08 fevereiro 2006

Atacando…





























directamente o tema: afinal, em que quadrante do espectro político se situa o Movimento Intervenção e Cidadania? Nós, o povo, estávamos convencidos de que sendo o seu símbolo e motor Manuel Alegre, o homem da esquerda eterna, irredentista e incondicional, o dito movimento só poderia alinhar, sem reservas, pelas causas da esquerda. E afinal, hoje, no Público, em notícia assinada por Maria José Oliveira, lemos que

«O Movimento Intervenção e Cidadania, originado pela candidatura presidencial de Manuel Alegre, não assumirá uma posição sobre a interrupção voluntária da gravidez. Ao invés do que foi inicialmente noticiado, a questão do aborto não será debatida no interior do movimento cívico, justificando-se esta decisão com o facto de o colectivo integrar pessoas oriundas de diferentes áreas ideológicas. "O movimento pretende ser transversal e o aborto não é uma questão de consenso", disse ao PÚBLICO Inês Pedrosa, uma das dinamizadoras do Intervenção e Cidadania.»

Ficamos assim a saber que o movimento é transversal e se dedica ao consenso. Por essa razão, na reunião do movimento em Março estabelecer-se-á «um quadro de causas que serão debatidas em diversas regiões do país. Segundo a dirigente nacional do PS, o núcleo de Évora está já a debater os efeitos da desertificação do interior.»
Admirável divisão geopolítica do trabalho! Proponho desde já que o grupo de Faro discuta o estado das arribas nas praias algarvias; que o de Bragança debata a questão das brasileiras e a miséria sexual do casamento no interior transmontano; que o de Braga discuta o direito legítimo do Sporting Clube de Braga a ser campeão nacional de futebol; etc. Nenhum destes temas é realmente fracturante, podendo aspirar com facilidade à felicidade do consenso; e nenhum é realmente património da esquerda, como convém a um movimento «transversal» (hoje em dia, como se sabe, o que não for transversal não interessa, e muito há a fazer no domínio da «imaginação de causas transversais»). Assim como os restantes temas que se avançam como bónus: a língua portuguesa (não esquecer de citar Bernardo Soares), o ensino da Constituição nas escolas e, tema não mais ingente mas não mais consensual, os maus tratos infligidos a crianças e idosos.
Indo então directamente ao assunto: o que diferencia a pletórica esquerda alegrista da envergonhada esquerda guterrista? Como todos nos lembramos, aquando do referendo sobre o aborto, Guterres torpedeou o PS e o património histórico das causas da esquerda, entre as quais avultava, no plano dos valores, a da despenalização do aborto, pronunciando-se a favor do Não, para gáudio dos partidários do Sim e da Igreja de Roma. Agora, este movimento, que se auto-representa como uma consciência crítica da Esquerda (não esquecer de escrever sempre com maiúscula), propõe-se ficar sentado e quieto, optando pela atitude salomónica, que entre nós passa por uma atitude «ética», de deixar os seus membros decidir em plena consciência. Não confundamos, porém. Uma coisa é deixar aos seus membros a liberdade de votar em consciência; outra coisa, muito diferente e digna do comportamento eticamente lamentável de Alegre em todo o processo a seguir à sua decisão de avançar para a candidatura presidencial (vota, não vota o orçamento; abandona, não abandona o PS; regressa, não regressa ao Parlamento), é o movimento, enquanto tal, abster-se sequer de uma posição, fazendo assim objectivamente o jogo do Não. Quanto à alternativa – o «quadro de causas» a debater nos vários núcleos espalhados pelo país – não é mais do que uma melancólica reencenação da velha política cívica jantante dos «Vencidos da Vida».

P.S. Indo ainda directamente a um último e picante assunto. Ficamos também a saber pelo Público que, lamentavelmente, Inês Pedrosa «deixou de ser porta-voz de Alegre na passada semana quando, após vários dias de indecisão, o ex-candidato decidiu regressar ao Parlamento sem a avisar previamente.» Compreensivelmente «magoada», a autora declara não querer «agudizar» o caso, o que só a enobrece. E admite mesmo que foi «voluntarista em excesso» (coisa de que já todos desconfiávamos). O que vale é que a ex-porta-voz, como sabemos também pela notícia, «tem vários projectos literários em curso e está a preparar uma nova estadia na Universidade de Berkeley, nos EUA, em Abril». Admiráveis jornalistas, que num só texto nos transmitem um tal cabedal de notícias, conseguindo tranquilizar-nos em relação à obra, literária e cívica, da ex-porta-voz de Manuel Alegre! Saber que teremos direito a mais umas «crónicas da América» na Única, é uma das poucas notícias boas deste mês infausto. Porque, sejamos claros, ela faz-nos falta.