Do cativeiro
— Ora até que enfim! Depois do regresso do Sr. Silvestre, já estranhávamos que não aparecesse, e ainda ontem comentei com a menina Clara…
— Imagino, imagino o que comentou. Mas é reconfortante saber que um homem pode ser raptado ou mesmo morrer, que ninguém dá pela falta dele. Nem sequer procuram…
— Raptado?!
— Sim, Groucho, raptado. Fique a saber, e em primeira mão, que eu fui raptado. Raptado. Sequestrado. Levado de casa à força.
— Ora, por amor de Deus, deixe-se de brincadeiras…
— Não é brincadeira, Groucho. Fui raptado, estive sequestrado seis semanas, não tive Natal, nem passagem de ano, nem sequer pude votar, já agora.
— Isso terá sido o menos. Mas, que diabo! conte, explique… foi daqueles raptos a pedir dinheiro, resgate…
— Aí está a particularidade. Aparentemente foi um rapto reeducativo, ou reformador. Os que me levaram disseram só que eu ia para um retiro fazer EEC…
— EEC?!
— Exercícios espirituais compulsivos. Fecharam-me num quarto, muito parecido com uma cela de mosteiro tal como as imagino a partir dos livros. Logo de madrugada, pelas cinco da manhã, mais coisa menos coisa, acordavam-me com gritos medonhos, e começava o primeiro EEC, uma fita gravada, com o volume altíssimo, e repetindo sempre a mesma coisa: «Nunca digas mal da Inês Pedrosa! Nunca digas mal da Inês Pedrosa! Nunca digas mal da Inês Pedrosa!» Cheguei a pensar que tinha sido ela a raptar-me…
— E não foi, claro…
— Claro que não. Um gang de loucos, o chefe era um padre, jesuíta ou dominicano, que perdeu o juízo. Nos últimos dias, aparecia-me na cela a várias horas do dia e insistia: «Não existem coisas boas nem coisas más, tudo depende do uso que fazemos delas. Nada é completamente bom ou inteiramente mau», e coisas semelhantes.
— Já ouvi isso… espere! foi no sábado, fui dar com a menina Clara a rir-se desesperadamente com um texto qualquer numa revista… leu-me um bocado e era isso, tenho a certeza, era isso, não haver coisas boas nem más… mas que revista era? não me lembro…
—Seria o editorial da Laurinda Alves na revista XIS…?
— Sim, isso mesmo. Mas, espere, não me diga que a Laurinda Alves estava mancomunada com os raptores…?
— Acho que não, mas alguma ligação haverá, porque foi esse artigo que pôs a polícia na pista do gang. Mais precisamente, um jovem escocês, agente do MI5, que anda por aí disfarçado de estudante de português, percebeu a ligação com uma seita parecida que actuou em Inglaterra há dois anos. Comunicou com a Judiciária, e fomos resgatados, felizmente sem grandes danos.
— Fomos?
— Sim, estavam presos no mesmo sítio cerca de 150 pessoas, arrumados em cínicos, cépticos, ateus, maledicentes, escarnecedores e categorias afins. Eu representava os casmurros, imagine.
— Ui, que honra!
— Sim, enorme, subida honra… principalmente sabendo que os casmurros me deixaram entregue à minha sorte, à mercê dum padre louco, a querer reformar-me à força. Estou a pensar abandonar o clube, Groucho. A desilusão foi demasiado forte, demasiado forte. Não sei se posso encarar os meus colegas depois disto…
— Olhe, ali vem um…
— Imagino, imagino o que comentou. Mas é reconfortante saber que um homem pode ser raptado ou mesmo morrer, que ninguém dá pela falta dele. Nem sequer procuram…
— Raptado?!
— Sim, Groucho, raptado. Fique a saber, e em primeira mão, que eu fui raptado. Raptado. Sequestrado. Levado de casa à força.
— Ora, por amor de Deus, deixe-se de brincadeiras…
— Não é brincadeira, Groucho. Fui raptado, estive sequestrado seis semanas, não tive Natal, nem passagem de ano, nem sequer pude votar, já agora.
— Isso terá sido o menos. Mas, que diabo! conte, explique… foi daqueles raptos a pedir dinheiro, resgate…
— Aí está a particularidade. Aparentemente foi um rapto reeducativo, ou reformador. Os que me levaram disseram só que eu ia para um retiro fazer EEC…
— EEC?!
— Exercícios espirituais compulsivos. Fecharam-me num quarto, muito parecido com uma cela de mosteiro tal como as imagino a partir dos livros. Logo de madrugada, pelas cinco da manhã, mais coisa menos coisa, acordavam-me com gritos medonhos, e começava o primeiro EEC, uma fita gravada, com o volume altíssimo, e repetindo sempre a mesma coisa: «Nunca digas mal da Inês Pedrosa! Nunca digas mal da Inês Pedrosa! Nunca digas mal da Inês Pedrosa!» Cheguei a pensar que tinha sido ela a raptar-me…
— E não foi, claro…
— Claro que não. Um gang de loucos, o chefe era um padre, jesuíta ou dominicano, que perdeu o juízo. Nos últimos dias, aparecia-me na cela a várias horas do dia e insistia: «Não existem coisas boas nem coisas más, tudo depende do uso que fazemos delas. Nada é completamente bom ou inteiramente mau», e coisas semelhantes.
— Já ouvi isso… espere! foi no sábado, fui dar com a menina Clara a rir-se desesperadamente com um texto qualquer numa revista… leu-me um bocado e era isso, tenho a certeza, era isso, não haver coisas boas nem más… mas que revista era? não me lembro…
—Seria o editorial da Laurinda Alves na revista XIS…?
— Sim, isso mesmo. Mas, espere, não me diga que a Laurinda Alves estava mancomunada com os raptores…?
— Acho que não, mas alguma ligação haverá, porque foi esse artigo que pôs a polícia na pista do gang. Mais precisamente, um jovem escocês, agente do MI5, que anda por aí disfarçado de estudante de português, percebeu a ligação com uma seita parecida que actuou em Inglaterra há dois anos. Comunicou com a Judiciária, e fomos resgatados, felizmente sem grandes danos.
— Fomos?
— Sim, estavam presos no mesmo sítio cerca de 150 pessoas, arrumados em cínicos, cépticos, ateus, maledicentes, escarnecedores e categorias afins. Eu representava os casmurros, imagine.
— Ui, que honra!
— Sim, enorme, subida honra… principalmente sabendo que os casmurros me deixaram entregue à minha sorte, à mercê dum padre louco, a querer reformar-me à força. Estou a pensar abandonar o clube, Groucho. A desilusão foi demasiado forte, demasiado forte. Não sei se posso encarar os meus colegas depois disto…
— Olhe, ali vem um…
<< Home