«Dicionário de Soundbytes», por Groucho
Literatura: 1. Vem com os medicamentos e é muito conveniente lê-la. 2. Vem com a escola e é uma seca, à excepção de Alice Vieira. 3. Um conjunto de livros chatos, que servem para estudar gramática, os tipos de narrador e figuras de estilo. 4. Os gregos e os romanos chamavam-lhe antes «Poesia», o que significa que naqueles tempos já muito idos Inês Pedrosa, Fernando Dacosta, Maria Filomena Mónica e mesmo José Tolentino Mendonça seriam chamados «poetas». 5. Dá prémios, e há tantos que quase não há escritor que não ganhe um, uma vez por outra (nem que se trate do prémio literário da União de Escritores do Bombarral). 6. «Até Saramago e Lobo Antunes já ganharam vários prémios! E não só cá como também no estrangeiro, imagine-se!» 7. Há literatura política (Os Lusíadas, por exemplo; ou Viagens na minha terra; ou Gaibéus) e há política literária, mais ou menos feroz (Pedro e Paula, Sei lá!, Fazes-me falta). Agustina Bessa-Luís nada tem a dizer a qualquer desses domínios e consegue, ainda assim, ser grande. 8. Antigamente (no tempo de Mário Soares e Manuel Alegre) a política tinha sempre uma componente literária e os políticos gostavam de mostrar intimidade com a literatura – ou, ao menos, com a biblioteca. 9. Agora, no tempo de Cavaco e Louçã, já ninguém é penalizado por não saber o número de cantos dos Lusíadas ou por não conseguir produzir uma única referência aos clássicos nos seus discursos e intervenções públicas (o «Velho do Restelo» não conta, até porque todos os políticos o interpretam do mesmo modo errado). 10. Por outro lado, os jornalistas continuam a dizer que o jornalismo não é literatura (é uma coisa muito outra) e a publicar romances, queixando-se, depois, que a instituição literária os despreza por serem jornalistas. Razão pela qual os jornais, bem compreensivelmente, tendem a dar o justo destaque compensatório aos romances escritos por jornalistas. 11. Na escola, aliás, os textos de jornalistas de referência – José António Saraiva, Luís Delgado, Baptista Bastos, etc. – são já dados a par de Diogo do Couto, o Padre Vieira ou Oliveira Martins, o que mostra que nem todas as instituições são tão conservadoras como a literária. 12. Implica e congrega muita gente, de escritores a editores, livreiros, professores, estudantes, jornalistas culturais, críticos e membros de júris. Mas o fundamental é que se venda, pois sem isso nada feito. E para isso é preciso capas giras, marketing agressivo, temas estimulantes e que dêem gozo, cobertura da imprensa e críticos que resumam as histórias e não se armem em pseudo-intelectuais. 13. Um/a leitor/a comum: «Tem coisas chatas (sobretudo a poesia e Os Lusíadas), mas há algumas que dão gozo, em especial O Código DaVinci e os romances da Lídia Jorge». 14. Um/a leitor/a apaixonado/a: «A limpidez ática dos versos da Sophia!... A tragicidade existencial do Vergílio Ferreira!... Os livros de poesia da Assírio!... A manhã, ou a tarde de sábado, numa esplanada, lendo o Mil Folhas ou o Actual!... A incapacidade de nos desligarmos de um livro e mergulharmos, noite dentro, com ele (aconteceu-me com o último da Mafalda Ivo Cruz)… Não, nenhuma outra arte produz efeitos tão intensos e avassaladores». 15. João Gaspar Simões (ou Joaquim Manuel Magalhães): «A universidade, e sobretudo a mania de teorizar, é que deu cabo da literatura e afastou os jovens dela. Até se lembraram de criar uma disciplina chamada Teoria da Literatura, que serve para evitar qualquer contacto com os textos – e para produzir utensílios com que, em seguida, eles são submetidos a uma espécie de Teatro Anatómico. Quando a literatura ou é uma comunicação espontânea e sincera entre almas, ou não é nada. Depois, admirem-se do resultado…». 16. Um/a professor/a universitário/a: «A literatura existe e é produzida para ser estudada e desconstruída em sala de aula. Os tropos, a mimese, a ideologia, a errância do signo, a construção discursiva do género, as materialidades da comunicação e o não-hermenêutico, a constituição diaspórica do sujeito e da cultura, a retoricidade da história qua narrativa… E, claro, nada de meter o escritor ao barulho, mais a crença ingénua nas falácias da intenção, tão divulgada pelo senso comum. O livro será do autor e do mercado, admitamos. Mas o texto é nosso, enquanto leitores que lhe damos forma e significação. E, quanto ao famoso prazer do texto, permitam-me uma citação clássica com intuitos saudavelmente morigeradores: Ad augusta per angusta! [Tradução: ‘Há que sofrer antes de gozar!’]». 17. Um/a director/a de departamento de Humanidades: «Para haver alunos que se inscrevam nos cursos de Literaturas, é fundamental que a palavra não apareça na designação dos ditos, pois só ela afugenta logo todo o pessoal. Convém ocultá-la, profilacticamente; e meter antes Cultura; ou Comunicação (sobretudo esta). Depois de os termos cá, já não podem fugir à inculcação da dita. É como o óleo de fígado de bacalhau de antigamente: é tudo para o bem deles - e da literatura». 18. Um/a professor/a do Secundário: «Ainda há pouco me livrei dos Lusíadas e já tenho de levar com as Viagens em cima… E quem é que consegue motivá-los para uma viagem de Lisboa a Santarém (a Santarém, com franqueza!) que ocupa 300 páginas?! Ainda se fosse até ao Porto, ou Badajoz… Bom… Motivação: um episódio do Star Trek, a excitação de descobrir novas galáxias (no caminho até Santarém…), enfim, ir para fora cá dentro. Objectivos: perceber como era difícil viajar no país antes dos fundos da UE terem permitido ao Cavaco fazer todas aquelas estradas, nomeadamente a A1 (e que se dane a Serra dos Candeeiros). E, claro, apreciar a grandeza da literatura e a forma como ela inventa a nação (será que dá para citar aquela frase do Homi Bhabha que o prof. de Teoria nos ensinou, ou é muito puxado para miúdos do 10º?)». 19. Um estudante: «As Viagens, dasse… E o gajo ainda só vai em Vila Franca… Sms da Sónia, deixa cá espreitar… Ok. Aqui vai de volta, boazuda: ‘Kerx ir xtudar à noit as viajx a miña kasa? Bora, qx mex kotx vã ó sinema…». 20. Bem vistas as coisas, e como diz Gumbrecht, o que vale é que os políticos, ainda que não tenham intimidade com ela, acreditam mais nas suas altas funções simbólicas do que os professores dela (quanto aos alunos, nem é bom falar).
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