16 janeiro 2006

Outra vez «a cultura» (enquanto o Groucho não volta)

Completamente proibido de me distrair pelas razões do costume (ó Fernanda, não se zangue!), passo aqui de corrida por ter lido (e nem isso deveria ter feito) o seguinte, que escreveu o Eduardo Pitta: “Um ministro serve para quê? Para definir e responder por uma política. Faz isso sentido na Cultura? Mas como? Em sociedades livres, digo eu. Em Cuba e na Coreia do Norte a gente percebe. Em contexto democrático é arrebique fútil.” As perguntas são as perguntas certas e as respostas são praticamente incontestáveis. Só não fica esgotado o assunto com a última frase, como aliás se infere, na perfeição, do próprio post do Eduardo Pitta, que acaba a mencionar figuras e práticas conhecidas da política francesa e do portuguesíssimo Estado Novo. Que Jack Lang e o dirigismo francês serviram de inspiração para ministros portugueses «da Cultura», nem preciso de argumentar: houve quem o confessasse como quem ostenta motivos de orgulho (não é preciso pôr nomes, certo?). Está claro que ninguém vai reivindicar-se da tradição de António Ferro, mas que a sombra dele paira pelos gabinetes do Ministério e respectivos Institutos, para mim, com o conhecimento que tenho das coisas, é matéria de facto. Quero eu dizer, sem desacompanhar o Eduardo Pitta, espero, que há arrebiques cuja futilidade é mais perniciosa nos seus verdadeiros efeitos precisamente por se apresentar com a máscara da utilidade, da missão nacional, da resposta imprescindível aos «anseios» do País. O fútil, nestes casos, torna-se funesto. E tanto mais funesto quanto pessoas «da cultura» exigem, da maneira menos desinteressada e mais calculista possível, que o Estado as proteja, as salve e, no fundo, as substitua na tarefa de defender e fazer vingar as suas próprias opções e convicções. O dirigismo é, em todas as suas formas, uma prática que nasce de baixo e cujo primeiro suporte são os próprios dirigidos. O resultado disto em Portugal está à vista e não é bonito de se ver: sectores artísticos que se tornaram, já dispensados de qualquer prova de mérito, nos artistas do regime; pessoas ou conjuntos de pessoas que, façam o que fizerem, têm garantida a maior fatia dos «apoios» estatais; práticas e ideias artísticas ou «culturais», tão válidas como quaisquer outras, transformadas em gosto e ideologia oficial, por força da acumulação de privilégios (financeiros e outros); funcionários e organismos do Estado que se arrogam — e exercem — o direito de sustentar uma estética e de estabelecer alianças mais do que suspeitas com sectores precisos da vida «cultural». Tudo isto tem nomes. Uma parte deles (e às vezes a mesma) é aquela que tem usado dos meios da imprensa para dar cobertura sistemática, continuada e denodada (honra lhe seja) a este estado de coisas e que, não raras vezes, se disfarça de jornalismo profissional. Não esqueçamos que, se este debate prossegue (saúde, Francisco!), a verdade é que prossegue sobretudo no meio ainda restrito dos blogues e da Internet. (E desculpem lá o comprimento e o tom demasiado sério da conversa, tão pouco próprios deste clube. O que me safa é o Groucho estar em parte incerta. Até quando?)