdade permite a javardice inimputável do nosso dinossauro das ilhas. E etc. Isto dito, a única solução digna das condições de liberdade da nossa sociedade é a que consiste em criar os meios para que todas as opiniões possam ser expressas, todos os livros possam ser editados ou, mais latamente, para que tudo possa ser dito.
Por isso, quando José Manuel Fernandes afirma, sem vergonha, que o Público reproduziu alguns dos cartoons «para que os leitores possam tomar conhecimento do que se está a discutir, mas não entende que tenha qualquer obrigação de repetir a ‘provocação’ por ‘solidariedade’», como leitor do Público só posso sentir vergonha. Porque assim como a questão não é nem de senso nem de gosto, também não é, em rigor, de solidariedade com os cartoons ou o cartoonista. Reproduzir os cartoons é, sim, neste momento um dever: um imperativo moral de solidariedade para com a ideia da liberdade de expressão, a qual é sem condições, ainda que por isso, como percebemos lendo um José Manuel Fernandes, seja eternamente sem condição. Porque a liberdade é só uma, pelo que pretender que podemos descartar-nos higienicamente do que nela é indigno da sua Ideia, é algo que só a empequenece e a nós, enquanto europeus que em grande medida nos definimos, ou devíamos definir, pelo seu culto incondicional.
É nesse sentido que o que está em causa é o destino do espírito europeu, em mais uma das suas cíclicas crises internas (permitam-me que, enquanto europeu que me orgulho de o ser, enfatize o dissídio interno sobre a reacção externa que, como antes disse, não é o essencial deste debate), tanto mais que a América de Bush, neste caso como noutros, não consegue resolver a contradição entre a pulsão neoconservadora para a democracia universal (a «paz perpétua» de Kant, agora revisitada pela guerra high tech) e o fundamentalismo religioso que se sente relegitimado pela guerra antiterrorista. Dizer que o que está em causa é, ainda e sempre, a herança do Iluminismo, é dizer o óbvio. Mas talvez seja bom repisar o óbvio quando, a pretexto da religião, se admite que a liberdade de expressão deve ser limitada – coisa que, em boa verdade, integra o senso comum da tradição política portuguesa, raramente liberal, como sabemos. Ou, o que é ainda pior, quando se admite que a liberdade de expressão deve ser autolimitada pelo bom senso e pelo bom gosto, esses filhos dilectos do espírito censório, já que representam a decisiva interiorização do imperativo dos «limites». Percebemos agora, o que não deixa de ser reconfortante, que há muita gente que gostaria de ter calado, se não mesmo queimado, os Monty Python. Mas percebemos também que, apesar da má imprensa de que vem sendo objecto nos últimos tempos, a luta pela secularização continua a ser indissociável da luta pela liberdade. E, neste ponto, só posso concordar com Vasco Pulido Valente.
7. Quando Theo van Gogh foi assassinado por ter feito um filme em que denunciava a condição da mulher nas sociedades islâmicas, não se ouviu o brado do bom senso e bom gosto. Estavam em causa «costumes» e, logo, «cultura», pelo que a condenação do crime pôde ser feita dentro da defesa intransigente da liberdade de expressão, associada ou não (dependendo dos intervenientes) a mais um episódio da guerra cultural entre o Ocidente e o Islão. Agora, curiosamente, a questão religiosa faz com que antes da liberdade de expressão tenhamos de ouvir a litania do bom senso e do bom gosto. Basta esta constatação para percebermos a que ponto aquilo que temos são sempre versões pálidas, e de facto tão pouco livres, da liberdade de expressão.
É talvez altura de sugerir leituras aos liberais portugueses, a começar por José Manuel Fernandes. Eu sei que é sempre pretensioso sugerir autores franceses, pois a França, como toda a gente sabe, é chão que deu uvas. Mas se, em vez dos conselheiros de Bush e das frioleiras da senhora Himmelfarb, se lesse o último e vasto painel da obra de Jacques Derrida, talvez a natureza e o nível do debate sobre esta questão subisse entre nós (e aliás, boa parte desse Derrida político, e iluminista em mais de um sentido, está entre nós disponível, graças ao labor de Fernanda Bernardo). Porque Derrida foi, no nosso tempo, o mais exigente e radical pensador da liberdade e da hospitalidade, mas sobretudo, da democracia, essa democracia por vir definível como o regime no qual se pode dizer tudo. Porque, ainda que isso custe muito a engolir (e a todos nos custa, uma vez por outra; como a muitos espanhóis custará não poderem criticar sem limites a monarquia), não há democracia sem essa possibilidade de dizer tudo, possibilidade a todo o momento limitada pelas manifestações infindáveis do medo da liberdade (ou, o que dá no mesmo, dos mesquinhos cálculos em torno dela). Para resumir, e muito ao contrário de José Manuel Fernandes, do Sr. M. Yiossuf Adamgy, do Sr. Bispo de Viseu, etc., não há liberdade sem insensatez.
Que Galileu se tenha deixado convencer do contrário, para salvar o pescoço, eis o que só nos ensina, uma vez mais, que é sempre um erro confiar a defesa da liberdade a padres. Ficamos agora a saber que também não é grande ideia confiá-la a certos liberais, ainda quando dados à lágrima fácil. Ou sobretudo por isso. Por mim, que respeito e admiro o ideal liberal norte-americano, prefiro pensá-lo sempre a partir de obras como as de John Carpenter. Por causa da sua intransigência. E, já agora, da sua insensatez.
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