03 fevereiro 2006

Debater a crítica ou bater nos críticos?















1. O actual debate sobre a crítica na blogosfera, sendo revelador, começou porém mal; e, como tudo o que começa mal, já não se conseguiu endireitar, dando azo àquela «vontade de sangue» de que se alimentam as hordas de roedores anónimos que pululam na blogosfera.
O debate começou mal porque começou por uma denúncia. Não que a denúncia em causa seja de todo irrelevante, mas seguramente que, nos termos em que foi colocada, e como Abel Barros Baptista já esclareceu, está destinada a sê-lo e, pior ainda, a obliterar qualquer possibilidade de debate. Até porque a denúncia é sempre a prima (ou primo) mais fácil da crítica, razão pela qual sempre houve e há muito mais denunciadores do que críticos. A questão está em que o debate sobre a crítica parece já há uns tempos colonizado por questões que o tornam improdutivo – e, nisso, também este debate foi revelador.
Esclareço que também a mim me faz alguma impressão que todos os livros de Manuel de Freitas tenham direito a recensão, com fotografia, no Actual, sendo ele crítico da casa. Mas eu não diria que a denúncia dessa situação, e menos ainda a obsessão com ela, é uma tarefa da crítica, que não se deve confundir com a brigada de desinfestação. Uma tarefa crítica seria, sim, a desmontagem da doxografia que, no domínio da poesia, Manuel de Freitas, Carlos Bessa e mesmo António Guerreiro vêm produzindo, semana após semana, nas páginas do Actual, com a dupla tutela, poética e crítica, de Joaquim Manuel Magalhães, figura também presente, e na verdade omnipresente, nessas páginas. Na sua incidência política, essa desmontagem poderia, por exemplo, jogar o radicalismo dogmático das posições das pessoas envolvidas contra o enquadramento pesadamente institucional, e conservador, do meio de comunicação que lhes permite difundirem essa doxografia supostamente anti-institucional. Assim como não há melhor sítio para se ser marxista ou libertário do que a universidade americana (e não estou com isto a sugerir que quem o seja por lá não tenha de pagar um preço: mas há Arcádias pelas quais vale a pena pagar), nada melhor do que as páginas do Expresso para «brincar» ao milenarismo poético e civilizacional, mesmo que nas roupagens de um neo-realismo.
O poblema (um dos problemas) da crítica enquanto denúncia é que a argumentação fulanizada, aqui como sempre, faz com que a árvore tape a floresta. E a floresta, e por isso este debate é tão revelador, não é «o sistema de compadrios» que tanto excitou, por exemplo, Pacheco Pereira, levando-o a intervir, pressuroso e desastrado. A floresta é outra, e para a entendermos teremos de remontar brevemente àquele que foi o real debate sobre a crítica entre nós nos últimos anos: o lançado pela revista Inimigo Rumor nos seus nº 12 e 13, ambos de 2002, com textos de Marjorie Perloff («Do que não falamos quando falamos de poesia. Algumas aporias do jornalismo literário»), Abel Barros Baptista e Gustavo Rubim, a que se seguiram, na imprensa, réplicas de António Guerreiro, Fernando Pinto Do Amaral, Luís Miguel Queirós, Eduardo Prado Coelho, Pedro Mexia.
O tópico central do debate, recordo, foi a desaparição da crítica de poesia, e do crítico de poesia, das páginas dos jornais, fenómeno que não cessou de se acentuar desde então, já que o texto de José Mário Silva que suscitou a intervenção de João Pedro George é um bom exemplo da inanidade a que chegou hoje, nos jornais, aquilo a que se chama «crítica de poesia». Diga-se que também por isso o debate começou mal, não deixando contudo de ser muito revelador. E começou mal porque nenhuma razão autoriza a que se considere José Mário Silva um crítico literário, o que implica desde logo a cautela profiláctica de reconhecer que o facto de se escrever em jornais sobre literatura não faz de um escrevente um crítico (sobre o caderno mínimo de encargos de um crítico, na imprensa ou na universidade, sugiro que se releia o texto de Abel Barros Baptista, «Crítica e Recalcitração», no n º 13 de Inimigo Rumor). Logo, é ligeiramente desconcertante que um debate sobre a crítica seja motivado por um texto de alguém que nada autoriza a considerar um crítico (mas infelizmente esta deriva faz sentido e sistema com a blogosfera, pois num certo sentido, que não apenas estatístico, ela é uma espécie de hipertrofia discursiva de ontologias erróneas). Por outro lado, o facto não deixa de ser em si revelador do estado a que chegou a crítica jornalística entre nós, e que não difere, nas suas manifestações nas páginas do DN, do que lemos nas do Público, do Expresso, etc., com as excepções, cada vez mais escassas, do costume.

2. É certo que o debate lançado pela Inimigo Rumor, detendo-se nas fronteiras da poesia, era, na aparência, mais restrito do que o actual, apesar de o texto inicial de João Pedro George visar uma ocorrência de «crítica de poesia» (ou melhor: de «crítico» de poesia). Mas, e para entrarmos de vez na floresta, gostava de reproduzir aqui um excerto de uma das intervenções de Gustavo Rubim que, a meu ver, resume o essencial do que está, também agora, em causa. Cito, pois, do texto «A Poesia, por Exemplo (bases de acordo para um debate a haver)», do nº 13 da Inimigo Rumor:

«No meu comentário, a questão vinha, de algum modo, tratada a partir de um outro ângulo, ao mesmo tempo mais dramático e mais oblíquo: o da incompatibilidade entre jornalismo e poesia, considerados do ponto de vista da respectiva relação com a linguagem. No mínimo, isto significa que todo o jornalismo literário que pretenda colocar-se à altura das poéticas contemporâneas está obrigado a introduzir no jornal um discurso não-jornalístico, ou seja, a arriscar, na sua própria escrita, uma crítica da comunicação. Porque se «toda a poesia, em rigor, está sempre por ler, e a cada momento é preciso recomeçar a aprender a lê-la» (A. Barros Baptista), resultado de não sabermos nem podermos saber hoje o que é a poesia, fica claro que a poesia se extraiu a si mesma da esfera onde é traficada a mercadoria que dá pelo nome de «comunicação». (E só por ironia, uma ironia radical e devastadora, a poesia se ajoelha aos «peses» do «deus kom unik assão».)»

Creio que, com as devidas cautelas epistemológicas, podemos alargar as palavras de Rubim à esfera do literário em geral. Ou melhor: ao funcionamento público da literatura na era mediática. Se a poesia produz um notório curto-circuito no discurso do jornalismo e da comunicação (mas nem toda a poesia, já agora: não esqueçamos a poesia visual ou sonora e a felicidade com que por vezes transporta a lógica da comunicação para um território eufórico), é na verdade toda a literatura, enquanto arte da palavra lida em silêncio, que se acomoda mal à lógica dos média, cada vez mais colonizados pela imagem e pela articulação entre imagem e som (vide, na própria blogosfera, o fenómeno em curso dos blogues com «banda sonora»). Como sabemos, qualquer programa de TV sobre literatura se enuncia no fio da navalha de um conflito irresolvido: como «mostrar» o literário sem que isso redunde ou em dramatização de cenas romanescas ou em produção de correlatos objectivos mais ou menos paisagísticos – ou ainda, e essa parece ser a solução simultaneamente feliz e fácil quando o autor está à mão (o que não é o caso de Homero ou Camões), entrevistando e exibindo a pessoa do autor. A solução clássica e «séria», pôr pessoas competentes a falar sobre uma obra, raramente resulta, e quase sempre pelas exactas razões enunciadas por Rubim: porque falar de literatura exige quase sempre um modelo comunicacional dominado pelas figuras da interrupção, da pausa, da morosidade e do ritornello, enfim, do «desperdício», coisas para as quais a economia política do tempo mediático não tem lugar.
A questão da crítica, como se aprende nas Ilusões Perdidas, de Balzac, antes de ser uma questão de conflito de interesses, é uma questão mediática: da posse, natureza, alcance dos média e acesso a eles. O conflito de interesses, como se aprende no mesmo Balzac, resulta como que forçosamente de todo o processo de mediatização da literatura. Por isso, se a poesia vive em contraciclo com o «deus kom unik assão», em rigor é toda a literatura que vive em contraciclo com a era dos média, que lhe impõe, por isso mesmo, uma pronunciada regressão a uma fase pré-crítica: uma fase em que a literatura são fotos e entrevistas de autores e em que o discurso crítico pode ser substituído, com vantagem, por anotações pitorescas e impressionistas de um escrevente que mais não deve ser do que um «leitor-comum» (ainda que, dentro da ontologia e deontologia jornalísticas, não resista a erigir-se em «representante» dos leitores-comuns).

3. É por isso também revelador que esta nova polémica sobre a crítica decorra na blogosfera e não nos jornais. Permitam-me que regresse neste momento a um dos textos de Abel Barros Baptista na Inimigo Rumor nº 12, («Do que (não) falamos quando falamos de crítica de poesia»), para percebermos por que razão hoje a crítica jornalística realiza com tanta dificuldade o seu histórico papel no que à poesia diz respeito:

«Ora o grande motivo de interesse do ensaio [de Perloff] reside no argumento global que nos permite perceber como uma tal ideia não tem qualquer sentido. De facto, se a crítica jornalística de poesia se tornou irreversivelmente obsoleta, tal não se deve a factores contingentes, susceptíveis de remoção por aperfeiçoamento técnico ou cultural, mas ao facto de o processo da poesia moderna necessariamente lhe retirar a própria condição de possibilidade.»

Abel comenta aqui uma passagem em que Perloff lembra que «a poética é hoje um discurso tão especializado como o discurso sobre a arquitectura». Foi esta especialização, interpretada por leitores apressados e ressentidos como «feudalização pela universidade», aquando do debate lançado pela Inimigo Rumor, e que em rigor abarca tanto a poesia como a ficção, juntamente com o preenchimento das páginas culturais dos jornais pela indústria da cultura (é ver o Actual, ou o novo suplemento do DN às sextas-feiras e reparar no lugar residual que a sua economia interna impõe aos livros), que fez com que a crítica literária tenha literalmente perdido o lugar na imprensa de hoje. Se me permitem a nota pessoal, foi por ter percebido isso que há uns anos um grupo alargado de pessoas criou na net o Ciberkiosk, ainda hoje o site de livros (mas não apenas, pois a publicação subintitulava-se «Livros, Artes, Espectáculos, Sociedade») de referência de entre tudo o que se fez nesta matéria na net, entre nós. Se bem que, por atitude pessoal, entenda que nada nem ninguém faz falta, a verdade é que, ante o actual panorama, dou-me muitas vezes a pensar que faz muita falta algo parecido com o Ciberkiosk.
É por isso significativo, insisto, que esta polémica decorra na blogosfera. Porque, muito simplesmente, temos a sensação de que já não poderia decorrer na imprensa: esta já não tem espaço para polémicas literárias. Mas também porque não é a mesma coisa fazer crítica num jornal, num site como o Ciberkiosk ou num blogue. A materialidade da comunicação do blogue só na aparência é tão livre como a de um site. Desde logo, os textos longos (como este…) saem mal nos blogues – e lembremos que nos blogues não se publicam textos, e menos ainda ensaios, mas posts, o que não é o mesmo. Esta é por isso uma polémica da crítica em era e regime de blogue. E daí a facilidade do terrorismo intelectual e, mais lamentável ainda, moral – e daí o facto de só num segundo momento, ao contrário da cronologia tradicional numa polémica literária, se ter passado do ataque pessoal ao debate argumentado, por acção de um post decisivo de Pedro Mexia.

4. Por isso mesmo, devo dizer que consigo compreender a lógica da posição de João Pedro George quando, em «resposta» a Pedro Mexia, reivindica a pertinência e actualidade da crítica, por exemplo neste passo:

«A crítica perdeu hoje muita da importância que tinha? Não concordo. Pelo contrário. Há mais gente com ensino superior que lê jornais, revistas, internet, logo mais exposta e receptiva aos textos de crítica jornalística. Responderás: se é mais instruída a sua capacidade de discernimento é maior logo menos dependente do trabalho do crítico. É uma meia verdade. Porque a maioria não é especializada em letras nem trabalha no meio. Depois, há cada vez mais livros a serem publicados, logo as actividades de selecção e de divulgação mais decisivas se tornam.»

Mas se a compreendo, não posso deixar de sentir que neste excerto o quantitativo funciona como um subterrâneo dispositivo heurístico ao qual se comete a alta função de fazer regressar a «panaceia eterna» das Luzes que a Crítica, uma vez mais, derramaria pelas massas. Porque se há sempre mais livros, há também sempre mais massas não-especializadas; logo, há sempre mais necessidade de juízos de valor, o mesmo é dizer, de críticos. Este é, como sabemos, o quadro clássico quer do Iluminismo quer do intelectual quer, enfim, da vanguarda. O problema é que, na véspera do Juízo Final (que esperemos venha tarde…), a humanidade estará tão necessitada de Luzes (e de críticos) como hoje ou há 500 anos. Como é flagrante, João Pedro George esquece a historicidade da nossa situação actual e de como aqui chegámos, supondo-nos ainda no quadro de referência histórico da era da crítica. E esquece o facto de, em grande medida, a indústria cultural e o «deus kom unik assão» terem exilado a crítica. A pergunta que podemos colocar-nos, depois de o ler, será talvez esta: pode o programa que o autor enuncia ser realizado na blogosfera, quando a imprensa, como é manifesto, não se dispõe já acolhê-lo? Pode a blogosfera acolher o programa da crítica literária? Pode a crítica compatibilizar-se com o post? E até que ponto?
Lamento desiludir João Pedro George, que tem lutado por transportar a crítica (um certo modelo dela) para a blogosfera, mas a natureza da actual polémica sobre a crítica evidencia à saciedade as limitações do meio para um programa de regeneração da actividade crítica. A bogosfera não é, em rigor, um espaço crítico. Ou, se o é, é-o residualmente, já que o que a define é a proliferação estrídula de opinião – mas não propriamente de juízos, aceitemos ou não uma definição estritamente kantiana de «juízo». Por isso mesmo o blogue de opinião política tem uma presença tão forte na blogosfera; e por isso ele exige sempre a suplementação passional do correio dos leitores que os blogues não-políticos tendem cada vez mais a eliminar. Porque sobre o político todos podemos, devemos e temos o direito de opinar, já que o corpo político somos nós. Mas isto não significa, e mesmo no território do político, que a blogosfera seja, enfim, a realização da utopia burguesa, como recenseada por Habermas, de um espaço público feito de trocas discursivas entre cidadãos esclarecidos e livres (é difícil não nos comovermos ante este ideal tão poderoso; ou ante a forma como Habermas o romanceou). João Carlos Espada, sempre generoso, contava-nos há tempos uma ida sua a um clube londrino de gentlemen; e, como sempre, combinava a pedagogia popperiana da razão crítica com distinção e selecção aristocrática (e de género, claro). Ora, a blogosfera não é isto, ou seja, uma troca de argumentos entre gentlemen – e, na medida em que assim nos livramos de Espada, não serei eu a queixar-me -, aproximando-se com muito mais frequência da imagem de um contra-espaço público de natureza largamente passional e terrorista, coisa em que todos incorremos uma vez por outra.
Esclareço que, ao dizer isto, não idealizo a imprensa e o seu papel na constituição do espaço público burguês. Quem tenha lido Balzac, Camilo ou Eça sabe bem que a imprensa não é o clube de gentlemen de Habermas, e menos ainda o de Espada. E surpreende-me sempre que um autodefinido gentleman como João Carlos Espada se sinta tão em casa nela, razão pela qual, bem ao invés, tanto aprecio reencontrar a coluna que Vasco Pulido Valente vem alimentando na nossa imprensa há décadas, com a virtude sumamente pedagógica de nos dizer tudo aquilo que a imprensa é, pode e deve ser – sendo que muitas dessas coisas são francamente escandalosas e avessas à moral cristã. Mas, mais uma vez, mesmo quando a crítica literária nos jornais era terrorista, era-o num quadro comunicacional muito diverso do da blogosfera. A imprensa, digamo-lo assim para resumir, é uma máquina cara e pesada, definida pela proliferação de instâncias de mediação que não permitem ao crítico dizer e agir em total liberdade de alma (coisa muito de agradecer à imprensa, note-se). A blogosfera, pelo contrário, suspende todas essas instâncias, razão pela qual abunda em alma. E o espectáculo da alma, como se sabe, raramente é edificante.
Infelizmente, a actual polémica sobre a crítica mais não fez do que confirmar o que acabo de dizer, pelo que tenho alguma dificuldade em perceber como se pode activar um programa crítico ainda iluminista neste contexto mediático (basta comparar o nível do debate actual com o dos textos publicados na Inimigo Rumor para perceber o que estou a tentar dizer). E não consigo deixar de pensar que a rasura deste contexto é o ponto fraco da actividade crítica de João Pedro George na blogosfera. A não ser que entendamos que o âmago de uma actividade crítica centrada nesse contexto deva redundar na denúncia do «amiguismo». Mas isso, como disse antes, é confundir a árvore com a floresta. E, em todo o caso, para esse peditório não dou, até porque a vida é demasiado curta para vivermos eternamente nos arrabaldes.

5. Confesso que, neste ponto, me encontro muito mais próximo do sóbrio cepticismo de Pedro Mexia, num texto que é uma real contribuição para um debate sobre a crítica:

«De resto, a ideia de que a crítica (hoje) tem algum poder é totalmente absurda. A crítica tem ainda umas réstias vagas de prestígio simbólico, mas não faz absolutamente nada pelo sucesso ou insucesso dos livros, como se vê pelos tops de vendas. A crítica tem um punhado de leitores. Qualquer coisa que eu faça tem mil vezes mais eco que uma crítica literária. Nós vivemos numa época largamente pós-crítica, em que a crítica existe como um resquício inorgânico. Já nem crítica temos: temos críticos ou pessoas mais ou menos especializadas e mais ou menos amadoras que se ocupam de determinados objectos nos media. Sem legitimidade, sem autoridade, sem empenhamento, sem escola, sem influência.»

Devo dizer, para colocar todas as cartas na mesa, que um dos aspectos que mais me incomodaram neste «debate» foi a tentativa, pouco velada, de atingir Pedro Mexia, supostamente o Mastermind de situações de compadrio e amiguismo no DN. E isto porque, ainda que admitíssemos a verdade do enunciado dele - «Sei que noventa por cento das pessoas da universidade que lêem os meus textos acham que eu sou um mau crítico». – eu integraria sempre aqueles 10% de pessoas remanescentes que acham Pedro Mexia um crítico excelente, a meu ver o mais notável talento da sua geração nessa disciplina literária (sublinho literária).
É justo, mas a meu ver fácil, dizer que Mexia recuperou o perfil do crítico público, numa altura em que ele não parecia ser já recuperável. E é fácil porque é em boa verdade injusto, já que Mexia de facto reinventou essa figura do crítico, contaminando-a por outras figuras de ascendência moderna – o dândi, acima de todas – ou simultaneamente moderna e pós-moderna – e estou a pensar na «figura» discursiva e antropológica do fragmento e do aforismo – e colocando-as ao serviço de uma retórica da persona, da disjunção e do jogo literário, num difícil mas conseguido marivaudage de Borges com Blanchot, se o posso dizer assim. O trabalho crítico de Mexia é, por tudo isto, e ainda que malgré lui, o mais pedagógico dos que circulam no espaço público contemporâneo, já que quando o lemos reconhecemos a falsidade da dicotomia entre crítica jornalística e crítica universitária, dicotomia só sustentável por um entendimento falacioso das questões da competência e da especialização, que não são obviamente atributo exclusivo da universidade, estando antes ao dispor (e mais ainda na era digital) de quem simplesmente quiser estudar. Ou melhor: de quem quiser ler. E Mexia, manifestamente, leu, razão pela qual as suas leituras nos ajudam a ler os autores que apresenta nas páginas do DN, ou aqueles que, em regime mais ou menos epigramático, revisita nos seus blogues, mesmo quando, como é inevitável, dele discordemos.
Não nutro pelo Mexia poeta o interesse e a admiração que sinto pelo crítico. Mas não o lamento, pois creio que o melhor do labor literário de Mexia se tem vazado numa forma que o autor vem trabalhando e aprimorando nos blogues e que, com Estado Civil, alcançou um raro conseguimento. Refiro-me a uma escrita que só podemos imperfeitamente chamar, sem que a designação esgote a coisa, aforística, e na qual o autor se vem afirmando como um notável escritor, numa adequação rara da mensagem ao medium, neste caso o post. Não fora o post e a escrita de Mexia não teria ganho a densidade «gnómica», a justeza incisiva, a espirituosidade desconcertante, a leveza de uma como que existência sem missão nem redenção que fazem hoje a sua singularidade. Os «falsos diários» de Mexia, em todos os anteriores blogues, mas sobretudo em Estado Civil, são uma das mais estimulantes escritas da nossa literatura actual, e, a esse título, bem mais relevantes do que as inanidades egocêntricas de gente como Filomena Mónica (que Pacheco Pereira o tenha acusado em tempos de «umbiguismo», só mostra a que ponto as posições iluministas se podem casar com os neo-realismos disponíveis). Porque Mexia não incorre na tolice de escrever Bilhetes de Identidade; muito ao invés, empenha-se em demonstrar, da forma mais aparentemente irresponsável (mas não há literatura sem o peso ético da irresponsabilidade), a que ponto toda a identidade é apenas e só um bilhete. Mexia revela a todo o instante (no regime instantâneo dos blogues), e mais uma vez, que a verdade da literatura é a verdade do Fake. Que pode ser bem dolorosa, como sabemos. Que o faça com a superior inteligência e graça que o define, é algo que, enquanto leitor, só lhe posso agradecer.
Por tudo isto, que não é derivativo em relação ao perfil crítico do autor, já que define Mexia como um crítico que é um escritor – ou seja: alguém que vive publicamente na escrita –, tendo a vê-lo como uma personagem alegórica do devir actual da crítica no espaço público. Porque em Mexia a crítica é solidária de formas de reinvenção da escrita do eu, mas sem que isso o arraste para a agonia de uma épica negativa como em Joaquim Manuel Magalhães (ou Manuel de Freitas), com a sua insistência mal disfarçada numa versão entre o crístico e o redentor do poeta e da poesia na sociedade pós-industrial, versão que Mexia deflaciona drasticamente, não alimentando falsas ilusões sobre o alcance social da literatura e, menos ainda, sobre o papel iluminista do crítico, de que tende a dar uma versão hedonista, embora ressalvada; porque essa reescrita pública do sujeito, com todo o seu investimento narcísico em permanente denegação (muito haveria a dizer sobre a encenação do corpo como ruína benjaminiana em Mexia), não o faz descambar na irresponsabilidade e facilidade de julgamento que define o pior Eduardo Prado Coelho; porque a prática crítica de Mexia, na medida em que se situa num trânsito intermedial, do jornal para o blogue, mas também na medida em que transita da literatura para o cinema, sobretudo (e Mexia é hoje um dos nossos melhores críticos de cinema: vide, a título exemplificativo, os seus textos sobre João César Monteiro), ou ainda, e mais latamente, na medida em que divaga entre arte, moral (a moral de um suave imoralista) e política, embora crescentemente distanciada desta última, parece-me das mais lúcidas do nosso tempo na sua inteligência da situação global – estética, ética, social, mediática – da literatura, hoje.
«Contra» o relançamento do programa iluminista da crítica proposto por João Pedro George, com o seu indispensável correlato do crítico enquanto vanguarda estética e moral, Mexia propõe antes a lucidez de um outro tipo de pioneiro - o pioneiro mediático – que ele foi na blogosfera, e na transposição, em si tão ambivalente e conceptualmente estimulante, dos seus posts em livro. E, já agora, deixem-me dizer que Fora do Mundo é, entre muitas outras coisas, um dos melhores livros de crítica cultural, lato sensu, publicado em Portugal nos últimos anos. Uma espécie de Rua de Sentido Único adaptada aos novos tempos – alguém duvida que, caso vivesse hoje, Benjamin teria sido, como Mexia, um pioneiro da blogosfera? Por fim, Mexia parece-me ainda mais lúcido do que João Pedro George quando representa o público atingível pela crítica não segundo o modelo holístico da sociologia clássica – a massa semiletrada – mas antes como uma entidade inorgânica e dispersa, um «corpo sem órgãos». Ou, para recorrer a Manny Farber, não de acordo com o modelo longinquamente aristotélico do todo enquanto elefante, mas antes como a térmita que nos seus ajuntamentos e percursos faz corpo(s), temporariamente, ao mesmo tempo que o(s) vai roendo e desfazendo. E aí, e mais uma vez solidariamente, a deslocação para a blogosfera responderia não à ilusão do advento final do ideal da esfera pública – um advento tecnológico, mais uma vez – mas sim à perda final de ilusões em relação a esse ideal, uma vez que a blogosfera é exactamente esse «corpo sem órgãos», essa térmita movendo-se sem e contra a imposição de um sentido histórico ou sequer cartográfico, essa versão do público como uma colecção mutante de singularidades tecnologicamente suplementadas. O ecrã suplementando o livro, o post suplementando a recensão jornalística, a net suplementando o público que, em rigor, não acrescenta mas desloca e difere. Onde João Pedro George tende a minimizar, ou mesmo a rasurar, esta ontologia cyborg (parto aqui do princípio de que, como defende Andy Clark, todos somos Natural-Born Cyborgs), Pedro Mexia faz sentido, ou mais sentido, se o lermos a partir dela e como alguém que escreve nela. Não para a descrever (essa a sua inteligência) mas para a escrever, diariamente, em forma de post.
Quanto ao resto, ou seja, à capitalização simbólica de Mexia na blogosfera e no meio literário, com todas as invejas e ressentimentos que isso inevitavelmente acarreta, sobretudo quando a pessoa em causa opta por crescer em público, é coisa à qual nada tenho a dizer. Porque à inveja, esse óleo sem o qual nenhum motor carbura em Portugal, prefiro opor o trabalho. E, visivelmente, aquilo que Mexia faz dá trabalho. A ele, para começar. E a todos os que se interessem mais pela literatura, e pela crítica, do que por questões secundárias. Que não são muitos, como sabemos, e como esta polémica mais uma vez revelou. A mim, agrada-me o trabalho que Mexia me dá quando o leio.