Almoço no clube, 2a

— Estou a citar o glossário…
— Glossário?! Uma peça de teatro com glossário?!
— Pois, também estranhei. Mas as personagens são cinco velhos alentejanos e parece que a velhice no Alentejo goza de extraordinária singularidade vocabular. Vai daí, o glossário. (Leva o vinho à boca. Bebe. Pousa o copo.) É chato, porque na verdade apagam as luzes, como se costuma fazer no teatro, não é, e... ou uma pessoa decora o glossário todo antes de o pano subir, ou então terá de adivinhar durante a função o que é uma bochinha, um moquino ou um fanaco…
— Glossário?! Uma peça de teatro com glossário?!
— Pois, também estranhei. Mas as personagens são cinco velhos alentejanos e parece que a velhice no Alentejo goza de extraordinária singularidade vocabular. Vai daí, o glossário. (Leva o vinho à boca. Bebe. Pousa o copo.) É chato, porque na verdade apagam as luzes, como se costuma fazer no teatro, não é, e... ou uma pessoa decora o glossário todo antes de o pano subir, ou então terá de adivinhar durante a função o que é uma bochinha, um moquino ou um fanaco…
— Moq…fan…? Mas que raio de peça é essa? Teatro regionalista? Isso foi escrito quando? No tempo do Aquilino?
— Não, não, foi agora mesmo. De encomenda. Quanto ao regionalismo…sim, a linguagem é alentejana, como lhe estava a dizer, mas curiosamente um dos velhos chama-se “Ti Estragão” e…
— Estragão? Mas esse não é do Godot?
— Pois…e o outro velho é o “Ti Vladimiro”…a coisa não anda longe de configurar um Beckett no Alentejo. Ou melhor…andar longe, anda, porque… (Mastiga.)
— Desculpe, isso é um absurdo! Beckett nunca é em parte nenhuma, sabe-se lá onde é que aquilo acontece! Se é que acontece alguma coisa…
— Tem razão, aquilo de Beckett só tem os dois nomes. Até porque os nomes não contam para nada. (Pausa. Vai levar uma garfada à boca, mas o gesto fica suspenso a meio.) As três velhotas, se a memória não me atraiçoa, têm nomes do Tchekhov…
— Mas que salganhada!
— E o pior nem é isso.
— Ainda há pior?
— (Pousa o garfo no prato.) O pior é o cheiro a neo-realismo serôdio que tresanda daquela história toda. Os cinco idosos parece que envelheceram dentro dum romance do Manuel da Fonseca e, antes que fossem desta para melhor, o dramaturgo tirou-os de lá para se despedirem do mundo. Acho que os ouvi dizer três ou quatro vezes a frase “a gente tem-se uns aos outros e mais nada”, que deve ser truque para ficarmos todos a reflectir na desertificação do interior ou qualquer coisa desse género.
— Bem, isso veio mesmo a jeito para a sua tese da colonização ideológica do teatro. (Pausa.) E não se salva nada?
— Não, não, foi agora mesmo. De encomenda. Quanto ao regionalismo…sim, a linguagem é alentejana, como lhe estava a dizer, mas curiosamente um dos velhos chama-se “Ti Estragão” e…
— Estragão? Mas esse não é do Godot?
— Pois…e o outro velho é o “Ti Vladimiro”…a coisa não anda longe de configurar um Beckett no Alentejo. Ou melhor…andar longe, anda, porque… (Mastiga.)
— Desculpe, isso é um absurdo! Beckett nunca é em parte nenhuma, sabe-se lá onde é que aquilo acontece! Se é que acontece alguma coisa…
— Tem razão, aquilo de Beckett só tem os dois nomes. Até porque os nomes não contam para nada. (Pausa. Vai levar uma garfada à boca, mas o gesto fica suspenso a meio.) As três velhotas, se a memória não me atraiçoa, têm nomes do Tchekhov…
— Mas que salganhada!
— E o pior nem é isso.
— Ainda há pior?
— (Pousa o garfo no prato.) O pior é o cheiro a neo-realismo serôdio que tresanda daquela história toda. Os cinco idosos parece que envelheceram dentro dum romance do Manuel da Fonseca e, antes que fossem desta para melhor, o dramaturgo tirou-os de lá para se despedirem do mundo. Acho que os ouvi dizer três ou quatro vezes a frase “a gente tem-se uns aos outros e mais nada”, que deve ser truque para ficarmos todos a reflectir na desertificação do interior ou qualquer coisa desse género.
— Bem, isso veio mesmo a jeito para a sua tese da colonização ideológica do teatro. (Pausa.) E não se salva nada?
— Salva-se, claro que se salva! (Pausa.) O cenário. O cenário é muito bonito!
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