01 fevereiro 2006

«Dicionário de Soundbytes», por Groucho















Kama Sutra: 1. O texto é chato e longo. Salvam-se as imagens. 2. Implica muito ginásio, ginástica e contorcionismo. Às vezes, dá efeito, embora raramente com a intensidade prometida no livro. 3. Outras vezes, provoca cãibras ou mesmo contusões.

Kitsch: 1. Antigamente dizia-se «piroso» e ninguém estava interessado em ser assim qualificado. Hoje diz-se Kitsch e todos querem sê-lo (ou tê-lo profusamente em casa). 2. Quando tenha a ver com a cultura gay, diz-se antes Camp (v.). A sua cotação é aliás bem superior à do Kitsch, sobretudo no meio intelectual. Por toda a sua fenomenologia lusitana, referir António Variações (v.) ou, se se preferir remontar historicamente, António Calvário (qualquer deles, oscilando entre o Camp e o Queer (v.) – para dilucidar a questão, cf. Eduardo Pitta). 3. É uma versão dessublimada, túrgida e catártica do belo, mas, com franqueza, quem é que prefere Moisés e Aarão, de Schönberg, à Música no Coração? Ou, para nos mantermos em território erudito, a Tchaikowsky? 4. «Se o Bambi o é, então o que dizer do discurso ecologista contemporâneo? ‘Paz verde’? Com franqueza…» 5. O Padre Américo era-o, e de que maneira, quando dizia aquilo de não haver rapazes maus. Ou de como os malefícios do assistencialismo e do multiculturalismo foram anunciados ao mundo, com décadas de antecedência, por um santo padre português. 6. A Igreja Católica é-o quase inevitavelmente, até pelo destaque concedido à figuração de Deus e da sua vasta teoria de santas e santos. Desse ponto de vista, as aparições de Fátima, e bem-assim a indústria local em torno do fenómeno, pouco trazem de novo. 7. O filme de Mel Gibson sobre Cristo não o é, mas para isso muito contribuiu o aramaico (e ter Monica Belluci bem tapada, transformando-a numa versão do irrepresentável). 8. O judaísmo, com a sua recusa da representação de Deus, resolveu o problema pela raiz. Contudo, as cabeçadas no Muro das Lamentações... 9. O budismo só o é para quem não apreciar aquela cor de açafrão e o imperativo de estar sempre a dar à manivela no moinho de orações. 10. O islamismo, como se pode ver na versão americana (Bush, Rumsfeld & Hollywood), é demasiado tenebroso para poder sê-lo. Por outro lado, aquele sotaque com que falam inglês nos filmes e no 24, e aqueles barbudos de saias, sobretudo no Irão… 11. Quanto ao hinduísmo, com todos aqueles deuses meio homem-meio animal, cores berrantes e guirlandas de flores, coloca os mesmos problemas ontológico-estéticos da Disney (cf. supra). 12. O etnocentrismo, como se pode ver pelas entradas anteriores, tende a transformar a diferença cultural em Kitsch, o que está profundamente errado (e em que pese a Helena Matos). 13. Os totalitarismos, do fascismo e nazismo ao comunismo, não conseguem deixar de o ser, como a iconografia e a bibliografia abundantemente demonstram. 14. Resta, de todo esse mundo desvanecido, a Festa do Avante, aonde se pode ainda comprar bustos maneirinhos de Lenine e do Paizinho dos Povos. 15. Salazar era-o, no imaginário erótico delambido que o seu convívio com a governanta foi alimentando. 16. Humberto Delgado era-o no penteado. 17. Mário Soares é demasiado redondo e feliz para precisar de versões compensatórias da felicidade – mas também é verdade que aprecia (apreciava?) a poesia de Manuel Alegre e, bem-assim, a literatura neo-realista... 18. Cunhal era-o, quando aparecia com a carteirinha encaixada no sovaco. 19. Cavaco é tão teso e grave que não consegue deixar de o ser, já para não falar das fotos com a mulher ou a família, sobretudo no período da vivenda Mariani (mas tem um belo quadro de Menez, segundo Pacheco Pereira, e isso muda um tanto as coisas). 20. Marcelo Rebelo de Sousa é um funcionalista, de matriz bauhausiana, e por isso anti-Kitsch (a não ser quando enfatiza o lado Beach Boy, mas aí trata-se de ênfase performativista, apenas: nada para ser levado a sério). 21. Paulo Portas usa-o conscientemente, quer nos fatos às riscas, quer no dedo espetado e grave em questões de ética e pátria (superou-se, nas suas aparições religioso-televisivas em Vila Viçosa, aquando do funeral de Estado que inventou para Maggiolo Gouveia). Na política portuguesa representa a sua versão transcendental, em sentido kantiano. 22. Manuel Maria Carrilho é, nesta matéria, um caso perdido, sobretudo com aquele tique de dar ao queixo quando está a argumentar e a fazer de duro. Nem um curso intensivo com uma estrela televisiva o pode salvar. 23. Jorge Coelho é-o sempre em comícios ou, mais genericamente, em campanha. Representa a sua versão estrídula. Por isso é também tão decepcionante em programas televisivos de debate político, quando surge na sua persona cordata e «estadista», apesar da barba rala. 24. Fátima Felgueiras é a sua versão erótico-política. Veio muito melhor do Brasil, das madeixas ao aspecto facial e à indumentária mais sexy. 25. Valentim Loureiro representa a sua versão histérico-pilosa e é insuperável em debates, seja sobre futebol ou sobre política, sobretudo quando arregaça freneticamente as calças e se vêem as pernas peludas. 26. O Festival da Canção já o foi, quando era um evento nacional. Agora já não o é (nem uma coisa nem outra). 27. João Villaret era nele imbatível, sobretudo quando dizia a «Procissão» e todo o país, da «situação» e da oposição, se comovia até às lágrimas. 28. Agustina Bessa-Luís não o é – é antes cosy (i.e., caseira, ou tecedeira). 29. Jorge de Sena é-o quase sempre na sintaxe alatinada das suas frases intermináveis, no moralismo irreprimível e ainda na gabarolice pouco discreta em matéria sexual. 30. Alexandre O’Neill caía nele com frequência, apesar de se defender com a aletria da tia e o «perikitsch». Mas também, o surrealismo, e mais ainda o português, está sempre a cair nele, e Portugal, a tal «questão que tenho comigo mesmo», esse não consegue sequer desatolar-se dele. 31. Eugénio de Andrade é-o, sempre que fala de «flancos incendiados» (e fala muito). 32. Joaquim Manuel Magalhães tem o verso mais Kitsch da poesia portuguesa contemporânea: «é lá possível não chorar?» (Alta noite em alta fraga). 33. José Tolentino Mendonça é-o, quando usa a palavra «coração» (e usa-a muito). 34. Eduardo Prado Coelho é-o, sempre que fala em «tropeçar no desejo» (e tropeça muito). 35. Manuel Alegre é-o, sempre que começa a dizer um verso seu (e não precisa que lho peçam). 36. João de Melo é um dos nossos expoentes na matéria, sobretudo em Gente feliz com lágrimas - um clássico instantâneo. É uma pena que esteja há tanto tempo fora do activo. 37. Fernando Seara é-o espontaneamente, sobretudo quando ergue o dedo para, muito grave, «dizer as coisas» futebolísticas. 38. As nossas apresentadoras de TV esgadanham-se para ver quem leva o Óscar. Agora que Manuela Moura Guedes foi posta em recato, Alberta Marques Fernandes arrasa. Rodrigues dos Santos também tem hipóteses, mas mais como romancista. 39. Carlos Pinto Coelho, no Acontece, era uma demonstração diária do seu potencial em contexto mediático-cultural. 40. A página 3 do JL, em que o balanço da quinzena cultural portuguesa só tem destaques positivos (todas as setinhas para cima), e em que os destacados trocam de cadeira uns com os outros, é uma realização insuperável. 41. Fátima Lopes é imbatível, na versão carnal. 42. Manoel de Oliveira é-o involuntariamente, em vários dos seus filmes (sobretudo nos derradeiros). 43. David Fonseca consegue sê-lo, sempre que canta e rima em inglês sobre questões profundas. Ao menos, no caso dos The Gift, ninguém está interessado em saber o que canta ela. 44. Cutileiro tem uma linha de montagem disso, em meninas com maninhas para pôr em cima da lareira. O monumento ao 25 de Abril no Parque Eduardo VII também é um expoente, na vertente fálica. 45. A loiça das Caldas já foi mais, pois hoje tende à categoria da «arte popular genuína». 46. Idem para o galo de Barcelos e para José Cid. 47. Quanto a Alberto João Jardim, é mais foleiro do que Kitsch (a não ser quando faz de zulu). Idem para Quim Barreiros. 48. Elvis e Miles Davis eram-no, por questões de indumentária, mas quem é que não gostava de ter um poster de cada um deles no seu melhor (as lantejoulas do primeiro, os óculos de sol e cores berrantes do segundo)? 49. Os dias celebrativos dedicados à família (Dia da Mãe, Dia do Pai) são um ponto alto no calendário anual, mas nada há que se compare ao Dia dos Namorados. 50. Bem vistas as coisas, e à excepção óbvia do Casmurro, poucas coisas há que lhe escapem.

Kuduro: 1. Género musical tipicamente pós-colonial, na medida em que é o resultado de uma poderosa hibridização de referências angolanas, portuguesas e da dance music, pressupondo uma disseminação diaspórica de percursos no «Atlântico negro» e mais além. 2. Quando bem dançado, faz jus ao nome. 3. Se o dito não for à partida duro, a música em causa permite que o venha a ser, pelas suas exigências de ginasticação.