Exercícios espirituais adornianos
- Mas acha que ele regressou mesmo afectado?
- Não duvide, senhor, não duvide. Já reparou naquele estranho brilho nos olhos?
- Mas ele sempre teve aquele brilhozinho de génio sardónico, Groucho.
- Pois, mas a coisa mudou de natureza, que não apenas de grau. O brilho tem agora algo de alucinado. Também, não surpreende: já considerou bem a crueldade dos Exercícios Espirituais Compulsivos a que ele foi sujeito?
- Horrível, Groucho. Nem quero pensar. Um gravador matinal a debitar «Não digas mal da Inês Pedrosa» ad infinitum!? Antes a solitária, mil vezes.
- Sim, mas olhe que ele me confessou coisas literalmente inconfessáveis e ainda piores que essa.
- O que está o meu amigo a querer sugerir? Práticas à Abu Ghraib? Não me diga!
- Não, não, senhor. Não se esqueça de que a população raptada e sujeita a reeducação integrava a família dos intelectuais incorrigíveis…
- …mas ele ainda há disso? Julgava que restava apenas o Pacheco Pereira.
- Pelos vistos, os bastantes para encherem um convento devoluto, algures no Minho, segundo as mais recentes investigações do agente Jack Bauer, do CTU. Mas os EEC, sem praticarem a retórica da sevícia corporal de Abu Ghraib, não deixaram de ser humilhantes, garanto-lhe.
- [Chegando-se muito ao pé de Groucho e falando-lhe baixo ao ouvido] Ó homem, não me deixe nesta inquietação, por quem é! Além do mais, sabe que sou muito amigo dele e quero ajudá-lo a recuperar do stress pós-traumático. Ajude-me! Dê-me só um exemplozinho das sevícias a que ele foi submetido, para eu me poder orientar na terapia.
- Não posso, senhor. Prometi segredo de confessionário!
- Faça de conta que eu sou o Papa, homem! Uma mais alta autoridade espiritual, que não põe em risco a sua integridade moral.
- [Chegando-se por seu turno muito ao pé e falando baixo ao ouvido] Eu não devia fazer isto, mas seja pelo bem do nosso amigo comum... Imagine que o puseram a fazer análise sintáctica de um dos últimos livros de Maria Gabriela Llansol, aquele intitulado O começo de um livro é precioso.
- Jesus, Groucho! Isso é de arrasar com um espírito, ainda para mais se um espírito particularmente lógico e cartesiano, para toda a vida.
- Pois, imagine. Como se não bastasse, teve ainda de fazer a análise actancial da clássica trilogia Geografia de Rebeldes: adjuvante, oponente, etc.
- Coitadinho do nosso amigo, Groucho! Sujeito a sevícias anacrónicas! Receio bem que depois disso nunca plenamente regresse ao nosso convívio intelectual.
- [Aproximando-se ainda mais e falando ainda mais baixo] Mas há pior, senhor.
- Por favor, Groucho, poupe-me. Até porque não acredito que possa haver pior do que esses dois exercícios, com franqueza.
- Mas há sim, senhor. Imagine que, num requinte de sadismo sem igual, o obrigaram a reescrever longamente (gastou quatro semanas naquilo e a obra ficou ainda assim muito incompleta) a Filosofia da Nova Música, de Adorno, que se passaria então a chamar a Filosofia da Literatura Moderna. Com a exigência prévia de substituir, na lógica da obra, cada ocorrência da afirmação «Schönberg é o progresso, Stravinsky a reacção» por «Eça é o progresso, Camilo a reacção».
- Que horror, Groucho!
- Nem mais. Imagine os danos, frontais e colaterais, que uma doxografia desta natureza provocou num espírito tão naturalmente revisionista! E camiliano, ainda por cima.
- Agora é que não acredito mesmo na recuperação dele.
- Infelizmente, também eu tenho fundadas dúvidas nessa matéria. Sabe que já me aconteceu estar a falar com ele e ouvi-lo dizer, sem qualquer propósito, e dou apenas um exemplo: «Porque sabe, Groucho, como dizia o Adorno, Eça é o progresso, Camilo a reacção. De modo que a votação no Alegre, com franqueza…». Assim, sem mais, e sem que ele sequer se aperceba.
- Coitado… Como será viver em permanente regime de acto falhado? Olhe, acho que vou consultar o senhor Quintais, que estudou o stress pós-traumático nos veteranos da guerra colonial. Apesar de tudo, há que tentar alguma coisa, não acha?
- Claro, senhor… [Em sobressalto] Mas mudemos de assunto, que ele acaba de chegar. [Groucho afasta-se rapidamente, enquanto o casmurro em causa se aproxima].
- Ah, viva… Então, estás bom?
- Vou recuperando. Como dizia hoje à minha mulher, há que fazer pela vida, até porque, como dizia o Adorno, Eça é o progresso, Camilo a reacção. E tu, que fazes?
- Eu?... Bem, enfim… Olha, leio os jornais desportivos. Parece que o Sporting é o progresso e o Benfica a reacção.
- Isso faz-me lembrar qualquer coisa… Que raio, tenho-a mesmo debaixo da língua! Deram-me cabo da memória com aquela lavagem ao cérebro, aqueles grandecíssimos fdp!
- Calma, calma. Lê aí as manchetes d’A Bola e do Record, que estão particularmente calmantes. Só falam em «banhadas».
- Curioso tropo, esse. Sabes que, segundo o Adorno, na Filosofia da Literatura Moderna…
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