20 janeiro 2006

Balanços e melões




















- Há que tempos, senhor! De novo por cá? Por uns tempos, espero…
- Olhe que não, olhe que não…
- Essa é do Cavaco, não é?
- Agora, parece que já é, como tudo parece ser dele, por estes dias. Mas não era, antigamente. Muito antigamente… Mas enfim, é a disseminação derridiana a funcionar.
- Lamento a brevidade anunciada da sua aparição. Já agora, diga-me, senhor: viu os balanços literários de 2005?
- Por alto, Groucho. Começo a ler e fico traumatizado com tudo o que não li e devia ter lido. Prefiro ver antes as fotos dos balançadores e imaginar, nalguns casos, e antes mesmo de ler o que dizem, os livros que irão destacar. Mas fracasso sempre da forma mais miserável: não bate quase nunca a bota com a perdigota, ou o livro com o leitor.
- Não viu então o balanço de Eduardo Prado Coelho, no «Mil Folhas»?
- Por alto, também. Mais uma vez, parece-me que confundiu a epistemologia do balanço com a da lista avulsa. Ou estou errado?
- De modo nenhum, senhor. Mas sabe, o melhor do balanço dele veio na semana seguinte, em forma de P.S. à crónica de 14/1/06 no «Mil Folhas».
- E porquê, caro Groucho?
- Ora, porque ele refere alguns «esquecimentos imperdoáveis» da lista da semana anterior e tenta corrigir o lapso. O que é extraordinário é que em quatro casos destaca obras que confessadamente não leu…
- Não posso! O meu amigo é que leu mal, seguramente.
- Mas qual quê, senhor. Ora espere um instante que eu vou ali ver se descubro o suplemento. [Ausenta-se por momentos] Aqui tem. Ora veja: «Génese, de António Ramos Rosa (que ainda não li)»; «A Flor dos Terramotos, de Manuel de Freitas (terei de o procurar)»; «um primeiro romance de Lourença Baldaque (que ainda não li)». E, já com algum requinte de crítico com banca montada: «um livro de poemas que vejo referido mas nunca me chegou às mãos: A Estrada Branca de José Tolentino Mendonça». Que me diz a isto?
- Clarividência histórica, Groucho. Nada menos. Não sejamos mesquinhos perante quem consegue descortinar o valor de um livro sem o folhear. É um dom só ao alcance dos grandes críticos. Reza a lenda que Gaspar Simões também o conseguia.
- Seguramente, senhor. Mas sabe o que me ocorreu? Fazer, também eu, um balanço do ano, radicalizando o dispositivo heurístico de EPC.
- Não o acompanho…
- É fácil. Aqui vai então o meu Top Ten de 2005: As Intermitências da Morte, de José Saramago; O Quadrado e outros contos, de Manuel Alegre; D’ Este viver aqui neste papel descripto, de António Lobo Antunes; Bilhete de Identidade, de Maria Filomena Mónica; Falsa Partida, de Fernando Luís Sampaio; Fazer pela Vida: Um Retrato de Fernando Pessoa, o Empreendedor, de António Mega Ferreira; Sem Nome, de Hélder Macedo; Os Dias Contados, de José Sasportes; A Nuvem Prateada das pessoas Graves, de Rui Costa; e, para concordar por uma vez com EPC, A Estrada Branca de José Tolentino Mendonça. Falta-me só lê-los, mas esse pormenor despiciendo não me impede o reconhecimento do carácter sumamente interessante destas obras.
- «Sumamente interessante», Groucho? Reencontro-o demasiado contaminado pela prática valorativa sumamente interessante do nosso crítico de referência.
- O que quer, senhor? Les beaux esprits… E depois, isto anda tão parado, tão desertado – o que é feito dos senhores Baptista e Oliveira? – que uma pessoa acaba por se aconchegar à sombra do «Mil Folhas».
- Isto anda mal de balanços, de facto. Dá ideia que os casmurros foram apanhados pela casmurrice da vida. Mas não invejo também o seu destino, meu caro. Pouco estimulante, se quer saber.
- Mas assaz interessante, senhor, não acha?
- Temos de concluir que ele há balanços pra tudo, meu caro Groucho. E, bem vistas as coisas, o melhor balanço é o que nos promete um mundo de livros por vir. Ou que, já vindos, estão ainda por abrir.
- É aquilo a que com propriedade podíamos chamar a epistemologia dos melões, senhor…
- Eu diria antes, a filosofia da história sub specie melões.
- Não sei se não descaímos ligeiramente no pornográfico…
- É possível. O limiar entre cultura e pornografia é por vezes ténue, como sabe.
- Refere-se ao casus belli Lagarto versus Fragateiro, senhor?
- Por quem é, Groucho! Passe-me antes o «Mil Folhas» para ler com toda a atenção o balanço do ano passado. E já agora, se não se importa, traga-me uma fatiazinha de melão. Brasileiro, suponho, nesta altura do ano.
- Sim, claro. Já agora, e se fizéssemos também o balanço do ano literário no Brasil?
- Não acompanhei de perto, Groucho, lamento.
- Por isso mesmo, senhor, por isso mesmo!