Raízes do crítico
— … nem queira saber o que o seu amigo Rubim me disse esta manhã. Imagine que…
— Eu ouvi, Groucho. Também fiquei preocupado.
— Francamente, se o assunto o aborrece, e nem percebo como, sendo ele, como suponho, crítico literário, podia ter tido conduta mais ética, mais profissional, para usar o vocabulário dele… agora pôr-se a gozar com a minha cara é que não, isso era muito escusado!
— Mas ele não gozava, Groucho, pelo menos não com a sua cara. Falava a sério, muito a sério…
— Pois, pois, devia calcular que o senhor seria a última pessoa a quem falar disto…
— Eu ouvi, Groucho. Também fiquei preocupado.
— Francamente, se o assunto o aborrece, e nem percebo como, sendo ele, como suponho, crítico literário, podia ter tido conduta mais ética, mais profissional, para usar o vocabulário dele… agora pôr-se a gozar com a minha cara é que não, isso era muito escusado!
— Mas ele não gozava, Groucho, pelo menos não com a sua cara. Falava a sério, muito a sério…
— Pois, pois, devia calcular que o senhor seria a última pessoa a quem falar disto…
— Pelo contrário, sou até o primeiro, porque o único, note, o único, além do próprio, que lhe pode elucidar o sentido e a razão de ser daquelas sugestões aparentemente indignas. Saiba que é muito difícil um homem erguer-se acima das suas raízes. Uma árvore, sim, tem facilidade. Já um homem… daí a minha preocupação.
— Continuo sem entender, pior! continuo…
— Já vai perceber. Mas isto é segredo, ouviu? ninguém aqui sabe… O meu amigo Rubim não só é um eminente crítico literário como deve à crítica literária a mais extraordinária reforma de costumes por que vi alguém passar. Ele saiu de casa muito cedo, com oito ou nove anos. Fugiu seria o termo rigoroso. Viveu anos na rua e, como era esperto e determinado, logo organizou um bando de pequenos delinquentes de que se tornou o chefe natural. Naturalíssimo. Ficou famoso em toda a linha de Cascais, e não me refiro apenas ao comboio. Famoso e temido. A própria mãe tinha medo dele, mas a verdade é que andava na rua totalmente despreocupada, porque ninguém se atrevia a molestar a «mãe do Rubim». Já perto dos dezoito ou dezanove anos, calhou um dia, durante o assalto a um dos comboios da linha, deparar com alguém que era nada mais nada menos do que o poeta… acho melhor não lhe dizer o nome. Ainda está vivo, pode ofender-se. Mas era um poeta já então célebre, embora o Rubim nunca tivesse ouvido falar dele. Sendo um sujeito de meia idade, o nosso amigo espantou-se com a calma, com a serenidade com que ele continuava a produzir gatafunhos num caderno, ao passo que os outros passageiros gritavam ou roíam as unhas. Depressa percebeu que o poeta estava calmo, porque não tinha um tostão no bolso. Nem relógio, nem carteira, nem sequer um pente. Aí, o nosso amigo sentou-se ao lado dele, pediu-lhe para ver os papéis e achou nada menos do que a descrição do próprio assalto… em verso!
— Carago! isso é verdade?
— Pura verdade. O mais impressionante está para vir. Pareceu-lhe que alguns versos eram de mau gosto, discutíveis as ideias, algumas soluções de rima e ritmo um tanto forçadas, e disse-o ao poeta… este, por sua vez, achou graça, perguntou-lhe se acaso tinha melhores soluções, ele declinou várias espontaneamente, o poeta foi tomando nota… e olhe, foi o começo de uma amizade que dura até hoje. Acho que dura até hoje.
— Carago! três vezes carago! Foi assim que ele deixou a delinquência?
— Bom, já lhe disse que é difícil um homem erguer-se acima das suas raízes. Não deixou logo, logo: foi deixando, à medida que lia os poetas, que os discutia com o poeta do comboio, que ele próprio tentava os seus versos, etc. Com o tempo, uma ode, um soneto, uma nénia interessavam-no mais do que um relógio de ouro, um cartão de crédito ou um walkman. Desleixou-se, perdeu a confiança dos rapazes do bando, acabou substituído na chefia e assim, sem trabalho nem bando… fez-se crítico literário. Mas conservou todas as antigas ligações. Frequenta ainda esses amigos de infância e juventude, aliás gente perigosa. Aí está um que nunca há-de escrever sobre os amigos… justamente por ser crítico literário!
— Carago! cinco vezes carago!
— Continuo sem entender, pior! continuo…
— Já vai perceber. Mas isto é segredo, ouviu? ninguém aqui sabe… O meu amigo Rubim não só é um eminente crítico literário como deve à crítica literária a mais extraordinária reforma de costumes por que vi alguém passar. Ele saiu de casa muito cedo, com oito ou nove anos. Fugiu seria o termo rigoroso. Viveu anos na rua e, como era esperto e determinado, logo organizou um bando de pequenos delinquentes de que se tornou o chefe natural. Naturalíssimo. Ficou famoso em toda a linha de Cascais, e não me refiro apenas ao comboio. Famoso e temido. A própria mãe tinha medo dele, mas a verdade é que andava na rua totalmente despreocupada, porque ninguém se atrevia a molestar a «mãe do Rubim». Já perto dos dezoito ou dezanove anos, calhou um dia, durante o assalto a um dos comboios da linha, deparar com alguém que era nada mais nada menos do que o poeta… acho melhor não lhe dizer o nome. Ainda está vivo, pode ofender-se. Mas era um poeta já então célebre, embora o Rubim nunca tivesse ouvido falar dele. Sendo um sujeito de meia idade, o nosso amigo espantou-se com a calma, com a serenidade com que ele continuava a produzir gatafunhos num caderno, ao passo que os outros passageiros gritavam ou roíam as unhas. Depressa percebeu que o poeta estava calmo, porque não tinha um tostão no bolso. Nem relógio, nem carteira, nem sequer um pente. Aí, o nosso amigo sentou-se ao lado dele, pediu-lhe para ver os papéis e achou nada menos do que a descrição do próprio assalto… em verso!
— Carago! isso é verdade?
— Pura verdade. O mais impressionante está para vir. Pareceu-lhe que alguns versos eram de mau gosto, discutíveis as ideias, algumas soluções de rima e ritmo um tanto forçadas, e disse-o ao poeta… este, por sua vez, achou graça, perguntou-lhe se acaso tinha melhores soluções, ele declinou várias espontaneamente, o poeta foi tomando nota… e olhe, foi o começo de uma amizade que dura até hoje. Acho que dura até hoje.
— Carago! três vezes carago! Foi assim que ele deixou a delinquência?
— Bom, já lhe disse que é difícil um homem erguer-se acima das suas raízes. Não deixou logo, logo: foi deixando, à medida que lia os poetas, que os discutia com o poeta do comboio, que ele próprio tentava os seus versos, etc. Com o tempo, uma ode, um soneto, uma nénia interessavam-no mais do que um relógio de ouro, um cartão de crédito ou um walkman. Desleixou-se, perdeu a confiança dos rapazes do bando, acabou substituído na chefia e assim, sem trabalho nem bando… fez-se crítico literário. Mas conservou todas as antigas ligações. Frequenta ainda esses amigos de infância e juventude, aliás gente perigosa. Aí está um que nunca há-de escrever sobre os amigos… justamente por ser crítico literário!
— Carago! cinco vezes carago!
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